CARTA ABERTA A JUVENTUDE DE HOJE*
Não vos venho falar das ideias tradicionais que servem para cobrir a brutalidade da guerra com o falso manto da honra e do heroísmo, nem tão pouco das propostas daqueles que nos gover¬nam e desgovernam, da paz que nos vendem. Não venho, portan¬to, falar de Timor, da Jugoslávia, do Kosovo e da NATO. Deixo para quem tem de direito o privilégio de falar dos truques da política externa, de que o que parece não é.
Não venho falar daquilo que desconheço, a que só os «deuses» do nosso tempo têm acesso.
Venho falar-vos do acto de criar, do acto livre de criar.
Como um dia escreveu Copérnico: Não serve de muito procurar os erros, pois é próprio de um espírito sem vergonha preferir o papel de crítica que censura, à do poeta que cria. Por isso vos digo: - é preciso o Poeta que trazemos escondido, tantas vezes envergonhado, dentro de nós! É preciso criar: é preciso futuro: é preciso que o Homem ame o futuro. Pela arte ou pela fé religiosa, é preciso encontrar alegria no acto de viver.
É pela degradação ou pela vida que a juventude terá de optar. Pela revolta serena, consciente, marcada pelo acto solitário de quem cria e acredita, oposto ao medo, ao conformismo, ao seguidismo - revolta por dentro das palavras.
Há quem diga, com o intuito de fazer parar a juventude dos seus propósitos, que eles também já foram jovens. Pobres cria¬turas!... que ainda não entenderam, nem fizeram esforço para entender a vertiginosa velocidade do nosso tempo para o qual não dão esperança. Defendem instituições em que já não acreditam, não as substituem nem as revitalizam, antes as mantêm cada vez mais fora do nosso tempo, geradoras de infelicidade.
É à juventude que cabe inventar o Futuro para que todos possamos viver mais livres, numa sociedade mais justa e mais fra¬terna.
Destruir a ilusão é destruir a Arte, afirmou Erasmo, príncipe dos humanistas, ao assumir corajosamente ser uma verdadeira consciência criadora, não vivendo pela reprodução e rotina. Foi através de Cristo crucificado que defendeu uma Europa unida, a caminho da perfeição, onde os reis seriam os representantes dessa vontade colectiva.
Erasmo referia-se à guerra condenando-a: E tão cruel que é mais própria de feras de que de homens, é uma insânia que os poetas consideram emitida pelas fúrias... porque os piores bandi¬dos costumam ser os melhores guerreiros.
Falo-vos da juventude de espírito, daqueles que acreditam que a vida não é feita apenas para aceitar e maldizer, mas para contestar e criar.
A grande tarefa da juventude de hoje parece-me ser a da eterna busca do próprio Homem, da sua afirmação individual, em prol da tolerância, de uma sociedade mais verdadeira.
A guerra é inimiga da tolerância, é estúpida e só serve os poderosos.
Ao grito morte à inteligência a que, segundo Torga a estu¬pidez fardada se atreveu na presença de Unamuno, (reitor da Universidade de Salamanca) este recebeu a resposta adequada: Este é o tempo do intelecto de que eu sou o sumo-sacerdote. Sois vós quem profanais os seus paços sagrados. Vencereis, porque possuís força bruta mais do que suficiente. Mas não convencereis, porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir seria necessário possuirdes aquilo de que careceis nesta luta: razão e direito.
Homens como Miguel de Unamuno dão-nos a noção clara da humana miséria que seria a de um dia nos faltar a coragem de defender o maior bem, a nossa liberdade.
Não falemos de heroísmo, falemos de unidade de consciência, de palavras e de actos: de gente capaz de levantar paredes de ilusão, de gente verdadeiramente humana, sincera e corajosa.
Escreveu um dia Jorge de Sena a seus filhos uma carta a propósito de um quadro pintado por Goya, retratando um fuzila¬mento de patriotas espanhóis por militares franceses:
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. E possível que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja per¬mitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interessa para viver. Tudo é possível ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais de que qualquer delas, uma fiel dedicação à honra de estar vivo. E mais adiante acrescenta: acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais do que uma vida ou a alegria de tê-la. (...) acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. Conclui: E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é só nossa, que nos é cedida para guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que os ou-tros não amaram porque lho roubaram.
Esta carta de amor e de esperança, este honrar os mortos que a memória desenterra - como nos diz Manuel Alegre - sig¬nifica a possibilidade de ruptura com os nossos próprios condicionamentos.
Deste lugar do Tarrafal partamos, pois, em busca de uma estrela, em busca de uma noite de luar sem medos, sem dogmas e sem grades. Porque o coração da juventude é do tamanho do mundo.
Eu sei que um dia há-de ser o dia. Não o espero, procuro-o. Vou ao seu encontro. Porque, como diz o poeta, estou vivo e escrevo sol.
* Texto publicado em Notícias do Centro, a 2 de Junho de 99
e lido por José Manuel Viegas no Campo de Concentração
do Tarrafal, em Fevereiro de 2000, no encontro de
intelectuais organizado pela SLP, em Cabo Verde.
