domingo, novembro 05, 2006

CARTA ABERTA A JUVENTUDE DE HOJE*

Não vos venho falar das ideias tradicionais que servem para cobrir a brutalidade da guerra com o falso manto da honra e do heroísmo, nem tão pouco das propostas daqueles que nos gover¬nam e desgovernam, da paz que nos vendem. Não venho, portan¬to, falar de Timor, da Jugoslávia, do Kosovo e da NATO. Deixo para quem tem de direito o privilégio de falar dos truques da política externa, de que o que parece não é.
Não venho falar daquilo que desconheço, a que só os «deuses» do nosso tempo têm acesso.
Venho falar-vos do acto de criar, do acto livre de criar.
Como um dia escreveu Copérnico: Não serve de muito procurar os erros, pois é próprio de um espírito sem vergonha preferir o papel de crítica que censura, à do poeta que cria. Por isso vos digo: - é preciso o Poeta que trazemos escondido, tantas vezes envergonhado, dentro de nós! É preciso criar: é preciso futuro: é preciso que o Homem ame o futuro. Pela arte ou pela fé religiosa, é preciso encontrar alegria no acto de viver.
É pela degradação ou pela vida que a juventude terá de optar. Pela revolta serena, consciente, marcada pelo acto solitário de quem cria e acredita, oposto ao medo, ao conformismo, ao seguidismo - revolta por dentro das palavras.
Há quem diga, com o intuito de fazer parar a juventude dos seus propósitos, que eles também já foram jovens. Pobres cria¬turas!... que ainda não entenderam, nem fizeram esforço para entender a vertiginosa velocidade do nosso tempo para o qual não dão esperança. Defendem instituições em que já não acreditam, não as substituem nem as revitalizam, antes as mantêm cada vez mais fora do nosso tempo, geradoras de infelicidade.
É à juventude que cabe inventar o Futuro para que todos possamos viver mais livres, numa sociedade mais justa e mais fra¬terna.
Destruir a ilusão é destruir a Arte, afirmou Erasmo, príncipe dos humanistas, ao assumir corajosamente ser uma verdadeira consciência criadora, não vivendo pela reprodução e rotina. Foi através de Cristo crucificado que defendeu uma Europa unida, a caminho da perfeição, onde os reis seriam os representantes dessa vontade colectiva.
Erasmo referia-se à guerra condenando-a: E tão cruel que é mais própria de feras de que de homens, é uma insânia que os poetas consideram emitida pelas fúrias... porque os piores bandi¬dos costumam ser os melhores guerreiros.
Falo-vos da juventude de espírito, daqueles que acreditam que a vida não é feita apenas para aceitar e maldizer, mas para contestar e criar.
A grande tarefa da juventude de hoje parece-me ser a da eterna busca do próprio Homem, da sua afirmação individual, em prol da tolerância, de uma sociedade mais verdadeira.
A guerra é inimiga da tolerância, é estúpida e só serve os poderosos.
Ao grito morte à inteligência a que, segundo Torga a estu¬pidez fardada se atreveu na presença de Unamuno, (reitor da Universidade de Salamanca) este recebeu a resposta adequada: Este é o tempo do intelecto de que eu sou o sumo-sacerdote. Sois vós quem profanais os seus paços sagrados. Vencereis, porque possuís força bruta mais do que suficiente. Mas não convencereis, porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir seria necessário possuirdes aquilo de que careceis nesta luta: razão e direito.
Homens como Miguel de Unamuno dão-nos a noção clara da humana miséria que seria a de um dia nos faltar a coragem de defender o maior bem, a nossa liberdade.
Não falemos de heroísmo, falemos de unidade de consciência, de palavras e de actos: de gente capaz de levantar paredes de ilusão, de gente verdadeiramente humana, sincera e corajosa.
Escreveu um dia Jorge de Sena a seus filhos uma carta a propósito de um quadro pintado por Goya, retratando um fuzila¬mento de patriotas espanhóis por militares franceses:
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. E possível que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja per¬mitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interessa para viver. Tudo é possível ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais de que qualquer delas, uma fiel dedicação à honra de estar vivo. E mais adiante acrescenta: acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais do que uma vida ou a alegria de tê-la. (...) acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. Conclui: E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é só nossa, que nos é cedida para guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que os ou-tros não amaram porque lho roubaram.
Esta carta de amor e de esperança, este honrar os mortos que a memória desenterra - como nos diz Manuel Alegre - sig¬nifica a possibilidade de ruptura com os nossos próprios condicionamentos.
Deste lugar do Tarrafal partamos, pois, em busca de uma estrela, em busca de uma noite de luar sem medos, sem dogmas e sem grades. Porque o coração da juventude é do tamanho do mundo.
Eu sei que um dia há-de ser o dia. Não o espero, procuro-o. Vou ao seu encontro. Porque, como diz o poeta, estou vivo e escrevo sol.

* Texto publicado em Notícias do Centro, a 2 de Junho de 99
e lido por José Manuel Viegas no Campo de Concentração
do Tarrafal, em Fevereiro de 2000, no encontro de
intelectuais organizado pela SLP, em Cabo Verde.