Carlos Carranca - neste lugar sem portas

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Com Miguel Torga à mesa da Tertúlia

Palestra sobre a vida e a obra de Miguel Torga
pelo Dr. Carlos Carranca

Escola Secundária D. João V Damaia

Terça, dia 6 de Março às 10h

Dinamizado pelo grupo de Filosofia

Entrada livre

CIGANOS

São nómadas de sangue e de magia.
Habitam o lugar que ainda não há.
Vêm de longe, da aragem fria,
e do ventre da terra a levedar.

São do fundo do tempo, são
conformes ao vento, são errantes.
Vêm do mundo e lêem-nos a mão:
É a sina de serem como dantes.

Do sangue frio da morte,
do sangue quente da vida,
levantam suas tendas de peregrinos.

Dão guarida ao viver da sua sorte.
Há miríades de luz apetecida
no fundo dos seus olhos de meninos.

in Neste lugar sem portas

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Uma Estética da Liberdade


O conjunto de uma obra pessoal corresponde, quase sempre, a um acto revolucionário. Sobre se essa obra se inscrever no domínio de uma consciência cria­dora e se ela obedecer a uma determinada crença, a qual nem sempre deverá corresponder a uma ideolo­gia de cunho político. No caso da criação poética, salvo os casos de comprometimento declaradamente político, trata-se de uma ideologia poética, uma ideo­logia estética, através da qual o autor irá pautar-se, seguindo o rasto do seu destino pessoal. Toda a criação é a preparação do futuro. O mesmo não diríamos da eternidade, dimensão que ultrapassa o nosso hemis­fério de inteligibilidade. Sejamos razoáveis: um autor prepara o futuro. E esse gesto, que é sempre um gesto pessoal, poderá entroncar com uma possibilidade colectiva, histórica ou, mesmo, trans-histórica. Porque o homem que procura o caminho certo para si próprio está a lançar o foco luminoso definitivo para que todos os outros possam caminhar sobre ele sem o perigo de se perderem no caminho. A dimensão poéti­ca, de acordo com o velho Aristóteles, não é apenas do domínio da metáfora; basta que, dela, faça também parte o sonho para lhe conferir sentido.
Já falámos de uma herança poética a propósito da poesia de Carlos Carranca. Essa herança é, na verdade, um baptismo de raiz. E foram os executantes desse acto baptismal autores como António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga, bem como todos os outros que fizeram da verdade da poesia a sua bandeira defi nitiva, como aconteceu com Afonso Duarte. É a par­tir da obra destes autores que poderemos falar numa poética da liberdade, que é também o mesmo que dizer uma poética da Saudade. Utilizamos a palavra conferindo-lhe o seu sentido etimológico mais pre­ciso: o de estado saudoso, de contornos indefinidos, uma ausência do racionahsmo radical, uma filosofia da criação. Em suma, não apenas um estado de espíri­to, mas essencialmente uma filosofia. Deste sistema sem sistema é possível determinar um conjunto de coordenadas que se mantêem, relativamente cons­tantes, que se manifestam a par e com coerência, mas sem o traçado de um programa prévio, estipulado artificialmente.
Antes de mais, que relação existe entre os con­ceitos tradicionais de "poética" e de "estética"? Haverá fronteiras entre eles, existirão desligados, ou, simplesmente, unem-se, num esforço unificador e quase inconsciente? Entrar no domínio da estética poética é entrar, no vértice de uma consciência; de qualquer consciência. É necessário, para isso, que essa consciência seja, pelo menos, consciência de si mesma. Desse modo poderá dar acesso a toda a realidade con­tingente e o autor encontrará a sua linha de rumo. O excesso de consciência poderá levar a um excesso de realidade, como preconizou Husserl na sua filosofia da intencionalidade. Não nos interessa, porém, fazer da leitura da poesia de Carlos Carranca uma leitura fenomenológica, embora houvesse lugar para ela. Não se poderá dizer que o veículo motivador da poesia de Carranca seja apenas o da motivação material. É certo que o périplo criativo do autor se enforma num ima­ginário que lhe é muito próprio e que, ao longo destes vinte e um anos manteve, num estado de coerência, justamente, com a sua consciência original, a sua consciência de raiz, para usarmos uma palavra cara ao autor. Esta coerência, este imaginário unificador, pos­sui, para já, uma ruptura assinalável, visível no con­junto de poemas inéditos a que intitulou Homo Viactor. Lá iremos um pouco adiante.
Não podemos entender a experiência poética de um autor, mesmo quando esta procura uma via expe­rimental, isolada de um contexto onde outras expe­riências se entrecruzam. É por isso que, no caso de Carlos Carranca, podemos, com propriedade, falar de uma herança poética directamente filiada na temática da Saudade, temática que enuncia alguns dos momen­tos maiores da lírica portuguesa. Há aqui uma ideia que gostaríamos de realçar, por paradoxal que pareça: é a circunstância de uma filiação (a qual, neste caso, consideramos sólida) que permite, justamente, um dos grandes princípios da criação: a liberdade poética. Queremos com isto dizer que, ao contrário do que parece, a filiação, a continuação ou a permanência, numa dada corrente, longe de parecer submissão, re­presenta a capacidade de um autor assumir em si a sua verdade, sem o temor ou o complexo de um dedo acu­sador, sem a obstinação da novidade. É na fidelidade a uma herança que se determina, de uma vez por todas, o acto revolucionário de que falávamos no início.
O criador da palavra essencial pode ser revolu­cionário e moderno ao mesmo tempo. Ou seja, é pos­sível executar o acto revolucionário e moderno ao mesmo tempo. Hoje, ser moderno está fora de moda. A poesia moderna não existe verdadeiramente por força de não ser considerada poesia. O que hoje existe, para além da própria condição pós-moderna, que é inevitável para a sobrevivência de um autor, é o domínio da forma sobre o domínio do absoluto. O que nos é visível na poesia contemporânea para além desse "mosaico fluido" de que já se falou, algures, é o esforço desesperado de traçar as novas cartas de nave­gação, desta vez já não nos espaços siderais, mas num quotidiano cada vez mais confuso e onde o destino dos homens se cruzam numa ambiguidade de certezas. Existe a certeza de tudo, mas essa certeza é, ao mesmo tempo, a certeza do nada, do vazio da alma, do abis­mo. Essa consciência do abismo também a tiveram os poetas finisseculares, como Nobre, Laranjeira ou Gomes Leal. Porém, existia neles essa consciência efectiva, essa consciência que lhes permitia colocar os elementos da realidade no lugar que lhes competia; essa consciência finissecular, apesar de todas as crises, fazia-os contemplar a vida com uma lúcida objectivi­dade. Desse modo contemplaram a morte com um sorriso, outros procuraram-na, não por gratuito pes­simismo, mas fazendo jus à noção clara de uma con­tingência que os tornaria mortais. Apesar das mutações históricas, o homem contemporâneo, apesar do grito de Valéry, continua a pensar que está possesso de imortalidade. Como Fausto, sedentos de vida, pactuam com a entidade demoníaca das suas almas o ilimitado preço de uma ilusão. Vivem nela e por ela. Talvez seja esse o verdadeiro rosto da espe­rança. Mas sabemos também que a esperança não é o principal atributo dessa condição pós-moderna.
