Torga - o bicho religioso
Conferência proferida na escola Padre Alberto Neto Queluz -a 28 de Março de 2000
Há já algum tempo, tempo suficiente capaz de uma geração, afirmava eu, a dado passo, num editorial que abria uma folha cultural intitulada Boémianova (título roubado a uma publicação fundada em Coimbra por António Nobre - poeta de que se comemora este mês o centésimo aniversário da sua morte), afirmava o seguinte: "Fazer da Arte um acto de fé e não uma religião é o nosso sonho".
Torga leu o texto e, muito bem paramentado na sua bata branca de médico, deixou-me no ar este comentário interrogativo "porque não uma religião?".
Este nosso encontro multiplicou-se por não sei quantos mais, em Coimbra, no Largo da Portagem, naquele 1.° andar que ostentava, pendurada da janela, uma tabuleta que dizia:
ADOLFO ROCHA
MÉDICO ESPECIALISTA
OUVIDOS, NARIZ E GARGANTA
Habituado como médico a conviver" com doentes, com o absurdo da morte, com o poder tirânico da morte, é arrancando--o ao quotidiano que Torga nos dá a dimensão do sagrado. E porque tudo em Torga é conflito é, na expressão do seu mestre Unamuno, a agonia (entendida como luta entre a vida e a morte) que marca o sentido maior de uma existência que procura regressar ao natural, a uma etapa anterior, de inocência cósmica, de ressurreição do sagrado humano.
Na sua obra poética, assim como no conto e no romance, Deus surge sempre como força da morte, sendo o destino do poeta o de cantar para vencer a morte. Assim como Vicente, o corvo da terra, desafiou Deus e o venceu, emancipando toda a criação, Torga "Orfeu Rebelde" "Bicho instintivo que adivinha a morte/ No corpo dum poeta que a recusa,/ Canta como quem usai Os versos em legítima defesa./ Canta sem perguntar à Musa/ Se o canto é de terror ou de beleza"
(Orfeu Rebelde. 1a ed. 1958, Pag 11)
Deus é uma razão que não é do mundo e Torga é do partido do Diabo (leia-se mundo):
Foi a ele que Jesus disse que o seu reino não era deste mundo. E o meu precisamente é.
(Diário, 1946, pp. 1621163)
O que há de verdadeiramente sagrado na obra de Torga é a Vida e a Liberdade de cada ser. É isso que o poeta nos diz em Flor da Liberdade:
Liberdade do homem sobre a terra, Ou debaixo da Terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.
Quando preparava esta minha reflexão que vos dedico sobre o tema que me foi proposto - o Homem, a Terra e Deus - , reparei que Torga tinha alterado em sucessivas edições o penúltimo parágrafo do último conto de Bichos, - Vicente - o corvo que se evadiu da Arca de Noé e do cimo de um penhasco desafiou Deus.
Da primeira para a última, a décima nona edição, há uma modificação que me parece reveladora de parte do segredo da sua obra literária:
Na primeira edição podemos ler, a finalizar o conto,Mas em breve todos compreenderam que o Senhor hesitava. Que já nada podia contra aquela vontade inabalável de viver. Na última, consegue o pleno. Encontra, finalmente, a fórmula certa Mas em breve se tornou evidente que o senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade de ser livre.
É nesta leitura comparada que se nos revela, sem equívocos, o pensamento do autor: vida como sinónima de liberdade. Mas de liberdade que se conquista, aos poucos, dia a dia, quotidianamente.
y
E num poema intitulado Conquista que Torga, lapidarmente, o indica:
Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
E quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino.
(Antologia Poética, pag 124, 1." ed. Coimbra, 1981)
É também o poeta que nos esclarece ser a liberdade uma penosa conquista da solidão.
E ainda ele que nos reza este 'Padre Nosso': Liberdade
- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua voz omnipotente
Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado
Saborear, enfim
O pão da minha fome.
- Liberdade que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
(Diário XII)
Mas alerta-nos que Ninguém é feliz sozinho, nem mesmo na eternidade (prefácio de Bichos). Daí a sua vida, a vida de poeta, ser uma dádiva permanente.
Pela palavra poética, Torga é fiel à solidariedade de berço, sou do povo, sou pelo povo, e não há forças humanas que me apaguem do instinto a cepa donde provenho (Diário IV, 2a ed. revista, 1953, p.66) e à solidariedade cósmica, porque ser poeta é estar mais próximo da divindade, ainda que entre homens e pelos homens.
