sábado, fevereiro 10, 2007

Torga: A solidão da liberdade


É sina dos grandes escritores, em sociedades dominadas pelo efémero das modas, terem de fazer longas travessias do deserto até que as suas obras, seja pela inclusão nos programas de ensino, seja pela circunstancial e quase sempre controversa adaptação televisiva, de novo se tornem referenciais. Isso também tem vindo a acontecer com Miguel Torga, não obstante o incansável trabalho de combate contra o esquecimento desenvolvido por quantos, em Coimbra e noutros pontos do País, foram tocados pela dimensão ética e estética, pela originalidade e pela permanente actualidade dos seus textos.
Vivemos num País com elevadas taxas de iliteracia onde as pessoas vêem, em média, mais de quatro horas de televisão por dia, onde as crianças chegam ao ensino básico com mais de quatro mil horas de produtos televisivos já assimilados e onde, apesar do esforço desenvolvido sobretudo pelo Poder Local, continuamos a viver confrontados com carências herdadas de décadas de atraso estrutural. É natural que a literatura pague também a pesada factura deste estado de coisas, mesmo considerando que já passou mais de um quarto de século desde que Portugal reencontrou os caminhos da liberdade e da democracia.
Quando se comemora (em 2000) o centenário da morte de Eça de Queirós, faz sentido parafraseá-lo quando dizia que Portugal é um país "traduzido do francês, mas em calão". Com as novas gerações, mais marcadas pela matriz linguística e cultural anglo-americana, já não será tanto assim, mas com as anteriores o princípio é ainda aplicável, sobretudo se pensarmos em editoras que se hipotecam com a aquisição de direitos de obras estrangeiras nas grandes feiras do livro mundiais antes mesmo de reeditarem autores fundamentais como Aquilino Ribeiro, Alves Redol ou José Rodrigues Migueis.
No caso de Miguel Torga, nem sequer é de peso a razão de queixa, uma vez que uma editora importante assumiu o encargo de reeditar sua obra. Portanto, a obra está à nossa disposição, mas não basta que isso aconteça. É preciso lê-la e relê-la em toda a sua grandeza e desafiadora profundidade, em toda a sua extensão e singularidade.
Sendo sobretudo um poeta, Torga escapa ao esquematismo dogmático das arrumações escolásticas, já que é também ficionista, um prodigioso diarista e um dramaturgo inspirado. Torga é, acima de tudo, o escritor que melhor interpela, do ponto de vista moral, o Portugal deste século, a partir do conhecimento profundíssimo que dele adquiriu, vivendo como viveu todos os seus dramas, os seus dilemas e os seus fantasmas. Miguel Torga é Portugal pensando-se a si próprio a partir dos princípios irrenunciáveis da liberdade e do humanismo.
Não foi por acaso que todos os políticos que depois do 25 de Abril não renunciaram a conferir ao exercício dos seus cargos uma dimensão moral e cultural tiveram a obra de Torga como companhia fiel e permanente, de Ramalho Eanes a Mário Soares. É que a figura moral de Miguel Torga, consubstanciada na pluralidade dos seus textos e das suas reflexões filosóficas, nunca deixou ou deixará de confrontar os homens públicos com as suas responsabilidade s cívicas e éticas.
Mas Torga é também o pacto profundo celebrado com a espiritualidade.
E é precisamente essa vertente menos valorizada da sua obra que surge exemplarmente tratada no ensaio de Carlos Carranca que dá título a este livro. Miguel Torga é, nesse sentido, um bicho religioso, já que a sua poesia em particular e toda a sua obra em geral são uma acareação pagã com o sagrado, assumindo-se o poeta como um oficiante apaixonado nesse culto milenar e secreto que leva o Homem a formular incessantemente estas três perguntas axiais: Quem somos? De Onde vimos? Para onde vamos?
Pela sua origem rural e pela sua ligação visceral com o imaginário popular, Miguel Torga fez suas muitas das crenças e temores da nossa ancestralidade mais profunda e telúrica, sem se assumir, porém, como um homem de fé. A sua maior fé foi a liberdade, dela fazendo estandarte e programa de vida, sobretudo no tempo em que a ditadura a deixou proscrita e vilipendiada.
