Carlos Carranca - neste lugar sem portas

domingo, junho 24, 2007

Cultura e desporto no São João


Mas nem só de tradições vive o São João. Nestes quatro dias há mais actividades para apreciar na vila. O Trevim faz o balanço das restantes

Sarau da EB2/3
No dia 21 de Junho, a partir das 9:00 da noite, a escola EB 2/3 da Lousã promove, no Pavilhão Municipal n.º 2 (anexo à escola), um “Sarau de Ginástica, Música e Dança”.
“As pessoas já estavam habituadas à nossa Festa da Música que encerrava o ano lectivo. Este ano decidimos alargar o âmbito da iniciativa”, disse ao Trevim Paula Barata, vice-presidente do Conselho Executivo. Assim, os alunos, além das actuações musicais, haverá demonstrações de ginástica, ginástica acrobática e danças de salão. “Tudo preparado por estudantes da nossa escola, ou seja, por alunos do 5.º ao 9.º anos”, explicou a docente.

Canção Coimbrã
O Guitarras de Coimbra - Grupo de Fados da Associação Cultural de Coimbra Menina e Moça vai abrilhantar a noite de 21 de Junho na Senhora da Piedade com um espectáculo de fados de Coimbra, seguido de fogo preso.
“À excepção do ano passado têm sido sempre eles a fazer este espectáculo…”, disse ao Trevim Carlos Baptista, da Câmara Municipal da Lousã, responsável pela organização dos festejos.
O grupo é formado por antigos estudantes da Universidade de Coimbra e, desde 1998, tem vindo a divulgar a Canção de Coimbra.

Liberdade em livro
No dia 23 de Junho, decorre a apresentação e discussão do livro de Edmundo Pedro “Memórias , um combate pela liberdade”. A cerimónia terá lugar na Biblioteca Municipal da Lousã, pelas 16:00, e contará com a presença do autor.
Carlos Carranca, colaborador do Trevim e amigo pessoal de Edmundo Pedro, foi a personalidade escolhida para fazer a apresentação do livro na Lousã. “O autor é uma figura singular da história contemporânea portuguesa”, diz. E completa: “Foi um resitente do regime salazarista desde os 15 anos e por isso foi preso nessa idade. Inaugurou o campo de concentração do Tarrafal aos 17 anos”.
Edmundo Pedro tem 88 anos e muitas memórias. Foi operário e tradutor, tendo chegado a Presidente da RTP. Hoje assume-se como um “socialista independente”. Teve uma vida muito rica em histórias e vivências, mas este “Memórias, um combate pela liberdade” termina nos 27 anos do autor, altura que saiu do Tarrafal.

Fotos sobre a linha da Lousã
Dário Silva é o autor da exposição de fotografia que será inaugurada no dia 24 de Junho, no átrio da Biblioteca Municipal da Lousã intitulada “Quotidiano da linha da Lousã”.
A mostra encerra a 27 de Julho. Surge, segundo o autor, na sequência de um convite da autarquia para “documentar o ano que assinala o 1.º Centenário da chegada do caminho de ferro à vila da Lousã” e é “uma amostra do trabalho que actualmente realizo que deverá culminar com a edição de um livro fotográfico a editar em Outubro ou Novembro”.
São, ao todo, 30 fotografias “organizadas de forma crescente, desde Coimbra B até Serpins, sendo que todas as estações e apeadeiros se encontram representados”. As imagens foram recolhidas entre Maio e Junho.
O prefácio da exposição é da autoria do presidente da Câmara da Lousã e as notas explicativas são da autoria de Paulo Carvalho, natural da Lousã e docente na Universidade de Coimbra.

Festival de Folclore
Realiza-se, no dia 24 de Junho, o Festival de Folclore Concelhio.
Este ano participam nesta mostra de grupo regionais o Rancho Típico da Serra da Lousã, o Rancho Folclórico Flores de Serpins – Infantil e Adulto, o Rancho Folclórico e Etnográfico de Vilarinho, o Rancho Folclórico da ARCIL, o Rancho Infantil Estrelinhas da Ponte do Areal e o Rancho da Escola Secundária e da AVEL.
Quem quiser assistir ao evento deve dirigir-se ao Anfiteatro do Parque Carlos Reis, pelas 17:00.
Gisela Cruz, 22 Junho 2007
in: O jornal O Trevim

segunda-feira, junho 18, 2007

MIGUEL TORGA


Quantas vezes soletro o teu nome,
Mi-guel Tor-ga!...
A última é sempre a vez primeira.
Na fogueira
do teu nome,
sou eu quem se consome
- ritual da Paixão
de ter escrever.

Lembras-te da mística Santa Teresa?
"…morro por não morrer,"
sentimento trágico - beleza!
Como o outro da Ibéria
também tu fazes pombas de papel,
livres vão
de Coimbra ao fim do mundo.

E eu
na fome de te nomear
do chão de Federico
ergo-me feliz p'ra te cantar.
-D. Miguel!... (olho o céu, hesito).

Pombas de papel branco
com marcas de um azul da cor do mar,
entram, regressadas não sei donde, pela janela
do Poeta. E tu, num banco,
olhando as horas sobre o rio, olhas o casario
e os versos que da janela
vão abrindo as asas para ti,
que os vens cumprimentar.