Fazendo o balanço destes vinte e um anos de pro­dução literária, podemos considerá-los, após uma primeira leitura, como a fase de descobrimento do mundo por parte do autor. Carranca ê, ele próprio, um poeta finissecular. A sua poesia recupera uma voz ancestral; uma voz antiga de, pelo menos, um século. Serve, por isso, como uma ponte nuclear entre uma época e outra, um grito de alerta para o homem novo; acima de tudo, uma longa confissão.
Ora, o que é que tem urn jovem poeta para nos confessar?
Em primeiro lugar, a sua grande alegria por estar vivo. Em segundo lugar, uma grande saudade de um tempo que apenas viveu em reminiscência. Esse tempo é o de Coimbra no século XIX, o Fado, a poe­sia de outros jovens poetas como ele, que experimen­taram o que ele experimenta agora. Recorda e revive com o mesmo sentimento com que Nobre se expres­sou. Na verdade, o seu imaginário geográfico estende--se do Douro até Lisboa, embora Coimbra seja o pólo unificador da sua experiência de vida, que é sempre experiência poética, conforme nos está sempre a fazer lembrar.
Carlos Carranca é um viajante da memória. Trata--se de uma memória viva, feita ao sabor de um grande entusiasmo e de sucessivas paixões. Se assim não fosse, Carlos Carranca não teria realizado a sua obra poética. É uma vontade natural, é uma grácil espontaneidade é tudo isso porque o autor cultiva a vida,do espírito de urna forma clara, sem uma ponta de racionalismo, com a consciência de que a palavra poética é uma ini­ciação — a realização poética é feita de acordo com a conquista de certos estádios, os quais o autor recon­hece e identifica no momento certo.
Desde a publicação de Imagem (1981) até Homo Viactor, incluído neste volume, o autor reparte a sua experiência poética ao longo de sete círculos. A ideia, por si só, transporta-nos para várias leituras. De ime­diato nos lembramos dos círculos dantescos e da sua viagem intemporal. Existe, em todos nós, uma condição dantesca, uma quota parte de tragédia, diante do esplendor da existência. A viagem de Dante, justamente porque é uma viagem trágica por nos revelar as contigências do próprio destino humano, constitui a maior prova de iniciação que foi dada a conhecer ao homem. O homem dantesco, tal como o homem de Gabriel Mareei, é um bomo viador, pois o seu espírito possui o dom da transmigração. Para Dante, como para Mareei, o homem faz-se reger por uma sabedoria trágica: o homem sabe que o seu tempo é o tempo do mundo e que o mundo existe porque se cumpre na viagem. Esta viagem nem sem­pre é uma viagem para o fim. O espírito de Dante, juntamente com o de Virgílio, chegam intactos ao fim da viagem: ambos superaram a prova. O mesmo acon­tece na peça de Mareei: o destino é trágico, mas cumpre-se no milagre da viagem.
Por tudo isto a alma do poeta se encontra em movimento. É uma dialéctica trágica, mas justa, pois o poeta não se pode inscrever impunemente nos vários círculos da criação. Dessa luta contra o destino, ele deverá sair ileso, à força de uma morte precoce.
É ainda cedo para que possamos saber se um jovem poeta como Carlos Carranca irá sobreviver à voragem de um tempo cada vez mais demolidor. Porém, à par­tida, uma certeza possuímos: a de que ele já possui a chave de algum segredo cósmico. Queremos com isto dizer que se a poesia de Carlos Carranca possui uma filiação e uma linha de rumo, que é simplesmente o
rumo do espírito, então só lhe resta continuar um per­curso exemplar. No poema "Inventário", que corres­ponde ao primeiro círculo, o autor inscreve a sua filosofia poética. Há nele a consciência do contin­gente, a consciência de que na poesia, como na vida, há uma página que arde e com a qual o espírito do autor se cobre; é um convite ao repouso, mas é um repouso sobressaltado, feito de dúvidas. Corresponde, afinal, ao início da viagem. Este espírito em brasa, incandescente de vida, puro na sua essência, sonhador em excesso, permanece constante ao longo de todos os outros círculos que o autor enumera nesse percurso (quanto a nós curto) de vinte e um anos.
O poeta assume-se como uma força da Natureza, um "mágico das pedras", ao dizer-nos, no poema inti­tulado "Princípio", que nasceu há dez mil anos "de um parto entre montanhas". Trata-se de um espírito do sonho e da luz, uma espécie de panteísmo, embora não completamente assumido, um espírito todo ele composto de uma memória metafísica. De facto, nesta poesia há um constante apelo à memória, pois trata-se de uma memória do afecto: lugares físicos como o Douro, em Vilamarim, São João da Madeira, a sábia e inevitável Coimbra, são lugares de afecto e, por con­seguinte, de uma intensa memória poética.
Sete círculos que representam os sete círculos de uma vida cheia e intensa. Este périplo em jeito de balanço permite ao leitor o conhecimento quase absoluto do poeta. E dizemos quase porque Carlos Carranca ainda possui todas as surpresas de que a poesia é capaz, ou seja, é um dos poucos poetas de língua portuguesa que é capaz de assumir o mistério da poesia em toda a sua verdade, por mais abstracto que este mistério se afigure à crítica do nosso tempo. Quer queiramos quer não, este acto re­volucionário que é a poesia só se compreende e justifica pela assumção deste carácter misterioso; se assim não fosse a Palavra deixaria de possuir a sua consciência metafísica e passaria a ser apenas um artefacto filológico.
Nesta atitude intuitiva que materializa o fenó­meno poético reside a liberdade de Carlos Carranca. Essa intensa liberdade não se afirma apenas pelo facto de o poeta ser livre, mas afirma-se sobretudo porque não se prende com teorias, não se filia em escolas (a não ser na escola do Ser), não se compromete ideo­logicamente, não está sujeita a programas ou sistemas, não pede o arranque de uma prévia racionalidade. O seu campo é, ao contrário de tudo isto, a vasta exten­são do universo humano, mesmo que nesse universo co-existam outros universos em paralelo. Mesmo assim, a poesia de Carlos Carranca está aberta à ver­dade de todos eles.