Torga sabe que é um predestinado. Tem uma missão a cumprir. Ele cria o mito do próprio eu e o mito de Portugal.
Portugal
Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura, serás sempre o que sou.
E eu sou a liberdade dum perfil Desenhado no mar. Ondulo e permaneço. Cavo, remo, imagino
E descubro na bruma o meu destino Que de antemão conheço:
Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às raízes do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alto ainda do que no passado.
(Diário X)
A terra é, para Torga, a realidade maior. E é partindo da sua terra natal - S. Martinho de Anta (Trás-os-Montes) - que percorre Portugal, o conhece, o sente, o ouve em confissão, palmilhando--o, como os seus avós almocreves:
Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-la como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e tristezas.
(Diário V. p.60)
E na sua terra, a terra sagrada da infância, que o poeta recupera a energia que o homem civilizado perdeu:
De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino
da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida de que os resultados obtidos confirmam a sua verdade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. E como se recebesse instantaneamente uma transfusão de sangue.
(Diário XI. 1972. p.21)
Do livro de poemas Câmara Ardente, a sua estreita relação com a terra, o seu conhecido, falado e refalado telurismo, torna--se por demais evidente - quando, recorrendo uma vez mais ao mito de Anteu, nos diz no poema Comunicado:
Filho da Terra, minha mãe amada, E ela que levanta o lutador caído. Anteu anão, Toco-lhe o coração, E ergo-me do chão Fortalecido.
(1ª ed.pag.77. 1962)
E na intemporalidade do mito que a obra literária de Torga
se humaniza.
Torga anseia por ura tempo de reconciliação de todos os homens com a vida, num regresso ao equilíbrio ecológico, que tão urgente se torna hoje. É a partir dessa relação com a natureza que o poeta entende a poesia como o meio, a forma de comungar com a transcendência. Em Torga a poesia é assumida como uma religião; a palavra como oração renovada onde o poeta é senhor do sagrado, da palavra revelada.
Para Torga o Homem é mais importante que Deus e é através dos bichos, das pedras, das plantas, que este recupera a inocência perdida, a das primeiras descobertas.
É na terra que o poeta realiza os seus sonhos de artista e de cidadão, comprometido com a vida em busca da liberdade.
Há, na obra de Miguel Torga, a glorificação pagã da vida próxima de um certo cristianismo popular. A terra é, como já referiu Teresa Rita Lopes na sua obra "Miguel Torga - Ofício a um Deus de Terra", uma espécie de Virgem Maria que concebe sem pecado. E Torga revela-nos a necessidade de nos aproximarmos dessa pureza, dessa verdade que só é virgem porque é natural:
Conseguir na prosa a dignidade e a força descarnada destas fragas, e nos versos a pureza e a largueza dos horizontes que dela se descortinam é o instintivo propósito da minha ambição de artista.
(Diário VII, 1956, p. 179)
Partindo destas fragas, Torga vai desempenhar o papel reservado ao Criador, vai falar o mundo, vai criar a sua obra.
O seu romance autobiográfico é sugestivamente designado Criação do Mundo. Todos os seus cinco volumes ostentam, a abrir, o versículo de Génesis que diz "Tomou pois o Senhor Deus ao homem, e pô-lo no paraíso das delícias..."
Foi Deus que falou o Mundo, mas Torga vai também falar o seu mundo como criador que não aceita a tirania de uma vontade cínica, sem rosto. Leia-se o poema Livro de Horas, onde Torga se confessa a si mesmo, confessando-se autenticamente filho da terra, e não do céu:
Aqui, diante de mini, eu, pecador, me confesso de ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco que atira setas acima e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu. Eu, tal e qual como vim para dizer que sou eu aqui,
diante de mim!
(o outro Livro de JOB. 1936)
Na poesia e no conto há uma dimensão trágica da vida em direcção à morte, sempre carregada de conflitos que são seus - trouxe-os de Trás-os-Montes, da sua terra natal, filhos da gente que o viu nascer:
Às vezes matam-se uns aos outros duma maneira tal que parecem sem coração. Mas, olhando bem., vê-se que no intimo de cada crime não há mais do que a exaltação de puras e cristalinas virtudes, que só não são teologais porque Deus não quer. Uma delas, que nos pecados mortais é das piores, é neste reino a mais bela afirmação humana que se pode ver. Na verdade, é por orgulho que tais homens matam, morrem, ressuscitam, vivem, desfazem fragas e dão em toda a parte testemunho digno da sua terra.