In: Neste Lugar sem Portas

domingo, junho 17, 2007

EM BUSCA DA PUREZA ORIGINAL

“Hei saudades de mim, doutro que fui – menino”2

Teixeira de Pascoaes

O Regresso à Velha Casa

Como já foi referido, a explosão criativa de Pascoaes dá-se aos dezassete anos (é a altura em que o medo da mãe se converte em medo da mulher e nos leva, ou à homossexualidade, ou à criação artística, materializada a mãe sob uma forma não ameaçadora para o Autor) e a partir daí percorrerá todos os caminhos que o levarão junto da pureza original - o verbo (é o avatar do homem sem sexo).
O ambiente bucólico da infância, a ternura edipiana, o período da adolescência em que a criatividade constitui uma das principais características, tê-lo-ão levado à descoberta do seu mundo. E lá foi tocando as coisas proíbidas, interditas ao comum dos mortais - criando, revelando mistérios, os da natureza. Pela vida irá alargando o fosso do seu mundo do dos homens.
A contemplação do intemporal, a descoberta do mistério das coisas vão-se tornar auxiliares desse seu acto romântico de existir. Em Verbo Escuro dirá:
«Poetas cantai os fantasmas; quero eu dizer, o
que é eterno...
Cantai o que não existe: o resto é cinza»
Em As Sombras escreve:
«Eis-me graças à vida, uma vez mais
No vale onde nasci; à sombra amiga
Destas velhas árvores espectrais,
Minhas irmãs em Deus...».
Poeta intuitivo, libertário, panteísta, cristão, comunista, vai juntar na sua obra os elementos bíblicos e mitológicos.
Escreve como quem obedece a uma força que está para além de si.
O Poeta, para realizar O Fantasma, vai ser obrigado a fundi-lo com a terra, projectando-se imagem da lembrança dos tempos de menino (a da mãe já perdida, a da infância) sobre o espaço da velha casa - o Solar de Pascoaes.
Transforma a palavra em objecto tornando-a Fantasma. Melhor: ele transforma-se em Palavra (Verbo), forma assexuada de Homem. A paisagem da infância permanecerá em toda a sua pureza e é a ela que o Poeta, cansado das lides po(etico) líticas, regressará.
«Eu que fui um anjo sem o saber, sou agora um demónio que se conhece. Decaí, entrei na posse de mim mesmo. Vejo-me num espelho. Vejo, enfim, o meu retrato. Sou eu... que tristeza» (Livro de Memórias).
Regressado, para sempre, a casa dos seus Avós, abandona a carreira jurídica (a conselho de seu Pai) e entrega-se, por inteiro, à sua obra.
«Nesta velha casa, no meio desta paisagem materna, o que há de banal no meu ser, desa¬parece, toma a infinita seriedade das coisas que mostram o vulto escuro, ao doirado riso do Sol.» (Verbo Escuro).

Poeta das Sombras


Na casa da sua infância, o poeta regressa ao Paraíso, a si - «sou poeta, quando as coisas me enternecem» - casa a que chama «lágrimas com salas e janelas» ou «fonte do meu ser que vai chorando até formar a onda que hoje sou».
As sombras são a face misteriosa das coisas.
As sombras são a expressão de um místico que nelas vê a sombra de Deus:
«Esta sombra infinita em que me afundo E à qual tentei dar forma, vida e cor, E o princípio da terra e o fim do mundo, A projecção espiritual das coisas...
Sombra do nosso corpo e nosso espírito! Sombra que se enraíza nas origens E vale subindo em haste, e já floresce Em altos céos anímicos e virgens.
Sombra que no Passado se projecta,
E é gélida penumbra! E ao mesmo tempo
Sobre o Futuro é sonho de Profeta?
É límpida e amorosa consciência.

Ó sagrado momento repentino,
Em que a podre Matéria transitória,
Voando em claro espírito divino.
Se vê liberta e viva e semprieterna!

Ó instante sagrado em que perpassa,
Lá na distância espiritual dos céus.
E mais do nosso olhar, etérea sombra,
Apenas um crepúsculo de Deus!

Rumor de sombra ideal de Deus!
Perturbação divina!
Alto rumor
Que me beijaste em pleno coração,
O qual em verso pobre e comovido,
Em troca te quis dar sua emoção,
A sua própria vida e próprio corpo...» (
«A Última Sombra», in As Sombras)

Heróis e Santos

Os heróis e os santos correspondem a uma fase da produção «poética» de Teixeira de Pascoaes. Apaixona-se pela «biografia» e vai, na sequência da sua obra, continuar a criar mitos, fantasmas que vão levar a Igreja Católica a insurgir-se contra o seu São Paulo.
O São Paulo, como é fácil concluir, nada tem a ver com o santo da Igreja Católica. E uma figura criada pelo Poeta, um mito saído da sua caneta: uma livre interpretação, alguém que «humanizou Deus absolutamente».
Pascoaes afirma no livro que «à força de ser homem é que Jesus alcança a divindade, é que Deus é Deus.» (São Paulo),
E um São Paulo carregado de subjectividade, demasiadamente romântico, representando para o Poeta um exemplo acabado de sublimação.
Recorrendo à interpretação de Fernandes da Fonseca somos levados a concluir que «o poeta soube como ninguém encontrar entre essa figura ímpar do cristianismo e o mito da Saudade (dessa força vital que estabelece a simbiose entre o nosso passado e o nosso futuro) uma relação íntima e transcendental, susceptível de pôr em evidência o sagrado de toda a natureza» (Psicologia e Criatividade),
Publica outras biografias:
São Jerónimo, Napoleão, O Penitente (Camilo Castelo Branco), Santo Agostinho, e todas elas servirão para reforçar a realidade pascoaliana, que não é a que se vê, mas a que se sente.

O Velho e a Criança (a criança velha e a nova criança)