Sete círculos metafísicos, sete partidas do mundo, sete grandes destinos: eis o grande ciclo da existência. Reparemos nestes sete círculos dantescos: há entre eles uma personalidade singular. No primeiro, o poeta releva-nos o seu inventário existencial; é um sinal de esperança no futuro: essa página que arde não é mais do que esse mistério eterno que determina a magia do mundo.
É no segundo círculo que ficamos a conhecer a geografia da alma enunciada pelo sujeito poético do autor. É aqui que se situam os lugares do afecto de que falávamos acima e é também aqui que Eros, o ele­mento sedutor que determina toda a paixão, surge por inteiro, a auscultar o desejo do mundo. Este é o círcu­lo da paixão: paixão pelos lugares, a paixão amorosa, a paixão pela mãe, a paixão por um Cristo partido, sím­bolo do homem que cai mas que está prestes a erguer-se de novo.
A passagem para o terceiro capítulo faz-nos entrar no domínio da confissão. Trata-se de uma confissão simultaneamente religiosa e pagã, bipolaridade que nos faz acreditar no ilimitado amor humano. Este é também o círculo em que o penitente e o místico se encontram. O poeta multiplica-se entre o místico, o penitente e o confessor. Há neste círculo cinco poemas que nos ajudam a compreender a chave de toda a poe­sia de Carlos Carranca. São eles "Corpo procurado", "Intimidade", "Desejo", "Confissão" e "Memória naufragada". No primeiro poema referido, o sujeito poético fala-nos da procura de outro corpo, no desejo de se compreender a si próprio. Diz-nos:"E busca do fundo corpo / um corpo/fundo// corpo a corpo / encho o interior do mundo". Este poema, que contém a sim­plicidade e a franqueza de todos os outros, transmite--nos a vontade de uma conquista, que é a conquista da alma. Assim, não é do corpo de que o poeta nos fala, mas sim do espírito que a ele subjaz. No poema "Intimidade", o sujeito poético fala-nos, uma vez mais, da ligação da razão com o sentimento. E mais um poema que nos revela o lado místico do autor, que aqui se assume como o confessor do mundo: "As estre­las, lá no céu, brilham./ E eu,/ cosido comigo / nas sombras do meu poço, / ouço / a voz do mundo". Um pouco adiante, o poeta diz: "Uma estranha energia redobra-lhes a tristeza (o autor refere-se às estrelas)/ que se funde em mim/ como se fosse o princípio do flm/ — almas que se encontram numa prece". O encontro entre duas almas, neste caso a alma do poeta e a alma do mundo, fazem-nos pensar que, se o poeta quiser, Deus não se encontra muito longe do seu ca­minho. Antes de passarmos ao poema intitulado "Desejo", entremos um pouco dentro da consciência poética do autor. No poema "Confissão", o sujeito poético confessa-nos a sua impotência para se aproxi­mar da divindade e assume a sua contingência: "Agarro-me às raízes/que não tenho/ e perco-me todo./ Afundo-me no lodo/ desta minha condição/ de Adão/ sem Éden, sem Eva e sem tamanho". É por isso que nos fala de uma "memória naufragada", título caro a um dos poemas em que a metáfora do mar se alia à sua condição de homem limitado no tempo e no espaço: "Nas ondas da memória passeio/ o gosto de me rememorar./ Naufrago. Humano, agarro-me ao madeiro/ do sonho e deixo-me levar...". Uma vez mais, o sonho é elemento vivificador desta experiência poética. No entanto, a chave (ou uma das chaves desta poesia) reside no poema intitulado "Desejo", poema no qual o sujeito poético do autor nos diz mais direc­tamente qual a sua filosofia poética e qual a raiz da sua liberdade poética. Ouçamo-lo: "Gostava de escrever um poema/ com rios dentro, e dentro dos rios, / mari­nheiros. Rumar ao mar/ como quem se busca no poente". Na segunda quadra, após esta confissão de timbre modernista, há a confissão propriamente dita: "Gostava de escrever um poema/ como quem canta, e do canto/ fazer tempo, o de cantar e de partir/ em busca da pureza apetecida". Sem dúvida que esta é a sua maior confissão poética. As palavras valem por si mesmo.
No quarto círculo, o autor dá-nos a conhecer a sua costela cultural coimbrã, pois a temática dos poemas é a guitarra portuguesa. Esta guitarra é o símbolo de todo o lirismo que caracteriza a alma portuguesa e é vista também como o prolongamento do espírito de quem a toca, conforme sabemos a propósito de Carlos Paredes, figura maior no saudoso lirismo do autor.
E no quinto círculo que se vislumbra todo o espíri­to da saudade. Neste círculo, o sujeito poético coloca a par toda a temática saudosa que o marcou ao longo da vida; trata-se de uma síntese de todos os outros cír­culos, menos do último, cujo tom e cujo ritmo são já uma vertente nova na poesia do autor.
É justamente no sexto círculo, um conjunto de poemas inéditos intitulado Homo Viactor (ou homem viajante) que o autor revela uma nova faceta da sua personalidade criadora. Notamos aqui um maior pes­simismo, uma nota jamais vislumbrada na poesia do autor. Mesmo nos poemas em que o pessimismo era mais visível, existe sempre um remate de esperança. Dir-se-ia que o sujeito poético atingiu um patamar em que a busca esmorece, à força de ter perdido a ilusão da vida, essa vida que o autor sempre amou de uma forma entusiástica, preferindo ver nela sempre o seu lado bom e positivo. Haverá espíritos que esmore­cem? Haverá espíritos que corrompem outros espíri­tos? às vezes é a própria força do amor que se torna energia negativa, fazendo o poeta caminhar para um caminho inesperado e menos próprio à sua condição de criador.
No sétimo círculo, o sujeito poético fala-nos de uma "quietude sem repouso". Esta quietude, apesar de tudo, representa um grande sobressalto perante as incertezas que a própria vida vai tecendo. E como se a esperança ficasse reduzida a um tamanho menor.
Porém, todos sabemos que a inquietação é um sinal criador e que o possível sofrimento de um poeta lhe dará frutos para o futuro.
Não deixa a poesia de Carlos Carranca de assumir essa liberdade revolucionária de que falávamos ao iní­cio. Estamos em presença de um poeta novo em tempo de balanço. O poema do sétimo círculo, tão belo em termos formais e de conteúdo como o do primeiro, dá-nos a ideia do seu estado actual. Essa "quietude sem repouso" contém em si a fórmula que lhe irá permitir o grande voo do futuro.

