domingo, novembro 05, 2006

MANUEL ALEGRE*

SER DE ESQUERDA É SER INCONFORMISTA.
E SER INCONFORMISTA É VIVER E ESCREVER CONTRA A CORRENTE

Poeta, socialista, vice-presidente da Assembleia da República, Manuel Alegre de Melo Duarte é, pela sua coerência ideológica e de vida, uma das principais referências morais do
«País em inho».
A política pode ser definida como ciência ou arte de
governar os povos ou as nações.
A Democracia como forma de sociedade em que a organi¬zação social, a energia do Estado e o poder governativo são dirigidos e fiscalizados pela massa do povo.
Verificando-se hoje um divórcio entre as instituições e os cidadãos não caminharemos para soluções governativas que deixam de fora a participação democrática dos cidadãos?
É hoje evidente a crise de funcionamento do sistema políti¬co em quase todos os países europeus. Crise de confiança e de credibilidade. Desinteresse pela política, divórcio crescente entre instituições e cidadãos. São várias as causas. A principal é talvez aquela de que fala Pascoal Bruckner, no seu livro A melancolia democrática: ausência de alternativas dentro do sistema. A mundialização trouxe consigo a economia única e o pensamento único. Conservadores e sociais-democratas governam pratica mente segundo a mesma lógica. O totalitarismo de Estado foi sub¬stituído pela teologia de mercado. A ditadura dos mercados finan¬ceiros sobrepõe-se aos Estados e aos fundamentos humanistas da nossa sociedade. O capital financeiro desloca-se cada vez mais depressa em busca de mão-de-obra cada vez mais barata. Não há resposta para a desordem económica, o desemprego, a exclusão social. Por isso é necessária uma nova lógica na economia, outra dimensão na política, outra perspectiva que tenha o homem como razão de ser. No nosso caso, a construção de uma Europa democrática, humanista e social em contraposição a uma Europa tecnocrata e ultra-financeira, por cima dos direitos sociais que são conquistas da civilização.
Se não se criar, dentro do sistema, uma alternativa de governo, os excluídos voltar-se-ão contra o próprio sistema. O ter¬reno ficará aberto ao populismo, à xenofobia, a todos os Lê Pen que por aí pululam. Por isso é necessária uma alternativa dentro da democracia. Que a esquerda não se limite a gerir o que está e volte a assumir uma perspectiva de transformação da sociedade. Não vejo outra forma de reabilitar a política.
Está na moda dizer-se que não há diferença entre a DIREITA e ESQUERDA. Jacques Julliard sustenta que as crises do capitalismo e do comunismo não são crises que se possam igualar ou confundir, sendo duas crises distintas. Está de acordo com estas afirmações?
Quem diz que não há diferença entre a esquerda e a direita é porque já saiu da esquerda ou nunca saiu da direita. A pretensa morte das ideologias é em si mesma uma ideologia.
Estou mais ou menos de acordo com o que diz Jacques Julliard. A crise actual, que é também uma crise de civilização, resulta de duas crises que ocorreram simultaneamente e estão interligadas: a falência do modelo comunista soviético e a crise estrutural do neo-liberalismo, fruto da supremacia do capitalismo à escala mundial. São crises distintas. Mas a tentativa de impor o modelo ultra-liberal a todo o planeta, para além das fracturas so¬ciais que já está a provocar, com a criação de sociedades dualistas e os seu cortejo de novas e grandes desigualdades, pode gerar graves crises políticas, susceptíveis de porem em causa a própria democracia.
A divinização do mercado é uma nova forma de totalitaris¬mo. Reabilitar a política é também reabilitar o Estado, que é o único e grande instrumento da esquerda para corrigir os desequi¬líbrios e as desigualdades sociais.