Pascoaes terá sido «vítima» da sua extrema sensibilidade, logo nos primeiros anos de vida. Ao invés das demais crianças que se perdiam em brincadeiras próprias das suas idades, ele, como já referimos, imaginava procissões, organizava-as e dirigia-as. Pedia que o crucificassem e, muito atento, ouvia as velhas estórias que o terão ajudado a criar o mundo de fantasmas - estórias da criada Lucrécia com almas penadas...
«Reflexos de labaredas avermelham-te as maçãs do rosto salientes; e as faúlhas apagadas davam um tom grisalho às três ripas sujas de cabelo que nunca te embranqueceram» (Livro de Memórias) - assim evocara o Poeta a sua tecedeira de sonhos.
Os adultos, os das relações de seus pais, provocavam-lhe um enorme mal-estar, levando-o a refugiar-se na solidão dos montes.
João dos Santos em Eu Agora Quero-me Ir Embora, livro extraído de um programa da rádio e realizado em parceria com João Sousa Monteiro, diz a páginas tantas que «...é mais importante o que se é do que o cjue se sabe» e Pascoaes havia escrito muito tempo antes: «...porque o supremo crime é na verdade ser».
O Poeta começara bem cedo a ser. A sua fobia para com a escola é bem o espelho do relaciona¬mento incapaz de identificação de dois mundos antagónicos. Um ideal, sensível e aberto (o do poeta), o outro - a escola - limitado, dogmático e
castrador.
O Poder Social, que já o havia ajudado a tornar-se sisudo e cabisbaixo, vai-se tornando cada vez mais ostensivo - a instituição escolar.
Este poder que Pascoaes associava à imagem do Pai é contrário à força que dominava os seres e as coisas e que é de essência materna - a Natureza. Era ela a sua segunda mãe, e onde se sentia naturalmente bem.
Em Pascoaes o processo de maturação do Eu deu-se sem nunca ter perdido o suporte da relação primária, sublimando a mãe, que continuará nas suas características fantasmáticas.
A mãe foi na vida um fantasma de carne e osso que amou com verdadeira devoção - mãe calma e doce, a síntese da paz do poeta.
De entre as paixões de Teixeira de Pascoaes nascidas já em idade avançada, contam-se as que nutriu pela sobrinha-afilhada Maria José, a «Zézinha» e pela «Adelaidinha», a maior de todas, a derradeira, esta filha de uns caseiros da quinta.
A esta criança, escreverá no testamento «deve ao amor que lhe consagra os últimos lampejos da sua inspiração» (in Teixeira de Pascoaes de Mário Garcia).
Mas se o amor de um velho por uma criança não tem nada de espantar, este, particularmente, deverá ser observado com os olhos do espirito, para podermos penetrar fundo no amor que o agora velho Poeta dedicou à Vida, a tudo o que era puro, natural, infantil.
Pascoaes havia proclamado aos sete ventos que «ser ingénuo, ser ingénuo...é ser» e esta verdade que perseguiu talvez seja a chave do segredo da sua vida.
A ingenuidade da infância que procurará perpetuamente, a sua incapacidade de se afastar das raízes, condicionaram o seu trajecto poético que, por ser autêntico, encontrou no tempo encantado iln infância, em Gatão, o útero, a mãe. Nunca se afastará dela e não deixará de a nomear, mesmo quando projectada em seres e coisas - imagens da infância. Eterna criança procurará sempre a deusa, a mãe; a infância, a saudade... A seus olhos todas eram puras, louras, brancas como a neve do Marão, e o que lhe importava era recordar a amar, amar a recordar.
Maria do Carvalhal, a propósito da dedicação de seu tio à afilhada, esclarece:
«Ele que estava na máxima força e juventude espiritual, quando o viam com a pequena e o cortejo da família atrás, julgavam-no enfraquecido do espírito - nunca nenhum espírito esteve tão forte e esplendoroso, porque ninguém amou tão totalmente!
A humanidade vê sempre o ridículo no sub¬lime.» (Pascoaes).
Em plena fixação amorosa, Pascoaes sofre um rude golpe. Sua mãe morre a três de Fevereiro de 1952.
A sobrinha-afilhada do Poeta, Maria José Teixeira de Vasconcelos, é quem, na revista Vértice de Março de 1953, nos conta que sua avó, no leito da morte, terá dito ao Poeta, numa última confissão, como quem pede desculpa: «Já não posso viver mais !» Após uma vida longa, de mais de noventa e seis anos, extinguia-se para sempre a luz que ilu¬minara o poeta.
Combalido com a morte da mãe, Pascoaes, agora mais do que nunca, entrega-se totalmente à sua réstea de esperança, a Adelaidinha.
Guiado pela paixão atravessará os últimos meses de vida.
À afilhada legará em testamento algumas das suas obras:
«Também o crime nas chamas do amor se purifica... E eu próprio devo o ser, actualmente ao amor que dedico a uma criança. A ela me prendi como nos prendemos à vida, que nos quer fugir (...) Quando o amor é só ternura elevada ao infinito, será capaz de purificar os nossos crimes sensuais?» (Conferência proferida na Casa Museu Guerra Junqueiro, ano de 1950 - in: Teixeira de Pascoaes de Mário Garcia).
Esta «ternura elevada ao infinito» é a do imago materno «capaz de purificar os nossos crimes sensuais».
No mês de Dezembro, o ano da morte física de sua mãe, Pascoaes encerra-o como se se tratasse de uma obrigação a cumprir. A mãe e o filho - o ano de todas as mortes - o ano eleito da Saudade.
No quarto da velha casa, rodeado do mundo de sombras «nesta velha casa, no meio desta paisagem materna,o que há de banal, no meu ser desaparece; tomo a infinita seriedade das coisas, que mostram o vulto escuro, ao doirado riso do sol», o D. Quixote português, o enamorado da Quimera, o peregrino do Ideal e da Beleza, na companhia da Nova Luz - a Adelaidinha -, adormece para sempre.
E desse momento de silêncio parado, de ouvi¬dos atentos à paisagem, uma voz se levanta ecoan¬do pelo céu:
«Poetas, cantai os fantasmas (...) o que é eterno... Cantai o que não existe: o resto é cinza.»

'E como quem diz: Hei saudades de mim, doutro que tinha uma ligação próxima com minha mãe.

in: O Fantasma de Pascoaes

sexta-feira, junho 15, 2007

A SAUDADE

«Ó Saudade! Ó Saudade! Ó Virgem Mãe Que sobre a terra santa portuguesa, Conceberás isenta de pecado, O Cristo da Esperança e da beleza!»
Teixeira de Pascoaes

