sexta-feira, janeiro 19, 2007

A MAIS HUMANA DAS OBRAS

Á memória de Miguel Torga

Interrogo-me frequentes vezes se não estará a Poesia mais próxima da magia do que da literatura.
Ora, o Poeta é um mágico, não é um literato, porque a sua condição essencial é a da criação poética, sendo na dimensão transfiguradora da realidade que o Poeta se cumpre, e não no acervo de obras consultadas ou na profusão de autores citados.
Não é citando os criadores que o Poeta existe, é existindo que o Poeta é.
Vivemos num tempo em que os discursos soam a oco. Vivemos num tempo de múltipla palavras sem sentido, usadas nos comércios diários dos interesses; palavras que se usam e deitam fora, palavras sem peso específico, sem leveza, em suma, sem valor.
Porque a Poesia passa pelo ritmo encadeado das palavras, e porque ele, o ritmo, assenta na originalidade com que as juntamos ou separamos, é que, ao confrontarmo-nos com a palavra poética, nos reencontramos com a originalidade, com o valor da palavra, a oração do silêncio, da voz de alguém que procura a palavra perdida e o seu lugar no homem – o mundo como adjectivo: asseado, purificado, limpo.
Ao entrarmos na obra poética, penetramos na vida que se afasta da razão sem a dispensar, e se aproxima da pura sensibilidade.
A poesia não brinca com as palavras, refaz sentidos, dá-lhes outra coloração, transforma-as sem as deformar.
Há na Poesia uma primorosa conciliação da disciplina com a liberdade, não mistura poema com ideias, elas estão lá, mas são a Poesia.
Não cede à facilidade, não transige com a rima, dá-se uma entrega contida, lúcida, solidária.
São palavras depuradas pela sua nudez.
São palavras recolhidas em si mesmas.
Há na Poesia uma dimensão espiritual, direi mesmo, religiosa, que entra em nós e se recolhe – é a nossa voz que ressoa e nos acorda na transparência da voz do poeta.
Na ética e na religião, a questão essencial é saber se o homem se redime a si mesmo ou se será redimido por outro; a sua obrigação é quebrar as suas grilhetas ou, agrilhoado, ir quebrar as grilhetas alheias.
A poesia tenta, pela palavra, libertar-nos do ruído que aprisiona e, em função do outro, libertá-lo, religando-o à palavra perdida, no aperfeiçoamento do mundo.
No princípio era o verbo.
Todas as coisas foram feitas pela palavra, a palavra desocultadora do mundo, da vida, da beleza.
Sabemos que a morte é a mentira e a verdade é a vida. Mas também sabemos que a única verdade objectiva é a morte porque a vida é um conjunto de mentiras que nos servem de consolo.
Mas o poeta sabe, também, que a palavra vence a morte e que é a palavra poética a mais humana das obras.

Carlos Carranca