José Fernando Tavares
Posfácio a O espírito da raiz de Carlos Carranca

AO ROMPER DO DIA EM
VILAMARIM
LUGAR DO MIRADOURO


Altas montanhas; cumes brancos
erguidos na neblina
que os rodeia com sua fita de bruma
e de silêncio...
O rio (líquida estrada do poente)
rasga o momento
com sua faca de dois gumes,
tudo e nada.
Altas montanhas...
e o verde a insinuar-se
com seu pesado manto de terra
adormecida.
É manhã.
O dia é de cantar
e de sonhar
alto.

in O espírito da raiz

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

ALENTEJO

à memória de Michel Giacometti


As vozes erguem-se da terra.
Como braços suplicantes,
procuram o indizível infinito
da sua condição
de almas condenadas.
Em nome da terra é que elas cantam.
Sagradas pela vida,
buscam a eternidade.
Unidas p'lo momento
alcançam a comunhão
das vozes em harmonia.
E onde tudo é arte,
é o pão que se reparte
e a poesia.


in Neste Lugar sem Portas, Antologia Poética 1981-2001

ANTÓNIO MACHADO
em Sória


Entre Castela e Saudade
Correm os rios da Espanha:
Mágoas, raízes e mares,
Lindas canções da Montanha.

Don António é o alcaide
das horas de recordar:
Pobres terras, terras tristes,
paisagem desse lugar.

Uma menina doente
faz fria a noite calma,
dois olhos negros que morrem,
tão tristes que têm alma!

O Poeta - uma cegonha
no alto do campanário.
Castela-a-Velha assiste
ao amante solitário.


in Neste Lugar sem Portas, Antologia Poética 1981-2001

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

EM DESTAQUE

17 de Fevereiro, Vozes ao alto! Festival no Fórum Lisboa


O Festival já tem nome e data – vai ser no dia 17, no Fórum Lisboa, a partir das 21h.
A escolha do nome foi objecto de uma disputa cerrada, mas por fim ficou Vozes ao alto!, das Canções Heróicas musicadas por Fernando Lopes Graça, de quem acaba de se celebrar o centenário do nascimento, a partir de poemas de José Gomes Ferreira.
A lista dos artistas-convidados ainda não está fechada, mas podem desde já anunciar-se como confirmados os seguintes:

Ângela Pinto, António Toscano, Bartolomeu Dutra, Camacho Vieira, Carlos Alberto Moniz, Carlos Carranca, Carlos Couceiro, Clara Branco, Chullage, Coro Lopes Graça, Erva de Cheiro, Fernando Tordo, Hélder Costa, João Pimentel, Jorge Castro, Jorge Mendes, Júlia Lello, Maria do Céu Guerra, Mingo Rangel, Pedro Branco, Rui Curto, Teotónio Xavier, Tino Flores, Zé Manel, Zé Pinho e mais Vozes ao Alto.