A Identificação de um País

Pascoaes vai levar às últimas consequências a sua teoria poética imiscuindo-se napràxzs políti­ca. Será nesse complexo ideal que aparecerá o movimento da Renascença Portuguesa, movi­mento regenerador e reformador que contará com inúmeras figuras, como Jaime Cortesão, Afonso Duarte, Mário Beirão e Leonardo Coimbra. O movimento terá ao seu serviço a revista A Águia, que no texto manifesto concluirá:
«Sim, a alma portuguesa existe, e o seu perfil é eterno e original.
Revele-mo-la agora a todos os portugueses, para que todos possam cumprir o destino que por natureza, nascimento e sangue lhe pertence. É, então, um novo Portugal, mas português, que surgirá à luz do dia e a civilização do mundo sen-tir-se-á mais dilatada» (A Águia, n°l, 2 série, 1912).
O que queria afinal o grupo de Pascoaes?
~Renascer é regresssar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida» (...) «Renascer é dar a um antigo corpo uma alma fra­terna, em harmonia com ele.» E mais além: «Se não existe uma alma portuguesa, teríamos de evolucionar conforme as almas estranhas, teríamos de nos fundir nessa massa amorfa da Europa; mas a alma portuguesa existe, bem desde a origem da Nacionalidade...» (A Águia. n°l, 2a série, 1912).
O Poeta tinha já, por essa altura, escrito alguns dos seus melhores livros - Terra Proibida; Vida Etérea, As Sombras, Senhora da Noite, Maranus e Regresso ao Paraíso.
O Dom Quixote português iniciava a pregação em defesa da sua virgem, a Saudade.
A Saudade vai ser o testemunho que se trans­mitirá de geração em geração, a voz da Pátria.
A inquietação religiosa do poeta e a sua ambição filosófica levaram-no por esse Portugal fora a pregar a Boa Nova: «...Eis-me a pregar a Saudade por várias terras do País! E isto também é interessante porque quixotesco. Há três dias preguei na Póvoa de Varzim (...). O certo é que o povo, pondo de parte os bacharéis (esta palavra tem um sentido especial entre nós) empe­dernidos, fixados em imutáveis formas de banali­dade e tédio, se vai entusiasmando, pressentindo qualquer coisa que lhe fala, embora vagamente, à alma.» (Epistolaria Ibérico - Carta a Migue/ de Unamuno).
Esta íntima relação com o Povo, esta quase cumplicidade, vai Pascoaes gravá-la numa frase demonstrativa do seu sentimento:
«Em Portugal o que existe é o Povo e os seus Poetas: o resto é carne morta» (in Seara Nova, 1966).

O Projecto Po(ético)lítico sem Rosto (O Rosto da Saudade)

Ao colocar a Saudade (a mãe perdida, a da infância) no centro da sua «filosofia» Pascoaes propõe-se revelar o alcance universal duma con­cepção do mundo genuinamente lusíada.
No fim da sua existência física, em 1952, Pascoaes escreve (A Minha Cartilha):
«Uma teoria religiosa ou filosófica necessita duma base que seja incerta ou oscilante, entre um sim e um não.» - esta expressão demonstra a ambivalência, face à Mãe, de quem a teve dema­siado próximo - «É nesta oscilação que se afir­mam as verdades alcançadas pela nossa inteligên­cia. Mas a base oscilante tem de ser de pedra... filosofal; filosofal para os filósofos, e de pedra ou Pedro para os místicos.
Necessito da pedra filosofal que eu, não sendo filósofo, filosofo; e, não sendo padre, digo missa, no altar mor da minha freguesia - vulgo, Ladário» (A Minha Cartilha).
Ao confessar que «não sendo filósofo, filosofo e não sendo padre, digo missa», dá-nos, por certo, o que há de sentimento relativo, brumoso, na ideologia da Saudade, que se tornaria, pela acção do Poeta, mística nacional. Esta expressão revela-nos, também, o que há de recusa da mulher (o celibato vem com o Padre, em Portugal, ou devia vir...).
Surge o movimento da Renascença, movimen­to político-cultural que congregou à sua volta, como já foi referido, um invejável grupo de in­telectuais apóstolos da Saudade e que, no âmbito desse movimento criou bibliotecas, universidades populares, onde eram dadas lições; proferidas conferências; onde a Palavra era revelada.
António Sérgio lançará a crítica racionalista, nas folhas de A Águia contra a filosofia que havia erigido a Poesia como conteúdo etnoreligioso, guia dos destinos da Nação.
Mas, Pascoaes, partindo de outra lógia, dirá: «Os portugueses são seres animais e humanos; a Pátria portuguesa é um ser espiritual», como o imago da mãe, acrescentamos nós. E referindo-se ao cristianismo: «O nosso cristianismo tradicional adapta-se espontaneamente a esta concepção religiosa da Família, que ele diviniza pelo culto de Maria (avatar da Mãe, dizemos nós), o tipo supremo da Mãe. E diviniza a nossa Pátria, pela intervenção de Jesus na fundação de Portugal, como divini­zou a humanidade pelo sacrifício do calvário» (A Arte de ser Português).


In: O Fantasma de Pascoaes

segunda-feira, junho 11, 2007


COMEMORAÇÕES DO

CENTENÁRIO DO NASCIMENTO

DE MIGUEL TORGA


A Câmara Municipal de Coimbra leva a efeito, no próximo dia 16 de Junho, pelas 18horas, no Pavilhão de Portugal, uma sessão de poesia onde participarão alguns poetas amigos e admiradores do autor de Orfeu Rebelde.


NÃO FALTE!

sábado, junho 09, 2007

PORTUGAL



Reduziram-nos a um cantão europeu
e nós somos do mundo.