Como demonstra Carlos Carranca neste livro, Miguel Torga é o poeta que nunca renuncia às grandes perguntas, assumindo-se, no conjunto da sua obra, como um momento da consciência universal que converte a noção da finitude num ponto de partida para as mais definitivas inquirições. Nesse aspecto, o seu poema "Último Natal", seleccionado ilustrativamente pelo ensaísta, responde a todas as dúvidas que sobre o assunto possam subsistir no espírito dos leitores de Torga: "Menino Jesus, que nasces, / Quando eu morro, / E trazes a paz / Que não levo, / O poema que te devo, / Desde que te aninhei no entendimento. / E nunca te paguei / A contento / Da devoção, / Mal entoado, / Aqui te fica mais uma vez, / Aos pés / Como um tição / Apagado, / Sem calor que os aqueça. / Com ele me desobrigo e desengano: / És divino, e eu sou humano / Não há poesia em mim que te mereça".
Estamos perante o homem que se despede da vida dirigindo-se, ao mesmo tempo, àquele que, fora ou dentro dos tempos, erguido em altares ou deles apeado, representa o despojamento, a bondade solidária, a capacidade de sacrifício pelo outro e a capacidade redentora de morrer por uma causa. E, se como dizia Shelley, com a sua avassaladora inspiração romântica, "os poetas são legisladores sem lei do universo", poderemos dizer que Torga fez desta crença não dogmática, e por isso mesmo comovente e libérrima, a sua regra e a sua lei. Por muitos e complementares caminhos se pode chegar ao mesmo destino.
Poeta, divulgador de poesia, infatigável animador cultural e militante dos valores da liberdade e da fraternidade, Carlos Carranca, nos dois textos de fundo que integram este volume, homenageia Miguel Torga, franqueando-nos, simultaneamente, portas iluminadas para o conhecimento ainda mais pormenorizado da sua obra e da sua visão do mundo. Os dois capítulos dedicados ao balizamento cronológico da vida e da obra do escritor são, por seu turno, essenciais para contextualizar a sua leitura e apoiar a sua compreensão.
A marca que a descoberta da África de língua portuguesa, anterior à descolonização deixa na obra do escritor, é determinante para se perceber até que ponto o humanista está disponível para indagar o processo de aproximação de culturas e de civilizações, tendo como ponto de comunicação e cimento aglutinador um património de língua que é, afinal, o tesouro e a alma da própria lusofonia. Saúde-se, aliás, a coragem patente neste ângulo de abordagem de um aspecto menos conhecido da obra torguiana, não só do ponto de vista ensaístico como também político.
Miguel Torga encontrou em territórios como Angola e Moçambique a larga respiração de um universo tocado pela função civilizadora dos portugueses e, ao mesmo tempo, a fragorosa falência.de um modelo colonial que a ditadura deveria ter abolido enquanto era tempo, poupando os povos de Portugal e de três das suas ex-colónias a uma tragédia de consequências ainda não totalmente apuradas que durou 13 largos e martirizantes anos.
Ao escrever sobre a África que falava e fala português, Miguel Torga escreveu sobre o mundo e deu-nos do que viu a sua compreensão que pode sintetizar-se nestes versos: "Continente solar,/ Grande e fermente coração da terra!". A liberdade individual do poeta não o impediu de escrever sobre África e sobre a sua cultura, mesmo que ao fazê-lo, menos de um ano antes da Revolução, esse olhar sereno e apaixonado pudesse ser entendido como "politicamente incorrecto".
Mas é tudo isso que faz a grandeza de Miguel Torga como poeta, como homem de pensamento e como cidadão. Ele esteve onde a palavra o levou e escreveu de acordo com o único poder que verdadeiramente reconheceu: o da liberdade da sua consciência, soberana, inquiridora e indomável.
Todos estes aspectos são abordados com rigor intelectual e com um profundo conhecimento da obra do autor por parte de Carlos Carranca, que inscreve mais um conjunto de páginas marcantes no extenso acervo dos estudos torguianos.
Se, como escreveu George Steiner , a poesia é a virtude e o verso o atributo, Miguel Torga conseguiu harmonizar ambos em toda a extensão da sua obra, da qual o registo diarístico constitui a trave mestra e o mais estruturante dos elementos.
Torga, que, como bem salienta o ensaísta, foi a mais importante personagem por si mesmo criada, nunca deixou de ser "a Liberdade dum perfil/Desenhado no mar", sendo, ao mesmo tempo, um "exilado/na gávea do futuro". Foi a partir dessa posição privilegiada que interpelou Portugal e nos convocou e continuará a convocar para esse exercício estimulante, complexo e exaltante que é o de percebermos o nosso lugar no mundo e nunca renunciarmos à liberdade irrevogável de sermos o que somos dentro de cada um de nós.

José Jorge Leiria
3 Julho 2000
Prefácio à obra Torga, o bicho religioso