(Portugal, pag. 31)
Regressando aos problemas de Deus na obra de Torga, faço aqui referência a um texto da autoria de António Arnaut e publicado no jornal "Artes & Artes" com o título "Miguel Torga a Morte sem Deus".
Apesar do muito em que concordamos, permito-me discordar da conclusão que faz o título do referido artigo .Torga não morre sem Deus. Torga morre só. Só, porque essa é a condição do Homem. Mas não deixa de crer, não no Deus tirânico, que toda a vida combateu, mas no Deus-Menino, que sempre glorificou. Porque acredita no milagre do nascimento e nesse hino à vida que é o corpo de um filho dentro da mulher a pedir mundo.
São variadíssimos os textos que ilustram o que acabo de afirmar. Deixo-vos, a título de exemplo, com excertos de dois contos - O Senhor, Natal e o poema Último Natal.
No conto O Senhor há um padre que é chamado para dar os últimos sacramentos a uma mulher que há três dias se encontra em trabalho de parto. Este liberta-se do seu papel de padre, depõe o sagrado viático e, d? mangas arregaçadas, arranca àquela pobre mulher o filho encravado na barriga.
(...) Os pés do sacerdote estavam agora bem assentes no soalho do quarto. O burburinho que vinha da rua trazia-lhe aos ouvidos um estímulo de naturalidade e de terra. A angústia de Filomena pedia e comandava.
(...)
A cara branca e pálida de Filomena parecia polvilhada da farinha que cobria tudo. Enternecido, o prior olhou-a com uma simpatia humana que só em menino tivera. E, naquela comunhão, depôs o sagrado viático sobre a tampa da caixa, ao lado da vela, tirou a estola do braço, despiu a capa, e disse, ao mesmo tempo que levantava a roupa da cama: - Mostra lá!
Era a primeira vez que via uma mulher naquele abandono, e uma vergastada do instinto alterou-lhe o ritmo do coração. Filomena, do seu lado, embora já quase despedida deste mundo, também sentiu a brisa de um pudor violado. Mas a força da realidade quase logo os serenou a ambos.
- Há três dias... - gemeu a infeliz, a queixar-se e a justificar-se.
(...)
- Malaquias!
- Senhor Padre Gusmão...
- Traz água!
Com o alguidar de barro a transbordar, parvo, o moleiro olhou o corpo escancarado da mulher e o padre de mangas arregaçadas.
(...)
Depois de um grande esforço de Filomena e do padre, um pequenino pé encarquilhado saiu preso à garra possante que o fora procurar. Um grito agudo chegou ao meio da turba alarmada.
- O que foi?
- Calai-vos!
Era meio caminho andado, e o prior estava decidido a chegar ao fim. Guiados por urna intuição de raiz e por uma ciência
brumosa de manual, os seus dedos pareciam adivinhar no seio da escuridão.
- Tem paciência, minha filha...
Duas lágrimas de dor e de gratidão desceram pelo rosto de Filomena.
- Malaquias!
- Senhor padre Gusmão...
- Traz água quente.
(...)
- Não fiques a olhar como um palerma! Pousa isso, e arranja
uma tesoura e linha. Mexe-te!
Faltava só a cabeça, que saiu depois de Filomena gastar as últimas forças a gritar.
- Pronto, já cá está!
Na exclamação de triunfo do padre Gusmão havia qualquer coisa de herético que feria os sentimento}: do moleiro. Mas, por outro lado, nada o poderia comover mais do que ver o filho a espernear naquelas mãos poderosas, humanas, que acabavam de o roubar à escuridão do nada.
(...)
A cara esvaída de Filomena tinha agora uma paz de dia findo. Exausta, olhou por alguns instantes a criança aos estremeções, deixou cair duas lágrimas de ternura, e mergulhou num sono profundo.
- Chama uma das mulheres lá de fora. Pode ser a Constança.
O Malaquias saiu a correr, estonteado de alegria e de
assombro, e entrou pouco depois acompanhado da velha.
- Tome conta do pequerrucho, e fique aí ao pé dela, que o
pior já passou.
- Olha que riqueza!
A Constança agasalhou no xaile a nudez limpa da pequena vida que estreava nos seus braços o aconchego do mundo, e o padre Gusmão lavou as mãos, desarregaçou as mangas e paramentou-se outra vez.
- João!
- Senhor Prior...
- Vamos lá.