in: Ressurreição

Teixeira de Pascoaes: O Criador de Mitos

«Poesia é mais verdadeira que a própria História»
Aristóteles

Os Primeiros Versos

As figuras arcaicas, os mitos da infância, foram-se incorporando com o tempo na persona­lidade do poeta. A sua imaginação mítica, a sua angústia existencial virão, mais tarde, a atingir a divinização com a Saudade.
A poesia em Pascoaes move-se no plano da inspiração contra a inteligência, estando a finali­dade da Arte na inspiração.
A propósito deste problema, a inspiração contra a inteligência, João Gaspar Simões, recorrendo a Proust, diz-nos que «na arte tudo está no indivíduo e que cada indivíduo recomeça por conta própria a tentativa artística ou literária (...). Hoje um escritor de génio tem tudo por fazer ou tudo a fazer».
Ora, Pascoaes, desde os primeiros versos assume a obra por fazer, o tudo a fazer, o senti mento como originalidade intuitiva, superando a inteligência.
A sua capacidade de criar do nada (e pela palavra) só reservado a Deus, vai Pascoaes utilizá-la dando à poesia uma dimensão religiosa, num esforço ilimitado de sublimação das pulsões inconscientes reminiscentes da infância.
Pela vida fora se manterá a eterna criança que não sabe distinguir o seu mundo do dos outros - mundo espectral de sombras e fantasmas buscando o infini­to: «As coisas que me cercam, silenciosas/São almas a chorar, que me procuram» ( Vida Etérea).
Clama por sua Dulcineia: — Ó Saudade, ó Saudade (...), ó veio de água cristalina/Onde esta sede de infinito saciamos» (Versos Pobres).
O seu primeiro livro publicado - Embriões mereceu de Guerra Junqueiro o seguinte comen­tário dirigido ao pai do poeta: «diz ao teu filho que se deixe de versos, que trate de outras coisas» (Pascoaes de M. C.).
Tinha, ao tempo, Pascoaes dezassete anos de idade.
Desse primeiro livrinho destacamos estes ver­sos sem título:
«Já é negra para mim a mocidade... Eu exalo um suspiro desbotado, Mas ele cai no chão cristalizado Em lágrimas amargas de saudade»

Em Coimbra

Na cidade de Coimbra frequenta o último ano do Liceu e matricula-se em Direito.
Numa casa situada junto do Arco do Bispo, o poeta acorda pela primeira vez para a cidade do Mondego: «No dia seguinte, de manhã debrucei-me na janela do meu quarto, a contemplar dum terceiro andar, o panorama da cidade. Impres­sionou-me, logo, a pedra calcária dos edifícios, lisa da mesma cor dos ossos. Nunca vira tal pedra, a não ser no mausoléu dos cemitérios» (O Advogado e o Poeta).
Esta cor amarelada (pedra de Anca) a que o poeta se refere, «cor dos ossos» impressiona-o por estar ligada às suas obsessões - o medo da morte -o Dia dos Finados - o dia do seu nascimento.
«Cheguei como um bárbaro do Norte, a esta suave Itália pequenina. Enlevei-me na contem­plação de uma deusa que me falava e pousava as mãos na fronte. A paisagem de Coimbra é uma deusa e um deus o panorama do Marão.
Depois de um Júpiter fragoso, apareceu-me esta Flora delicada que me enterneceu profunda­mente. Senti uma lágrima nos olhos que era doce. Esta lágrima é tudo o que te devo, Coimbra! Andei cinco anos a criá-la e ficou-me, para sem­pre, nos olhos, entre lágrimas salgadas» (Livro de Memórias).
Relacionou-se, nessa época, com boémios e poetas (Pad'Zé, Fausto Guedes Teixeira, Augusto Gil, Hilário) que pelas ruas da velha Alta desa­parecida iam fruindo «(n)aquela encantada e quase fantástica Coimbra», utilizando a expressão de Antero de Quental - pai espiritual do poeta1.
Em Coimbra publica duas éclogas, Belo l e Belo II. Tempos mais tarde publica Sempre e, desta vez, Junqueiro envia-lhe uma carta, onde mani­festa regozijo pela obra acabada de sair:
«O meu amigo é naturalmente poeta (...) em conclusão, o seu livro é uma obra de arte infantil, deixando adivinhar, a relâmpagos, um belo poeta predestinado» (in Teixeira de Pascoaes, de Mário Garcia).
Em Sempre a natureza chora acompanhando o poeta:
«Tudo o que existe,
Aquém e além do nosso olhar
Bailava no meu choro.
Que é chorar?
E ver o sol, lágrima de ouro,
Pela face de Deus, a deslizar.
E ver o mundo
A cantar
O seu nocturno espírito profundo
Em gota de água e dor que vai tombar;
Subir talvez no azul dos céus
Bater as asas para Deus,
Voar...»
Pascoaes acredita na sua condição trágica de visionário, transformador da realidade.
A antiga fobia à instituição escolar manter-se-á. Considera os professores universitários «caveiras de erudição arqueológica que encarnam as almas cépticas cios sábios (e) a Universidade um inferno onde se reuniam todos os demónios de Portugal» (O Advogado e o Poeta).

A Saudade a começar

Pela Saudade - o amor -, o poeta vencerá a solidão, e o Povo aprenderá. Foi Goethe quem no-lo disse: «Só se aprende com quem se ama».
A Saudade, como mito de lembrança e de desejo, de dor e de prazer, vai alcançar uma visão panteísta (isto é, dependente do imago materno) do mundo, já enraizada pelo poeta na sua infância.
Pela saudade pascoaliana compreender-se-á que comparticipamos todos num ser universal e através dela o poeta dará uma resposta, nossa, lusíada, ao simbolismo importado de França.
António Nobre já o havia tentado, mas só Pascoaes o conseguirá através de um saudosismo simbolista impregnado de transcendentalidade e subjectividade.
Segundo Freud, a produção artística estará li­gada à sublimação, assim como à superação das pulsões inconscientes reminiscentes da infância.
Em Pascoaes o mundo dos símbolos, de arquétipos, de fantasmas, está ligado aos primeiros anos de vida, só que Freud conclui entendendo-o de natureza erótica, enquanto que, segundo o que nos foi dado observar, em Pascoaes nada nos permite concluir dessa maneira.
O afastamento do poeta da velha casa tinha contribuído para aumentar a saudade, sentindo--se longe da pureza original, da infância, aumen­tando-lhe o desejo de ser - de voltar a ser.
A saudade trá-la dentro de si como um desti­no - «nasci no dia eleito da Saudade».
Contrariamente ao que é comum pensar-se, a Saudade, entendida como Pascoaes a viu, não é sentimento depressivo, é algo de saudável que se projecta e acredita no Futuro.
Pascoaes vai viver entre dois tempos - o Passado e o Futuro - com olhos postos no infinito; recusa o Presente (o aqui e agora rea­lista) e o Futuro (que substitui pelo infinito). Tal fica a dever-se ao imago materno muito pre­sente.
O grande mestre salamantino, Miguel de Unamuno, referiu-se a Pascoaes nestes termos:
« dizia adeus ao sol, falava ao vento, saudava a aurora e lia no infinito».
Introduzindo o Passado na perspectivação do Futuro, a Saudade ter-se-á tornado sentimento de defesa (e porque não de alienação?) individual e colectiva.
Buscando as suas raizes no sebastianismo, sen­timento de raiz popular, por intermédio do Poeta de Amarante e seus companheiros da revista Águia, foi elevada a Saudade aos mais altos cumes da abstracção, atingindo o sagrado.
F assim, quanto mais o tempo é Passado, mais é Futuro.