Não vos venho falar das ideias tradicionais que servem para cobrir a brutalidade da guerra com o falso manto da honra e do heroísmo, nem tão pouco das propostas daqueles que nos gover¬nam e desgovernam, da paz que nos vendem. Não venho, portan¬to, falar de Timor, da Jugoslávia, do Kosovo e da NATO. Deixo para quem tem de direito o privilégio de falar dos truques da política externa, de que o que parece não é.
Não venho falar daquilo que desconheço, a que só os «deuses» do nosso tempo têm acesso.
Venho falar-vos do acto de criar, do acto livre de criar.
Como um dia escreveu Copérnico: Não serve de muito procurar os erros, pois é próprio de um espírito sem vergonha preferir o papel de crítica que censura, à do poeta que cria. Por isso vos digo: - é preciso o Poeta que trazemos escondido, tantas vezes envergonhado, dentro de nós! É preciso criar: é preciso futuro: é preciso que o Homem ame o futuro. Pela arte ou pela fé religiosa, é preciso encontrar alegria no acto de viver.
É pela degradação ou pela vida que a juventude terá de optar. Pela revolta serena, consciente, marcada pelo acto solitário de quem cria e acredita, oposto ao medo, ao conformismo, ao seguidismo - revolta por dentro das palavras.
Há quem diga, com o intuito de fazer parar a juventude dos seus propósitos, que eles também já foram jovens. Pobres cria¬turas!... que ainda não entenderam, nem fizeram esforço para entender a vertiginosa velocidade do nosso tempo para o qual não dão esperança. Defendem instituições em que já não acreditam, não as substituem nem as revitalizam, antes as mantêm cada vez mais fora do nosso tempo, geradoras de infelicidade.
É à juventude que cabe inventar o Futuro para que todos possamos viver mais livres, numa sociedade mais justa e mais fra¬terna.
Destruir a ilusão é destruir a Arte, afirmou Erasmo, príncipe dos humanistas, ao assumir corajosamente ser uma verdadeira consciência criadora, não vivendo pela reprodução e rotina. Foi através de Cristo crucificado que defendeu uma Europa unida, a caminho da perfeição, onde os reis seriam os representantes dessa vontade colectiva.
Erasmo referia-se à guerra condenando-a: E tão cruel que é mais própria de feras de que de homens, é uma insânia que os poetas consideram emitida pelas fúrias... porque os piores bandi¬dos costumam ser os melhores guerreiros.
Falo-vos da juventude de espírito, daqueles que acreditam que a vida não é feita apenas para aceitar e maldizer, mas para contestar e criar.
A grande tarefa da juventude de hoje parece-me ser a da eterna busca do próprio Homem, da sua afirmação individual, em prol da tolerância, de uma sociedade mais verdadeira.
A guerra é inimiga da tolerância, é estúpida e só serve os poderosos.
Ao grito morte à inteligência a que, segundo Torga a estu¬pidez fardada se atreveu na presença de Unamuno, (reitor da Universidade de Salamanca) este recebeu a resposta adequada: Este é o tempo do intelecto de que eu sou o sumo-sacerdote. Sois vós quem profanais os seus paços sagrados. Vencereis, porque possuís força bruta mais do que suficiente. Mas não convencereis, porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir seria necessário possuirdes aquilo de que careceis nesta luta: razão e direito.
Homens como Miguel de Unamuno dão-nos a noção clara da humana miséria que seria a de um dia nos faltar a coragem de defender o maior bem, a nossa liberdade.
Não falemos de heroísmo, falemos de unidade de consciência, de palavras e de actos: de gente capaz de levantar paredes de ilusão, de gente verdadeiramente humana, sincera e corajosa.
Escreveu um dia Jorge de Sena a seus filhos uma carta a propósito de um quadro pintado por Goya, retratando um fuzila¬mento de patriotas espanhóis por militares franceses:
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. E possível que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja per¬mitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interessa para viver. Tudo é possível ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais de que qualquer delas, uma fiel dedicação à honra de estar vivo. E mais adiante acrescenta: acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais do que uma vida ou a alegria de tê-la. (...) acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. Conclui: E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é só nossa, que nos é cedida para guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que os ou-tros não amaram porque lho roubaram.
Esta carta de amor e de esperança, este honrar os mortos que a memória desenterra - como nos diz Manuel Alegre - sig¬nifica a possibilidade de ruptura com os nossos próprios condicionamentos.
Deste lugar do Tarrafal partamos, pois, em busca de uma estrela, em busca de uma noite de luar sem medos, sem dogmas e sem grades. Porque o coração da juventude é do tamanho do mundo.
Eu sei que um dia há-de ser o dia. Não o espero, procuro-o. Vou ao seu encontro. Porque, como diz o poeta, estou vivo e escrevo sol.
* Texto publicado em Notícias do Centro, a 2 de Junho de 99
e lido por José Manuel Viegas no Campo de Concentração
do Tarrafal, em Fevereiro de 2000, no encontro de
intelectuais organizado pela SLP, em Cabo Verde.
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