Da caixa, o Senhor ergueu-se então solene, chegou aporta, e cobriu-se novamente do pálio da sua glória.
O segundo conto, Natal, fala-nos de um mendigo e de uma consoada muito especial:
De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem, a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam. ..Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado emLoivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa. ..E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a
pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam.. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego.
(...)
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e
foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. A volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o
alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela
estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma
pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal aforrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
- Boas festas! - desejou-lhe a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não
desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca
do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de
presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais
faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas, dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
- É servida?
A santa pareceu sorrir-lhe outra vez e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia
dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma
coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
E por fim, o poema Último Natal:
Gaia, 24 de Dezembro de 1990
Menino Jesus, que nasces,
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
Es divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.
(Diário XVI, p. 52)
Há nestes três exemplos que vos acabo de citar, o mito do eterno retorno - o regresso ao princípio - e a imagem do Menino Jesus, do filho a pedir mundo.
A vida a vencer a morte.
O nascimento do Menino (filho do moleiro) vem restabelecer por alguns momentos a concórdia entre os homens, e esse papel do Menino corresponde ao da poesia, à sagração do humano. No conto de Natal o pedinte que faz de S. José humaniza o nascimento de Jesus. E no poema Ultimo Natal, Torga dá-nos a coerência do percurso de uma vida, a sua, continuando a acreditar na vida como uma religião que o poeta oficia e no Menino, símbolo da concórdia, da fraternidade entre os homens.
Ao despedir-se, Torga deixa-nos um hino à Vida, à fé renovada, como ritual da religião que nos faz acreditar no Futuro.
Alguém, um dia, lhe perguntou porque não deixava ele de escrever durante uma temporada para descansar. Torga respondeu:
Porque era a mesma coisa que um crente deixar de rezar um mês ou dois por higiene.
(Diário. 24/08/42)
Conferência proferida na escola Padre Alberto Neto Queluz -a 28 de Março de 2000
Há já algum tempo, tempo suficiente capaz de uma geração, afirmava eu, a dado passo, num editorial que abria uma folha cultural intitulada Boémianova (título roubado a uma publicação fundada em Coimbra por António Nobre - poeta de que se comemora este mês o centésimo aniversário da sua morte), afirmava o seguinte: "Fazer da Arte um acto de fé e não uma religião é o nosso sonho".
Torga leu o texto e, muito bem paramentado na sua bata branca de médico, deixou-me no ar este comentário interrogativo "porque não uma religião?".
Este nosso encontro multiplicou-se por não sei quantos mais, em Coimbra, no Largo da Portagem, naquele 1.° andar que ostentava, pendurada da janela, uma tabuleta que dizia:
ADOLFO ROCHA
MÉDICO ESPECIALISTA
OUVIDOS, NARIZ E GARGANTA
Habituado como médico a conviver" com doentes, com o absurdo da morte, com o poder tirânico da morte, é arrancando--o ao quotidiano que Torga nos dá a dimensão do sagrado. E porque tudo em Torga é conflito é, na expressão do seu mestre Unamuno, a agonia (entendida como luta entre a vida e a morte) que marca o sentido maior de uma existência que procura regressar ao natural, a uma etapa anterior, de inocência cósmica, de ressurreição do sagrado humano.
Na sua obra poética, assim como no conto e no romance, Deus surge sempre como força da morte, sendo o destino do poeta o de cantar para vencer a morte. Assim como Vicente, o corvo da terra, desafiou Deus e o venceu, emancipando toda a criação, Torga "Orfeu Rebelde" "Bicho instintivo que adivinha a morte/ No corpo dum poeta que a recusa,/ Canta como quem usai Os versos em legítima defesa./ Canta sem perguntar à Musa/ Se o canto é de terror ou de beleza"
(Orfeu Rebelde. 1a ed. 1958, Pag 11)
Deus é uma razão que não é do mundo e Torga é do partido do Diabo (leia-se mundo):
Foi a ele que Jesus disse que o seu reino não era deste mundo. E o meu precisamente é.
(Diário, 1946, pp. 1621163)
O que há de verdadeiramente sagrado na obra de Torga é a Vida e a Liberdade de cada ser. É isso que o poeta nos diz em Flor da Liberdade:
Liberdade do homem sobre a terra, Ou debaixo da Terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.