A Barraca, através de Hélder Costa e Maria do Céu Guerra, assegurará a apresentação e o alinhamento do espectáculo.
http://maismemoria.org/mm/

sábado, fevereiro 10, 2007

REGRESSO AO TORGA*


A falta de autenticidade que marca a nossa vida política encontra na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) a dimensão lusófona institucional no des-respeito, na irresponsabilidade, na incapacidade de jogar limpo - na tragédia.
Independentemente do desfecho da guerra fratricida na Guiné, há que assumir, como portugueses, a falência da nossa ocupação multisecular em África.
Como admirador e amigo do poeta de «Orfeu Rebelde» sinto cada vez mais viva a afirmação: Ser contra isto para ser por isto.
Em África não respeitamos o Homem que lá encontrámos, impusemos-lhe, violentamente, a nossa cultura e não fomos os bandeirantes dos princípios de humanidade e fraternidade univer­sais, que tão bem soubemos espalhar por outros continentes.
Como é possível unir países em torno de interesses, de va­lores comuns, países que vivem em guerra civil?
Como é possível não morrer de vergonha, quando falamos em nome da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa?
Como é possível promover o entendimento entre Pátrias de Língua Oficial Portuguesa, se os líderes não respeitam as consti­tuições democráticas e promovem divisões artificiais no seu país?
Em Junho de 1986, na Guiné-Bissau, fuzilamentos obri­gavam Torga a um veemente protesto, num misto de dor e de ver­gonha, que continua, ainda hoje.(hoje mais do que nunca), a mar­car o sentir de toda a comunidade de mulheres e de homens livres:
Fuzilamentos na Guiné-Bissau. Com a notícia a zurzir-me
nos ouvidos, fui fazer um electrocardiograma. Somos uns des­graçados. Em ocasiões assim, de vergonha humana, mandava a decência que, cobertos de luto, esquecêssemos os próprios males, a chorar desesperada e desalentadamente sobre a nossa condição. Nós, os portugueses neste caso particular, ainda mais. Em tantos anos de colonialismo, nem com o exemplo de pioneiros da abolição da pena de morte conseguimos deixar enraizada nas terras de ocupação a árvore da fraternidade tolerante.
Agarrados, apenas, a uma antiga esperança de libertação, a de fazer emergir a sua cultura, de expressar, sem barreiras, os seus sonhos, o guineense, e o africano em geral, vêem hoje os seus so­nhos desfeitos; substituídos os velhos colonizadores por seus irmãos de sangue que, movidos pela ganância, os oprimem, encar­ceram e matam, enquanto o mundo observa o espectáculo, lavan­do as mãos como Pilatos.

* Jornal de Coimbra, 22 de Julho, 99

O DIREITO À INDIGNAÇÃO*


Escrever para quê? Quando sei que vou ser lido, a correr, por meia dúzia de amigos e poucos concordarão comigo.
Sei também que por mais que façamos para que nos levem a sério, o nosso tempo, o tempo em que habitamos, encarregar-se-á de nos levar de empurrão por um qualquer lugar que não é o nosso, onde desempenharemos um papel que os outros destinaram sem terem em conta o actor. O que é preciso é que aconteça. E muitas coisas vão acontecendo neste País...
A insegurança e a instabilidade de que tudo dá provas tem vindo a condicionar o comportamento social, levando a relações de verdadeira promiscuidade, onde os valores e a dignidade são simplesmente ignorados.
Tenho para mim que, remetidas as ideologias para um lugar subalterno, direi mesmo, insignificante, são os interesses económicos, ou simplesmente os interesses, que comandam.
Dificilmente nos revemos em algumas manifestações públi­cas de homenagem a cidadãos que sinceramente admiramos quan­do sobre ela paira a sombra da ignomínia.
Não cairei no erro grosseiro de confundir os papéis nem os actores.
Na hora de fazer apelo às reservas humanas e morais da Nação há que saber homenagear os seus filhos mais ilustres.
Miguel Torga, mais uma vez, foi alvo de homenagem. Esta,
prestada pelo Montepio Geral, proprietário do edifício onde se encontrava, no primeiro andar, o humilde consultório do médico otorrinolaringologista, Adolfo Rocha (Miguel Torga).
Foram várias e ilustres as personalidades que em acto públi­co ao criador de «Bichos» não regatearam encómios.
Entre eles António Arnaut, seu amigo dedicado que durante décadas partilhou com o poeta o sonho socialista «ao serviço desse povo verdadeiro que queremos servir»1) e José Mattoso, que definiu o poeta como «Um modelo privilegiado da construção da identidade nacional».
Mas no bom pano cai a nódoa e, segundo relato do Público de 24 de Outubro, o Senhor Presidente do Conselho de Administração, do Montepio Geral, Dr. António da Costa Leal, terá afirmado, referindo-se ao comentário de Torga incluído no Vol. XVI do Diário e datado de 20 de Maio de 92, que este era resultado da «perturbação do poeta em alturas menos felizes da sua vida». Para que se saiba, reproduzo, na íntegra, a nota do Diário:
- Visita fúnebre de dois administradores do banco, meu senhorio do consultório. Querem-me na rua, para fazer obras no prédio e aumentar o rendimento. Pareciam fantasmas agoirentos a anunciar-me ainda em vida o meu enterro e o meu passado. O capitalismo é assim: não hesita, nem mesmo diante dum leito de sofrimento. E lá os ouvi de coração alanceado, a argumentar com a gaguez do espanto vencido. No fim da entrevista, em que levaram a melhor, apeteceu-me chorar de desespero. Naquele velho refúgio que vai ser demolido e remodelado, estão muradas a minha vida e outras vidas. Das duas janelas que lhe davam luz, perspectivei durante meio século o mundo e as tragédias dele. Ali enxuguei muitas lágrimas, resisti a muitas tentações, remediei até onde pude erros da natureza, ouvi as mais íntimas confidências, sonhei, acudi a muitas aflições, dei o melhor de mim. E ali ia ser argamassado e estucado convenientemente para sempre o esque­cimento.
Com data de 8 de Junho do mesmo ano, Miguel Torga volta a referir-se ao seu consultório do Largo da Portagem:
"Desfiz-me do consultório. Mil circunstâncias adversas con­jugaram-se encarniçadamente nesse sentido. E adeus meu velho reduto, onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta. Ofereci o material cirúrgico ao hospital da Misericórdia em que durante anos operei, e o mobiliário à Junta de Freguesia de S. Maninho. E fiquei naquelas salas vazias vazio como elas. Sem passado, sem presente e sem futuro, com a minha própria vida abolida no tempo. À medida que os carregadores iam reti­rando o espólio, tinha a sensação de que estava a ser descarna­do, a tornar-me humanamente espectral. No fim, estonteado, com o chão a fugir-me debaixo dos pés, sem um banco sequer para me sentar, ainda o telefone tocou. Do lado de lá do fio pediam-me que juntasse aos despojos a tabuleta. Respondi que sim, que ia ser arrancada e seguiria. E perguntei, de voz estrangulada, se que­riam que mandasse também o meu cadáver. "
Resta-nos viver o presente? É pouco.