«I don't know...»

Licenciado em Direito, Pascoaes abre, de parceria com Carlos Babo, escritório de Avogado em Amarante.
«Entre o poeta natural e o bacharel à força ia começar um duelo que durou dez anos, tantos como o cerco de Tróia e a formatura de João de Deus (...). Viver dez anos, num escritório, a lidar com almas deste mundo, o mais deste mundo que
é possível! - eu que nascera para outras convivên­cias» (Livro de Memórias).
Em Julho de 1906, transfere-se para o Porto e vai ser aí que viverá o seu grande amor - Leonor Dogge, a Eleonor cie Maranus.
Escreve a sua irmã: «Quando a vi pela primeira vez, eu tive positivamente a impressão nítida de que encarava com a própria alma miste­riosamente transformada em corpo, perante mim» (Olhando para Trás vejo Pascoaes).
Leonor, segundo se sabe, era enfermeira e fala­va cio poeta chamando-lhe «the man of the eyes». O ideal de mulher era, no seguimento cio ideal romântico, bem simbolizado na «Purinha» de António Nobre, o da virgem, branca, loura, toda
céu...
O Poeta vai dar por essa «aparição» no eléctri­co.
Nunca terá falado com a Deusa «(...) E quem se atreve a declarar-se a uma deusa?» (O Advogado
e o Poeta).
O seu amor feito de distância, ausência e sonho, levá-lo-á a longínquas paragens, atrás do Ideal, e assim, num dia de Novembro (o mês do seu aniversário), a bordo do «Augustine» parte
para Inglaterra.
Tudo se irá passar prosaicamente. A «noiva» recebe-o com uma resposta vaga de quem finge não entender:
«I don't know... I don't know...» Eis um acto falhado por parte do poeta: Conseguiu o que o seu inconsciente queria, pro­jectando a culpa sobre «o outro» (ela).
Pascoaes foi sempre um apaixonado e Leonor uma svLafaníasia, mais um ideal que, por demasi­adamente elevado, exterior ao poeta, não correspondeu, como não podia deixar de acontecer, ao seu icleal - o de criador de mitos.
A propósito da obra do poeta e da importân­cia da sua mãe nesta, e o papel de Leonor na sua consolidação, impõe-se uma muito curta reflexão:
A obra (e a Saudade) é uma materialização do Fantasma da mãe simultaneamente demasiado assustador se vivido strictu sensu, sob o ponto de vista fantasmático; e demasiado ameaçador se assumisse a forma de uma mulher material que o amasse (motivo pelo qual teve de fazer falhar o pedido à sua Eleonor). Tudo isto mostra que a obra é, simultaneamente, fuga (e sublimação) do fantasma cia mãe; e via de concretização (subli­mação prática) do desejo da mulher cuja confusão (por ele feita) com uma figura demasiado próxi­ma e presente da sua própria mãe o assustava tanto, que se desinteressou do amor físico (um susto, um medo dos maiores!...)

1 A propósito de Antero, a admiração por ele era tanta que levaria Pascoaes aos Açores, em romagem ao cemitério onde o poeta das Odes Modernas se encontra sepultado.

in: O Fantasma de Pascoaes

terça-feira, junho 05, 2007

Pátria

(pensando em Miguel Torga)

Neste lugar de
solidão rendida
só a vida
é verdade.

O horizonte é um muro.

E onde não cabe
o futuro
não cabe
a saudade.



Carlos Carranca

segunda-feira, junho 04, 2007

Teixeira de Pascoaes: A Criança e o Silêncio

«A criança que nunca é respeitada no seu silên­cio acaba por ser incapaz de construir a sua inti­midade»
João dos Santos

O Nascimento

Teixeira de Pascoaes, de seu nome Joaquim Teixeira de Vasconcelos, nasceu em Amarante, a 2 de Novembro de 1877 - «nasci no dia eleito da Saudade» (Terra Proíbida).
Nesse dia, Dia dos Fieis Defuntos, de Outono, crepuscular, possivelmente chuvoso e cinzento, veio ao mundo um poeta - «Todos os poetas se lembram do dia em que nasceram e conservam sempre, nos ouvidos, os gritos da dor parturi­ente», escreverá no Livro de Memórias.
Detenhamo-nos, por instantes, nesta afir­mação que, aparentemente, nada tem de científi­co. Segundo o Doutor Fernandes da Fonseca, «o acto de nascimento constitui uma poderosa fonte de angústia ou, pelo menos, de um sentimento ambíguo de prazer e desprazer, de alívio e de angústia». (Psiquiatria e Psicopatologia II).
É notável, tendo em conta o esclarecimento médico, a capacidade intuitiva do Poeta. Aliás, segundo o mesmo autor, «os modernos conheci­mentos de natureza molecular da memória vie­ram confirmar uma concepção empírica já aflora­da pela psicanálise».
Uma das suas sobrinhas, Maria do Carvalhal, na obra comemorativa do centenário do nascimento do Poeta, referindo-se à extrema sensibilidade de seu tio, generaliza.: «A Alma dos Poetas é de cera, nela fica gravada a mais leve emoção» (Pascoaes). •