Quando preparava esta minha reflexão que vos dedico sobre o tema que me foi proposto - o Homem, a Terra e Deus - , reparei que Torga tinha alterado em sucessivas edições o penúltimo parágrafo do último conto de Bichos, - Vicente - o corvo que se evadiu da Arca de Noé e do cimo de um penhasco desafiou Deus.
Da primeira para a última, a décima nona edição, há uma modificação que me parece reveladora de parte do segredo da sua obra literária:
Na primeira edição podemos ler, a finalizar o conto,Mas em breve todos compreenderam que o Senhor hesitava. Que já nada podia contra aquela vontade inabalável de viver. Na última, consegue o pleno. Encontra, finalmente, a fórmula certa Mas em breve se tornou evidente que o senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade de ser livre.
É nesta leitura comparada que se nos revela, sem equívocos, o pensamento do autor: vida como sinónima de liberdade. Mas de liberdade que se conquista, aos poucos, dia a dia, quotidianamente.
y
E num poema intitulado Conquista que Torga, lapidarmente, o indica:
Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
E quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino.
(Antologia Poética, pag 124, 1." ed. Coimbra, 1981)
É também o poeta que nos esclarece ser a liberdade uma penosa conquista da solidão.
E ainda ele que nos reza este 'Padre Nosso': Liberdade
- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua voz omnipotente
Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado
Saborear, enfim
O pão da minha fome.
- Liberdade que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
(Diário XII)
Mas alerta-nos que Ninguém é feliz sozinho, nem mesmo na eternidade (prefácio de Bichos). Daí a sua vida, a vida de poeta, ser uma dádiva permanente.
Pela palavra poética, Torga é fiel à solidariedade de berço, sou do povo, sou pelo povo, e não há forças humanas que me apaguem do instinto a cepa donde provenho (Diário IV, 2a ed. revista, 1953, p.66) e à solidariedade cósmica, porque ser poeta é estar mais próximo da divindade, ainda que entre homens e pelos homens.
Torga sabe que é um predestinado. Tem uma missão a cumprir. Ele cria o mito do próprio eu e o mito de Portugal.
Portugal
Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura, serás sempre o que sou.
E eu sou a liberdade dum perfil Desenhado no mar. Ondulo e permaneço. Cavo, remo, imagino
E descubro na bruma o meu destino Que de antemão conheço:
Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às raízes do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alto ainda do que no passado.
(Diário X)
A terra é, para Torga, a realidade maior. E é partindo da sua terra natal - S. Martinho de Anta (Trás-os-Montes) - que percorre Portugal, o conhece, o sente, o ouve em confissão, palmilhando--o, como os seus avós almocreves:
Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-la como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e tristezas.
(Diário V. p.60)
E na sua terra, a terra sagrada da infância, que o poeta recupera a energia que o homem civilizado perdeu:
De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino
da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida de que os resultados obtidos confirmam a sua verdade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. E como se recebesse instantaneamente uma transfusão de sangue.
(Diário XI. 1972. p.21)
Do livro de poemas Câmara Ardente, a sua estreita relação com a terra, o seu conhecido, falado e refalado telurismo, torna--se por demais evidente - quando, recorrendo uma vez mais ao mito de Anteu, nos diz no poema Comunicado:
Filho da Terra, minha mãe amada, E ela que levanta o lutador caído. Anteu anão, Toco-lhe o coração, E ergo-me do chão Fortalecido.
(1ª ed.pag.77. 1962)
E na intemporalidade do mito que a obra literária de Torga
se humaniza.
Torga anseia por ura tempo de reconciliação de todos os homens com a vida, num regresso ao equilíbrio ecológico, que tão urgente se torna hoje. É a partir dessa relação com a natureza que o poeta entende a poesia como o meio, a forma de comungar com a transcendência. Em Torga a poesia é assumida como uma religião; a palavra como oração renovada onde o poeta é senhor do sagrado, da palavra revelada.
Para Torga o Homem é mais importante que Deus e é através dos bichos, das pedras, das plantas, que este recupera a inocência perdida, a das primeiras descobertas.
É na terra que o poeta realiza os seus sonhos de artista e de cidadão, comprometido com a vida em busca da liberdade.
Há, na obra de Miguel Torga, a glorificação pagã da vida próxima de um certo cristianismo popular. A terra é, como já referiu Teresa Rita Lopes na sua obra "Miguel Torga - Ofício a um Deus de Terra", uma espécie de Virgem Maria que concebe sem pecado. E Torga revela-nos a necessidade de nos aproximarmos dessa pureza, dessa verdade que só é virgem porque é natural:
Conseguir na prosa a dignidade e a força descarnada destas fragas, e nos versos a pureza e a largueza dos horizontes que dela se descortinam é o instintivo propósito da minha ambição de artista.