Há quem o veja como um aristocrata da política. Alguém que não sacrifica o respeito pela palavra dada ao ime-diatismo politiqueiro de hoje. Há, aliás nessa postura, a dimensão do poeta, poeta que Torga definia como sendo Um grande soberano/ No triste destino/ de ser um monstro humano/
por direito divino. E assim que se sente?
A minha amiga Sophia de Mello Breyner fez a mais bela definição de socialismo que conheço: uma aristocracia para todos. Estou de acordo. Mas não me vejo, pese embora a grandeza dos versos de Torga, nem como «soberano», nem como o que quer que seja «por direito divino». Sou um poeta emprestado à políti¬ca. Ou, como também já disse: um poeta que faz política por razões poéticas e não um político que faz poesia por razões políti¬cas.
É o poeta ou o político que afirma faltar hoje à política, paixão, convicção, militância, sonho...?
Não é preciso ser poeta para constatar que falta um pouco de tudo isso à política. A muitos políticos, não a todos. Ainda há quem tenha convicções, paixão e sonho.
Tenho a impressão que o Manuel Alegre se sente no P.S. como um exilado dentro da sua própria Pátria.
Holderlin considerava-se um exilado da casa do Ser. Seprun disse que toda a literatura nasce do sentimento de se ser estrangeiro no mundo. Nesse sentido, talvez o poeta seja sempre um exilado. Ou um clandestino. Porque, como disse o meu amigo Herberto Helder, «a poesia é uma clandestinidade na ditadura do mundo.» Posto isto, eu não me sinto um exilado dentro do meu próprio partido. É certo que os partidos políticos, indispensáveis à democracia, são simultaneamente instrumentos de liberdade e fonte de autoritarismos vários. Uma pessoa como eu talvez sinta mais agudamente essa contradição. Não cedo a nenhuma forma de autoritarismo em nome de pseudo-interesses partidários que, a maior parte das vezes, não são senão álibis para as várias formas de poder pessoal, de grupo ou de facção. Sinto-me bem com as bases e com o povo que vota. A nomenclatura incomoda-me. E eu tambáem a incomodo. Não temos nada em comum. Há, aliás, uma coisa curiosa: todos dizem que sou uma referência do PS. Mas depois parece que essa referência os atrapalha. Acresce que me dá vontade de rir ver inimigos jurados do PS, na fase da sua conso¬lidação do país, arvorarem-se hoje em juizes daqueles que, com Mário Soares e Salgado Zenha, construíram o Partido Socialista e salvaram a democracia portuguesa. Lembro-me de um que, no dia 11 de Março de 1975, apareceu na televisão a dizer o golpe falhou, o PS disfarçou. Hoje é ministro.
Ser socialista é um estado de espírito? A frase é do Saramago. E eu estou de acordo. Ser socialista hoje é sobretudo um estado de espírito. É-se socialista porque sim. Porque não se pode deixar de ser. Por temperamento, por impul¬so. Diria mesmo: por feitio.
Como é que é o PODER por dentro? Chato. Com uma lógica quase inevitável a da auto-justifi-cação. E também da auto-perpetuação. O poder procura sempre relegitimar-se e perpetuar-se. E cai quase sempre nessa lógica: a do poder como fim principal e único de si mesmo. Onde moram os valores, os princípios?
Em cada pessoa que os tem.
O Manuel Alegre busca os valores através da magia da palavra; pelo exercício da lembrança atraiçoada, sendo poeta na escrita e na vida, habitando os lugares onde a poesia vive -«Alma», «Alentejo», «Che.»...
O poeta, dizia Dante, é um fabbro, um artífice da palavra. Mas também um mago. Um descendente directo do xamã e dos feiticeiros que nas sociedades primitivas procuravam, através da repetição rítmica de palavras mágicas, exorcizar as forças maléfi¬cas e convocar as forças benfazejas. Penso, aliás, que a poesia é isso mesmo: uma vivência mágica, uma relação mágica com o mundo através da revelação da palavra poética.
O seu livro recentemenete publicado, «Contra a Corrente», colectânea de intervenções políticas, surge como repositório de uma vivência à esquerda, pela cultura.