A Mãe

Pascoaes não será privado da companhia da mãe. Ela acompanhá-lo-á quase até à morte. Falecerá com noventa e seis anos e meio, onze meses antes cio Poeta.
Após o falecimento da mãe, o Poeta terá sen­tido o seu espaço, o de sempre, para sempre per­dido, e ainda que dedique a uma sua afilhada (filha dos caseiros) uma terna, quase doentia paixão, o mundo que acabou - sua mãe - em breve o receberá no outro.
Qual terá sido o papel da mãe na obra de Pascoaes? Terá ela sido um fantasma de carne e osso? A segurança, o refúgio à insistência obsessi­va dos Medos?
Segundo Gerard Mandei, na obra La Revolte contre lê Pére, tem o Fantasma por função proteger a fase precedente, demonstrando um sentimento contínuo de existência. Pascoaes vai sentir neces­sidade de se proteger da Vida.
O Fantasma, segundo Mandel, opor-se-á à maturação do indivíduo, maturação que se prende com o fim da Infância, idade que o poeta de Maranus sublimará.
Mais tarde, como veremos, Pascoaes irá adop­tar Pais espirituais que lhe darão respostas para a sua fixação materna:
«De olhos no Além,
Ergui um dia às nuvens o meu canto,
Como outrora envolto em misterioso encanto,
À tardinha rezava ao pé de minha mãe»
Segundo João dos Santos, uma criança aos seis anos sabe tudo da vida: andar, falar, ler, sabe fazer a leitura das situações e a leitura dos objectos à sua volta. Não sabe ler os símbolos pelos carac­teres gráficos que lhe apresentamos, não sabe, não pode saber. Mas sabe trocar afecto, dar e receber. Será que Pascoaes vai com o saber fundo da infância, atento ao que o rodeia, intuir, amar, e imaterializar o real à medida da sua sensibilidade, do seu olhar virgem que assim permanecerá? E a mãe será a guardiã desse passado infantil?
«A minha imagem infantil, onde ela vive ainda, perfeita, é na memória da minha Mãe. Ali é que vive ainda, como num íntimo refúgio. Lá estou adormecido nos teus braços. Bate-me a luz nos olhos, acordo e brinco ao sol de Deus» (Duplo Passeio).
Este texto é bem revelador da ligação do mundo infantil à paz materna.

O Pai

A mãe era, segundo Maria do Carvalhal, a sim­patia e o dinamismo em pessoa. «O Pai era bem talhado para ser pai daquele Poeta» (Pascoaes).
Tendo em conta outras informações e escritos, queremos crer que esta afirmação a propósito do seu progenitor não é totalmente correcta. Se observarmos que é nos primeiros anos de vida que a imagem do pai se materializa e estabiliza, sabendo nós que seu pai utilizava um método rígido de educação, obrigando os filhos, mesmo os mais novinhos, a tomarem banho na água gelada do tanque todos os dias, mesmo no inver­no, é de imaginar que Pascoaes não se sentisse muito identificado com ele.
O pai vai-se tornar um símbolo de autoridade e de poder, e a criança não terá outra alternativa senão submeter-se.
Mais tarde, no entanto,já homem e com banca de advogado em Amarante, as relações entre um e outro serão como que de irmão para irmão, não se distinguindo, senão pela idade, o filho do pai.
Se atendermos ao verso «O que há de mim de lírio e de donzela», facilmente concluiremos que esta relação pai/filho só terá sido possível pela cultura, erudição que ambos possuíam, e não pela sensibilidade. Eram agora dois adultos.
Segundo Fernandes da Fonseca «uma das relações a que frequentemente se faz alusão, após o advento da concepção psicanalítica, é a de uma certa coexistência entre a criatividade artística e a homossexualidade» (Psicologia da Criatividade).
Freud foi o primeiro a referir-se a esta ligação. Em Pascoaes tal não se terá verificado, mas saben­do nós que nas sensibilidades mais apuradas há
um misto de masculinidade e feminilidade, é razoável considerar a infância de Pascoaes na sua relação com o pai como de um considerável afas­tamento afectivo.
Fernandes da Fonseca diz-nos ainda que o poeta sentiu dificuldades em ultrapassar a fase edipiana devido à devoção que guardava à mãe, manifes­tando muito cedo uma acentuada religiosidade, que vem a ter uma grande influência na sua obra.

O Ideal do Eu / O Eu Ideal

Como é sabido, o Eu Ideal, assim como o Ideal do Eu, são sentimentos que estão ligados directa­mente ao Imago; imago que pode ser materno ou paterno, assim como Bom ou Mau - imagem que a criança guarda do pai e da mãe.
O Ideal do Eu está dependente do imago pater­no, ao invés do Eu Ideal, que se encontra rela­cionado com o materno.
O Eu Ideal é um fantasma correspondendo a uma ideia-força que entra no campo da consciên­cia e a inunda - processo de satisfação de uma necessidade sentida sem se recorrer a qualquer acto externo.
O Eu Ideal é uma versão fantástica de si próprio e que corresponde à capacidade de sonhar de olhos abertos - o fantasma, enquanto que o Ideal do Eu corresponde ao desejo mais ou menos realizável tendo em conta o meio em que se inseriu, e está ligado à função do pai.
O Eu Ideal corresponde à fantasia, acabando por anular todos os pensamentos - uma imagem--força que está ligada à função da mãe.
O fantasma e a sublimação artística prendem-se, como é óbvio, ao Eu Ideal, levando para formas de pensamento mágico. Mas a criação artística envolve o acto, e é o resultado da orientação com-portamental do Ideal do Eu pelo Eu Ideal, que assim acaba por ser «retratado» ou «materializa­do» e proposto aos outros.
Sabendo que o imago é a projecção de uma lembrança da infância sobre uma pessoa ou um objecto e que em Pascoaes se torna notória a pre­dominância do imago materno, é possível, sem errar, dizer que a mãe preenche toda a sua obra. Sendo sempre boa, doce, a síntese de todas as vir­tudes - a paz.
É de notar a forte ligação natureza - imago materno. Pascoaes vai realizar q fantasma fundin­do-o com a terra. E mais tarde, através da arte, proporá um inconsciente colectivo feito de arquétipos, que levará à elaboração do mito da