1) Excerto do discurso proferido no primeiro comício socialista em Coimbra, presidido por Miguel Torga em 1/06/74.

* Jornal de Coimbra, 12 de Novembro, 97

Torga: A solidão da liberdade


É sina dos grandes escritores, em sociedades dominadas pelo efémero das modas, terem de fazer longas travessias do deserto até que as suas obras, seja pela inclusão nos programas de ensino, seja pela circunstancial e quase sempre controversa adaptação televisiva, de novo se tornem referenciais. Isso também tem vindo a acontecer com Miguel Torga, não obstante o incansável trabalho de combate contra o esquecimento desenvolvido por quantos, em Coimbra e noutros pontos do País, foram tocados pela dimensão ética e estética, pela originalidade e pela permanente actualidade dos seus textos.
Vivemos num País com elevadas taxas de iliteracia onde as pessoas vêem, em média, mais de quatro horas de televisão por dia, onde as crianças chegam ao ensino básico com mais de quatro mil horas de produtos televisivos já assimilados e onde, apesar do esforço desenvolvido sobretudo pelo Poder Local, continuamos a viver confrontados com carências herdadas de décadas de atraso estrutural. É natural que a literatura pague também a pesada factura deste estado de coisas, mesmo considerando que já passou mais de um quarto de século desde que Portugal reencontrou os caminhos da liberdade e da democracia.
Quando se comemora (em 2000) o centenário da morte de Eça de Queirós, faz sentido parafraseá-lo quando dizia que Portugal é um país "traduzido do francês, mas em calão". Com as novas gerações, mais marcadas pela matriz linguística e cultural anglo-americana, já não será tanto assim, mas com as anteriores o princípio é ainda aplicável, sobretudo se pensarmos em editoras que se hipotecam com a aquisição de direitos de obras estrangeiras nas grandes feiras do livro mundiais antes mesmo de reeditarem autores fundamentais como Aquilino Ribeiro, Alves Redol ou José Rodrigues Migueis.
No caso de Miguel Torga, nem sequer é de peso a razão de queixa, uma vez que uma editora importante assumiu o encargo de reeditar sua obra. Portanto, a obra está à nossa disposição, mas não basta que isso aconteça. É preciso lê-la e relê-la em toda a sua grandeza e desafiadora profundidade, em toda a sua extensão e singularidade.
Sendo sobretudo um poeta, Torga escapa ao esquematismo dogmático das arrumações escolásticas, já que é também ficionista, um prodigioso diarista e um dramaturgo inspirado. Torga é, acima de tudo, o escritor que melhor interpela, do ponto de vista moral, o Portugal deste século, a partir do conhecimento profundíssimo que dele adquiriu, vivendo como viveu todos os seus dramas, os seus dilemas e os seus fantasmas. Miguel Torga é Portugal pensando-se a si próprio a partir dos princípios irrenunciáveis da liberdade e do humanismo.
Não foi por acaso que todos os políticos que depois do 25 de Abril não renunciaram a conferir ao exercício dos seus cargos uma dimensão moral e cultural tiveram a obra de Torga como companhia fiel e permanente, de Ramalho Eanes a Mário Soares. É que a figura moral de Miguel Torga, consubstanciada na pluralidade dos seus textos e das suas reflexões filosóficas, nunca deixou ou deixará de confrontar os homens públicos com as suas responsabilidade s cívicas e éticas.
Mas Torga é também o pacto profundo celebrado com a espiritualidade.
E é precisamente essa vertente menos valorizada da sua obra que surge exemplarmente tratada no ensaio de Carlos Carranca que dá título a este livro. Miguel Torga é, nesse sentido, um bicho religioso, já que a sua poesia em particular e toda a sua obra em geral são uma acareação pagã com o sagrado, assumindo-se o poeta como um oficiante apaixonado nesse culto milenar e secreto que leva o Homem a formular incessantemente estas três perguntas axiais: Quem somos? De Onde vimos? Para onde vamos?
Pela sua origem rural e pela sua ligação visceral com o imaginário popular, Miguel Torga fez suas muitas das crenças e temores da nossa ancestralidade mais profunda e telúrica, sem se assumir, porém, como um homem de fé. A sua maior fé foi a liberdade, dela fazendo estandarte e programa de vida, sobretudo no tempo em que a ditadura a deixou proscrita e vilipendiada.
Como demonstra Carlos Carranca neste livro, Miguel Torga é o poeta que nunca renuncia às grandes perguntas, assumindo-se, no conjunto da sua obra, como um momento da consciência universal que converte a noção da finitude num ponto de partida para as mais definitivas inquirições. Nesse aspecto, o seu poema "Último Natal", seleccionado ilustrativamente pelo ensaísta, responde a todas as dúvidas que sobre o assunto possam subsistir no espírito dos leitores de Torga: "Menino Jesus, que nasces, / Quando eu morro, / E trazes a paz / Que não levo, / O poema que te devo, / Desde que te aninhei no entendimento. / E nunca te paguei / A contento / Da devoção, / Mal entoado, / Aqui te fica mais uma vez, / Aos pés / Como um tição / Apagado, / Sem calor que os aqueça. / Com ele me desobrigo e desengano: / És divino, e eu sou humano / Não há poesia em mim que te mereça".
Estamos perante o homem que se despede da vida dirigindo-se, ao mesmo tempo, àquele que, fora ou dentro dos tempos, erguido em altares ou deles apeado, representa o despojamento, a bondade solidária, a capacidade de sacrifício pelo outro e a capacidade redentora de morrer por uma causa. E, se como dizia Shelley, com a sua avassaladora inspiração romântica, "os poetas são legisladores sem lei do universo", poderemos dizer que Torga fez desta crença não dogmática, e por isso mesmo comovente e libérrima, a sua regra e a sua lei. Por muitos e complementares caminhos se pode chegar ao mesmo destino.
Poeta, divulgador de poesia, infatigável animador cultural e militante dos valores da liberdade e da fraternidade, Carlos Carranca, nos dois textos de fundo que integram este volume, homenageia Miguel Torga, franqueando-nos, simultaneamente, portas iluminadas para o conhecimento ainda mais pormenorizado da sua obra e da sua visão do mundo. Os dois capítulos dedicados ao balizamento cronológico da vida e da obra do escritor são, por seu turno, essenciais para contextualizar a sua leitura e apoiar a sua compreensão.
A marca que a descoberta da África de língua portuguesa, anterior à descolonização deixa na obra do escritor, é determinante para se perceber até que ponto o humanista está disponível para indagar o processo de aproximação de culturas e de civilizações, tendo como ponto de comunicação e cimento aglutinador um património de língua que é, afinal, o tesouro e a alma da própria lusofonia. Saúde-se, aliás, a coragem patente neste ângulo de abordagem de um aspecto menos conhecido da obra torguiana, não só do ponto de vista ensaístico como também político.
Miguel Torga encontrou em territórios como Angola e Moçambique a larga respiração de um universo tocado pela função civilizadora dos portugueses e, ao mesmo tempo, a fragorosa falência.de um modelo colonial que a ditadura deveria ter abolido enquanto era tempo, poupando os povos de Portugal e de três das suas ex-colónias a uma tragédia de consequências ainda não totalmente apuradas que durou 13 largos e martirizantes anos.
Ao escrever sobre a África que falava e fala português, Miguel Torga escreveu sobre o mundo e deu-nos do que viu a sua compreensão que pode sintetizar-se nestes versos: "Continente solar,/ Grande e fermente coração da terra!". A liberdade individual do poeta não o impediu de escrever sobre África e sobre a sua cultura, mesmo que ao fazê-lo, menos de um ano antes da Revolução, esse olhar sereno e apaixonado pudesse ser entendido como "politicamente incorrecto".
Mas é tudo isso que faz a grandeza de Miguel Torga como poeta, como homem de pensamento e como cidadão. Ele esteve onde a palavra o levou e escreveu de acordo com o único poder que verdadeiramente reconheceu: o da liberdade da sua consciência, soberana, inquiridora e indomável.
Todos estes aspectos são abordados com rigor intelectual e com um profundo conhecimento da obra do autor por parte de Carlos Carranca, que inscreve mais um conjunto de páginas marcantes no extenso acervo dos estudos torguianos.
Se, como escreveu George Steiner , a poesia é a virtude e o verso o atributo, Miguel Torga conseguiu harmonizar ambos em toda a extensão da sua obra, da qual o registo diarístico constitui a trave mestra e o mais estruturante dos elementos.
Torga, que, como bem salienta o ensaísta, foi a mais importante personagem por si mesmo criada, nunca deixou de ser "a Liberdade dum perfil/Desenhado no mar", sendo, ao mesmo tempo, um "exilado/na gávea do futuro". Foi a partir dessa posição privilegiada que interpelou Portugal e nos convocou e continuará a convocar para esse exercício estimulante, complexo e exaltante que é o de percebermos o nosso lugar no mundo e nunca renunciarmos à liberdade irrevogável de sermos o que somos dentro de cada um de nós.