Constato, no entanto, que a grande maioria dos seus leitores, também eles, estão «contra a corrente», tendo-o a si como referência tipo: Um dos últimos socialistas-idealistas do RS.
Ser de esquerda é ser inconformista. E ser inconformista é viver e escrever contra a corrente. O meu amigo Fernando Assis Pacheco escreveu: «indignar-me é o meu signo diário.» Esse é também o meu signo: não perder a capacidade de indignação. Incomodar-me e incomodar.
Esta ressurreição de Che Guevara massificado não indi¬cia o fim ideológico do próprio Che? Não estará para aconte¬cer a sua segunda morte? Não estaremos a assistir ao esvazia¬mento poético e ideológico que Che ainda possui?
A vida e a figura de Che são uma forma de poesia e beleza. Aquele seu célebre retraio desperta em nós o outro lado de nós mesmos, um outro sentido, a vontade de partir para uma demanda ou uma guerrilha contra a injustiça e a opressão. Por isso não é possível recuperar nem esvaziar o Che. Mais do que o projecto ou a estratégia, necessariamente contingentes, ele representa sobretu¬do o desprendimento, o desprezo pelo poder, a insubmissão, a rebeldia. E o mais terrível de todos os dons: o dom de si.
Aos 60 anos, Manuel Alegre está cansado de um País em inho - que não é possível suportar tanta mentira/tanta gente de esquerda a viver à direita.
E agora?
Esse poema, embora pouca gente o saiba, foi escrito há muitos anos, ainda em Argel, embora só tenha sido publicado muito mais tarde, em «Atlântico». Suscita sempre grande entusi¬asmo quando é lido pelo José Manuel Mendes, pelo Vasco Pereira da Costa, pelo Carranca. As pessoa julgam que foi escrito agora para agora. E isso é que é terrível.
Fundador do Partido Socialista, republicano, comba¬tente anti-salazarista, o médico de Arganil, Fernando Valle é, estou certo, a grande referência de Manuel Alegre.
Fernando Valle é a minha principal referência cívica. De certo modo tomou na minha vida o lugar de Avô materno, com o qual ainda conspirou. Estar com ele inspira-me e tranquiliza-me. Aprende-se sempre algo de novo. É uma força da natureza, um homem de uma grande e extraordinária sabedoria. Uma pessoa de uma grande beleza, física e de alma. Podia ter sido tudo. Não quis ser senão o que é: ele próprio, um mestre de vida, de fraternidade e de civismo. Apesar de estar quase a chegar aos cem anos, con¬serva uma impressionante frescura de espírito, uma curiosidade permanente, uma incomparável vitalidade. Já reparou como a pele se mantém jovem? É um homem sem rugas. Não as tem por fora nem por dentro. Fernando Valle é um milagre.

(...) Resistir é possível Pela
presença lúcida É possível
começar de novo

Porque ainda há Fernando Valle
Algures em Coimbra ou Arganil
Há ainda um velho capitão do povo

Com ele é sempre Portugal e
é sempre Abril

* Artes & Artes, Outubro, 97

2 Comments:

Blogger mch said...

Caro Sr. Carlos Carrancas
Digo sr, porque não o conheço, não para criar distÂncia.
Gpostei so seu posto, Sabe que aos 15 nos escrevi um MAnifesto do inconformismo que foi lido - aliás escutado proque estava passado para cassete - pasme-se - nas aulas de religião e Moral do padre ALberto Neto,meu professor de Moral no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa.
Há umas duas semnas publiquei D Duarte e a Democracia eu como saberá foi apresentado por MAnuel Alegre. Tenho lá uma pequena história sobre o funeral de Fernando Valle, ( deve escrever-se com dois ll? )
Meu emial é netmendo@netcabo.pt
Cumprimentos

5:14 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Esse livro é uma treta a verdadeira história de Duarte Pio está no site www.reifazdeconta.com

7:56 da manhã  

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