A Religião

De tenra idade, o pequeno Joaquim organizou uma Procissão de Meninos de Pascoaes recrutados nas escolas, todos fardados com anjos e outras figuras, vestidos por sua mãe.
Por volta dos sete anos pegou em duas tábuas, fez uma cruz, deitou-se nela e pediu que o amar­rassem.
Na obra Olhando para trás, vejo Pascoaes, de sua irmã Maria da Glória, o poeta dedica às velhas árvores um carinho extremo:
«Outra coisa de que ele muito gostava de tratar, como a um enfermo, as árvores velhinhas sentindo-as reviver ao contacto das suas mãos. Junto à parede do seu quarto havia um lódão carcomido pelos anos; só tinha sinais de vida nas raízes. Pascoaes conhecia essa árvore desde criança; tinha por ela uma grande ternura e quis fazer tudo para a ressuscitar. Encheu-lhe os orifícios com barro fresco, ligou-os com cortiça e arame e todos os dias a regava. Hoje, é um lódão ressuscitado, uma árvore frondosa como dantes, cuja sombra das ramagens, nas noites de luar, lembra uma renda estendida no chão».
A criada Lucrécia contara-lhe estórias de almas penadas, diabos e bruxas, enchendo a sua imagi­nação de criança.

A Escola

Os diversos textos, assim como os depoimen­tos que trataram a relação poeta-escola coincidem no desinteresse e mal-estar que esta lhe provocava.
Nas aulas, acompanhado quem sabe se dos seus fantasmas, distraía-se, evadindo-se, por certo, em formas de pensamento mágico.
Seu pai, uma vez mais identificado com o que desagrada ao poeta, obrigava-o «... a estudar, logo ao romper do dia, à luz duma candeia bruxu-leante nas gélidas manhãs de inverno» (...) «... tinha que ir a pé, de madrugada, pela estrada fora, coberta de gelo, até à vila de Amarante, ao Largo do Campo da Feira, onde o Padre Sertório tinha a sua escola. Ia muito encolhido e tímido, como o próprio se descreve nas Memórias. Se não fossem aquelas madrugadas, a sua vida na aldeia tinha sido completamente feliz; mas todo o dia pensava na ida para a escola na manhã seguinte» (Pascoaes, de Maria do Carvalhal).
Neste excerto é evidente a associação da esco­la ao pai e do pai à autoridade, ao dever, ao invés de sua mãe, que está ligada à aldeia, à casa.
As aulas eram um suplício. E, alheio, o poeta lá deixava correr as horas enquanto, aos poucos, ia configurando a paisagem do Marão.
Esta aversão à escola vai perdurar mesmo para além da Universidade.
A ida para a escola era, por certo, a passagem do natural para o artificial. Mas lá foi passando... nos exames.
No Liceu, em Amarante, reprova no exame de Português e o seu professor confessa «que ele não sabia e era incapaz de vir a saber» (Pascoaes de M. C.).

A Solidão

De tenra idade, o poeta começa a demonstrar uma visão muito particular da realidade.
O seu apego ao passado (ainda criança) não deixa já de se impor como característica primeira do seu modo de ser. É o poeta quem, no seu Diário de Memórias, no-lo revela:
«Tinha sete anos. Entre mim e os outros não havia distância. Eu era tudo e todos. Coisas de pessoas que eu amasse, adquiriam logo o encanto do meu ser, que não era ainda corpo e, muito menos um esqueleto; era uma impressão alada e viva, irmã da luz.
Convivia com fantasmas nascidos da minha tristeza, essa manhã de nevoeiro. Falavam-me. As vozes tinham baixos relevos de silêncio e alturas vagas de luar. Sugeriam-me, como ainda hoje me sugerem, sentimentos que excedem a dor e a ale­gria e esfumam a nossa presença humana, no outro mundo» (Livro de Memórias).
Maria do Carvalhal acrescenta ao tema proposto:
«Sempre que apareciam visitas o menino refu­giava-se na solidão dos montes. O Pascoaes que, mais tarde, era tão comunicativo e falador, em criança era sisudo e cabisbaixo» (Pascoaes).
Mais uma vez se torna evidente o desajusta­mento do pequeno Joaquim em relação ao mundo dos adultos - o do pai. Procura a solidão e o silên­cio.
E o seu mundo de fantasmas aos poucos a for­mar-se. Com a palavra escrita aumentarão as suas capacidades intelectuais, transformando a palavra, também ela, num fantasma.
«O mundo primitivo» (a mãe boa, fonte de vicia), mais tarde natureza humanizada, em breve será a Eva Futura, a do mito religioso da Saudade, que tentará dar voz às correntes inconscientes da alma colectiva.

In: O Fantasma de Pascoaes

Diaporama da Crise Académica de 1907


Navegando na net, descobri esta montagem de imagens (com música de Carlos Paredes por fundo) sobre a Crise Académica de 1907.






As primeiras imagens são sobre Coimbra, só depois surgem imagens sobre a Crise Académica propriamente dita. Uma crise que começou com a reprovação do Doutorando em Direito José Eugénio Dias Ferreira. Os estudantes apoiaram o reprovado na Tese de Doutoramento. Vivia-se um clima de ditadura com João Franco. João Franco manda fechar a Universidade para acalmar os ânimos, só que os estudantes de Coimbra vão a Lisboa apresentar protesto (ouviram o apoio da população da capital) e nunca cederam, por isso, ficaram conhecidos como "os intransigentes". Destacaram-se entre os líderes desta greve académica: Carlos Olavo, o futuro dirigente Republicano António Granjo, o fututo Professor Universitário Bissaya Barreto e Trindade Coelho (fillho do escritor do In Illo Tempore). Foi quando se assistiu à primeira ida da Academia de Coimbra em peso (e de combóio) a Lisboa. Bernardino Machado (futuro Presidente da República) apoiou os estudantes mas, no meio disto, o mais interessante, foi que um dos principais grevistas e agitadores da greve era, nem mais nem menos, que o filho do ditador João Franco, Frederico Franco, à época estudante Universitário.
[produção do Almanaque Republicano]

Rui Lopes
http://guitarradecoimbra.blogspot.com/