José Jorge Leiria
3 Julho 2000
Prefácio à obra Torga, o bicho religioso

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIOS

Uma aula da Escola Profissional de Teatro de Cascais


Numa aula, os meus alunos da Escola de Teatro reflectiam em conjunto sobre a Construção da Democracia e, muito a propósito, as polémicas alegadas afirmações de Sousa Franco proferidas em privado, à mesa de um restaurante e estampadas na primeira página de O Independente, preencheram todo o tempo reservado ao tema inicial.
Os alunos discutiam a legitimidade ou ilegitimidade da notícia, o modelo de jornalismo praticado, e todos foram unânimes em condenar o uso e abuso do poder da imprensa, manifestando-se indignados pela divulgação de uma conversa privada, concluindo terem sido violadas as regras mais elementares da deontologia.
Mas, no meio desta natural unanimidade, alguém, invertendo o sentido geral das opiniões, afirmou desconfiar das razões que levaram Sousa Franco àquele restaurante, da sua inocência, e que ele (Sousa Franco) o tinha feito para provocar o escândalo previsível num país de bisbilhoteiros.
O leitor imaginará a confusão que se gerou a partir deste comentário?
Por mais que tentasse moderar o debate, a confusão ia aumentando, enquanto o tal aluno repetia sem cessar o argumento do local escolhido pelo ex-ministro, e as afirmações proferidas à mesa do tal restaurante.
Não houve ninguém capaz de o convencer que, por mais irreflectida que tenha sido a decisão de Sousa Franco ao aceitar o convite de almoçar no tal restaurante, a atitude de O Independente é ética e deontologicamente reprovável e que é inaceitável, nestas questões, separar o método dos seus resultados. Que no plano dos valores não é relevante se Sousa Franco mentiu ou não, mas que a divulgação das frases por si alegadamente proferidas é ilegítima por se tratar de uma conversa privada.
Para todos os que acreditam no aperfeiçoamento da Democracia e no jornalismo de valores e com valores, essa conversa nunca existiu.


