O Madeira
(a propósito das comemorações do centenario da linha de caminho-de-ferro da Lousã)
Há dias, falando na rua com um querido amigo que já não via há algum tempo, recordei-lhe a figura do Madeira. Era um louco que às vezes descia à terra/brincava connosco enquanto pedia/e dizem que dormia/com lobos da serra. “Era uma boa alma” – comentou o amigo.
Era, sem dúvida, uma alma de eleição. Lembro-me dele como se fosse hoje: alto, delicado, sempre à espera que lhe oferecessem um prato de bacalau - era assim que ele dizia – com batatas. Parava ali muito para a estação, na então avenida D. Carlos I, onde se situava a casa de pasto do Pedro Cem.
Quem ainda se recorda dessa figura de louco magnânimo, sempre pronto a dar de si o que a sua amizade solitária continha? Partilhava connosco o tempo que, por enquanto, como diz o povo, dá-o Deus de graça.
Existia, no Madeira, a fundura da sabedoria que tomava por invisíveis e fantásticas as coisas deste mundo. Tinha a faculdade de captar o irracional, que é a autêntica realidade, onde ele era comediante. O seu reino era o da comédia sem fazer rir. Não se enganava no papel, sabia que o ridículo era acobardar-se. Na solidão, conquistou o impossível. Herói de si-mesmo, era ele no centro do mundo, privilégio só reservado aos poderosos, mas que ele tomara para si, não o partilhando com ninguém. Por isso o invejaram e o enviaram, escoltado por dois guardas, de volta para a sua terra – a Figueira da Foz. Herói no seu posto, chegou à Lousã primeiro que as autoridades que o tinham acompanhado ao degredo natal.
Ele era de cá. Da vila dos afectos e da religiosidade popular sem teologia; da Senhora que carrega nos braços um louco filho que, por amor aos homens, se deixou crucificar, acreditando ser filho de Deus.
Morreu de frio, o Madeira. Ataque cardíaco, dizem. Sem dois braços femininos estendidos acolhendo-o no regaço, partiu como chegou – mendigo.
Poucos terão sabido enfrentar com mais dignidade o absurdo da vida. Autenticamente irmão nosso, é hoje um dos meus eternos heróis guardados da infância.
Carlos Carranca
Natal, 2006
(a propósito das comemorações do centenario da linha de caminho-de-ferro da Lousã)
Há dias, falando na rua com um querido amigo que já não via há algum tempo, recordei-lhe a figura do Madeira. Era um louco que às vezes descia à terra/brincava connosco enquanto pedia/e dizem que dormia/com lobos da serra. “Era uma boa alma” – comentou o amigo.
Era, sem dúvida, uma alma de eleição. Lembro-me dele como se fosse hoje: alto, delicado, sempre à espera que lhe oferecessem um prato de bacalau - era assim que ele dizia – com batatas. Parava ali muito para a estação, na então avenida D. Carlos I, onde se situava a casa de pasto do Pedro Cem.
Quem ainda se recorda dessa figura de louco magnânimo, sempre pronto a dar de si o que a sua amizade solitária continha? Partilhava connosco o tempo que, por enquanto, como diz o povo, dá-o Deus de graça.
Existia, no Madeira, a fundura da sabedoria que tomava por invisíveis e fantásticas as coisas deste mundo. Tinha a faculdade de captar o irracional, que é a autêntica realidade, onde ele era comediante. O seu reino era o da comédia sem fazer rir. Não se enganava no papel, sabia que o ridículo era acobardar-se. Na solidão, conquistou o impossível. Herói de si-mesmo, era ele no centro do mundo, privilégio só reservado aos poderosos, mas que ele tomara para si, não o partilhando com ninguém. Por isso o invejaram e o enviaram, escoltado por dois guardas, de volta para a sua terra – a Figueira da Foz. Herói no seu posto, chegou à Lousã primeiro que as autoridades que o tinham acompanhado ao degredo natal.
Ele era de cá. Da vila dos afectos e da religiosidade popular sem teologia; da Senhora que carrega nos braços um louco filho que, por amor aos homens, se deixou crucificar, acreditando ser filho de Deus.
Morreu de frio, o Madeira. Ataque cardíaco, dizem. Sem dois braços femininos estendidos acolhendo-o no regaço, partiu como chegou – mendigo.
Poucos terão sabido enfrentar com mais dignidade o absurdo da vida. Autenticamente irmão nosso, é hoje um dos meus eternos heróis guardados da infância.
Carlos Carranca
Natal, 2006
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