Jornal de Coimbra, 15 de Dezembro, 99

domingo, fevereiro 04, 2007

Rezo dentro de ti lugar sem portas
abrigo onde todos nos perdemos
humanos de lutar perecemos - águas mortas
neste infinito de ficar

Rezo dentro de ti lugar sem tempo
abrigo onde todos somos nada
e tudo é efémero e separado
o passado é o passado e
o futuro é este lugar
onde rezo a teu lado irmão sem tempo

irmão reencontrado


CARLOS CARRANCA
LOUSA, 10.12.2006

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Há oito anos foi assim…

Entre dois males voto no mal menor: sim


CARTA ABERTA AO SENHOR BISPO DE VISEU, PRESIDENTE DA COMISSÃO EPISCOPAL DA FAMÍLIA, D. ANTÓNIO MONTEIRO.


Na minha condição de cidadão português, dirijo-me ao representante da sagrada hierarquia da Igreja Católica, usando da liberdade que as leis da República Portuguesa me concedem.
Na qualidade de Presidente da Comissão Episcopal da Família, tem o senhor Bispo proferido algumas afirmações críticas a respeito do referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez merecedoras da maior atenção para quem procura não passar distraído pela vida.
Afirmações do tipo todas as mães do País vão ficar com a imagem de assassinas sobre a cabeça, ou quem votar favoravelmente ao aborto não é cristão, o que representa ter que sair da Igreja, de terrorismo verbal, associado a uma linguagem futebolística que compara o sim de um católico à despenalização a ser benfiquista ferrenho e ir ao seu estádio gritar pelo Porto são reveladoras do desnorte em que o sector mais conservador da Igreja católica se encontra, e a extrema dificuldade que demonstra em conviver com cidadãos moralmente livres, capazes de afirmarem o seu desacordo para com a velha hipocrisia salazarista.
As afirmações do senhor Bispo pretendem assustar homens e mulheres, castigando-os ao fogo do inferno, reduzindo-lhes a capacidade de afirmação de consciência pessoal, num estilo muito próximo da actuação da Igreja no Estado Novo, denunciada pelo Senhor D. António Ferreira Gomes, numa corajosa atitude cristã, revelando as cumplicidades que definia como unidade de corpo e alma.
As apreciações do senhor Bispo D. António Monteiro parecem proferidas por um velho apedrejador de Madalenas, incapaz de entender que este referendo serve para revogar um artigo do código penal e não uma lei canónica da Igreja.
O que choca é o aproveitamento que o Senhor Bispo faz da História, comparando a lei do aborto com o holocausto Nazi, e outras barbaridades, quando sabemos que foi Hitler quem decretou a pena capital para os autores do aborto, com o fundamento racista de tal acto afectar a vitalidade do povo alemão.
O Senhor Bispo de Viseu representa a velha cultura da obediência, do «come e cala», que não se adapta aos regimes democráticos, abertos, suficientemente laicos, para fazerem do diálogo o seu fundamento.
Se o não do Senhor Bispo vencer, estou certo que desenvolverá uma prática caritativa a favor da mulher, num gesto paternalista de quem procura continuar a existir numa sociedade desigual.
Saiba o senhor Bispo de Viseu que ninguém será obrigado a praticar o aborto caso o sim vença, nem ninguém será no exercício da profissão obrigado, em contradição com os seus critérios morais, a ajudar a fazê-lo, recorrendo à objecção de consciência.
O referendo sobre a despenalização do aborto é o primeiro, o mais importante, porque se dá a interferência da esfera do privado na esfera do público, carregando o voto de um significado em que a consciência vital se revela.
A separação entre o Estado e a Igreja é uma inequívoca conquista civil que o senhor Bispo deseja pôr à prova.
O 25 de Abril provocou profundas mudanças na sociedade portuguesa, e o senhor Bispo tenta, a todo o custo, negá-las.
A História não anda para trás.
Nos países em que a questão do aborto foi referendada, como Itália, os efeitos da lei sobre a interrupção da gravidez revelaram-se positivos: diminuíram o aborto legal e o clandestino.
Não querendo associar as afirmações do senhor D. António Monteiro ao medo que terá em perder uma parcela do seu poder totalitário (manipulador de consciências) com a vitória do sim, livremente assumido, felicito-o pela extrema sinceridade com que o fez.
Não deixo, no entanto, de me surpreender com o interesse subitamente manifestado pelo senhor Bispo quanto à temática da maternidade e seus problemas reais, porquanto a Igreja na sua História, sempre penalizou sexualmente a mulher.
Ainda hoje, a opinião oficial da Igreja vê com desconfiança a educação sexual e condena sem piedade o uso de contraceptivos.
Infelizmente, a Igreja Católica continua a marcar o nosso tempo contra o tempo nosso.
A 16 de Julho de 1968, D. António Ferreira Gomes, em carta ao senhor Cardeal Cerejeira, afirmou ter Salazar contado com a Igreja Católica para variadíssimos fins, desde: o pastoreio das almas e consequente gestão da consciência católica; a defesa da política governativa junto da Santa Sé; a bênção dos soldados na guerra colonial e em muitas e diversificadas solenidades e inaugurações, consagrando-as.
Hoje, o Estado e a Igreja não vivem dessas cumplicidades.
É imperativo reclamar do Estado democrático, que cumpra as suas obrigações em todas as áreas, não esquecendo as obrigações em matéria de planeamento familiar, vida e higiene sexual; e da Igreja espera-se que continue a sua caminhada de regresso ao nível dos homens e das mulheres em luta por uma vida melhor, ao lado de todos quantos, guiados pelos ensinamentos de Cristo, anseiam por um amor infinito.

Jornal de Coimbra, 17 Junho, 98