(Diário VII, 1956, p. 179)
Partindo destas fragas, Torga vai desempenhar o papel reservado ao Criador, vai falar o mundo, vai criar a sua obra.
O seu romance autobiográfico é sugestivamente designado Criação do Mundo. Todos os seus cinco volumes ostentam, a abrir, o versículo de Génesis que diz "Tomou pois o Senhor Deus ao homem, e pô-lo no paraíso das delícias..."
Foi Deus que falou o Mundo, mas Torga vai também falar o seu mundo como criador que não aceita a tirania de uma vontade cínica, sem rosto. Leia-se o poema Livro de Horas, onde Torga se confessa a si mesmo, confessando-se autenticamente filho da terra, e não do céu:
Aqui, diante de mini, eu, pecador, me confesso de ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco que atira setas acima e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu. Eu, tal e qual como vim para dizer que sou eu aqui,
diante de mim!
(o outro Livro de JOB. 1936)
Na poesia e no conto há uma dimensão trágica da vida em direcção à morte, sempre carregada de conflitos que são seus - trouxe-os de Trás-os-Montes, da sua terra natal, filhos da gente que o viu nascer:
Às vezes matam-se uns aos outros duma maneira tal que parecem sem coração. Mas, olhando bem., vê-se que no intimo de cada crime não há mais do que a exaltação de puras e cristalinas virtudes, que só não são teologais porque Deus não quer. Uma delas, que nos pecados mortais é das piores, é neste reino a mais bela afirmação humana que se pode ver. Na verdade, é por orgulho que tais homens matam, morrem, ressuscitam, vivem, desfazem fragas e dão em toda a parte testemunho digno da sua terra.
(Portugal, pag. 31)
Regressando aos problemas de Deus na obra de Torga, faço aqui referência a um texto da autoria de António Arnaut e publicado no jornal "Artes & Artes" com o título "Miguel Torga a Morte sem Deus".
Apesar do muito em que concordamos, permito-me discordar da conclusão que faz o título do referido artigo .Torga não morre sem Deus. Torga morre só. Só, porque essa é a condição do Homem. Mas não deixa de crer, não no Deus tirânico, que toda a vida combateu, mas no Deus-Menino, que sempre glorificou. Porque acredita no milagre do nascimento e nesse hino à vida que é o corpo de um filho dentro da mulher a pedir mundo.
São variadíssimos os textos que ilustram o que acabo de afirmar. Deixo-vos, a título de exemplo, com excertos de dois contos - O Senhor, Natal e o poema Último Natal.
No conto O Senhor há um padre que é chamado para dar os últimos sacramentos a uma mulher que há três dias se encontra em trabalho de parto. Este liberta-se do seu papel de padre, depõe o sagrado viático e, d? mangas arregaçadas, arranca àquela pobre mulher o filho encravado na barriga.
(...) Os pés do sacerdote estavam agora bem assentes no soalho do quarto. O burburinho que vinha da rua trazia-lhe aos ouvidos um estímulo de naturalidade e de terra. A angústia de Filomena pedia e comandava.
(...)
A cara branca e pálida de Filomena parecia polvilhada da farinha que cobria tudo. Enternecido, o prior olhou-a com uma simpatia humana que só em menino tivera. E, naquela comunhão, depôs o sagrado viático sobre a tampa da caixa, ao lado da vela, tirou a estola do braço, despiu a capa, e disse, ao mesmo tempo que levantava a roupa da cama: - Mostra lá!
Era a primeira vez que via uma mulher naquele abandono, e uma vergastada do instinto alterou-lhe o ritmo do coração. Filomena, do seu lado, embora já quase despedida deste mundo, também sentiu a brisa de um pudor violado. Mas a força da realidade quase logo os serenou a ambos.
- Há três dias... - gemeu a infeliz, a queixar-se e a justificar-se.
(...)
- Malaquias!
- Senhor Padre Gusmão...
- Traz água!
Com o alguidar de barro a transbordar, parvo, o moleiro olhou o corpo escancarado da mulher e o padre de mangas arregaçadas.
(...)
Depois de um grande esforço de Filomena e do padre, um pequenino pé encarquilhado saiu preso à garra possante que o fora procurar. Um grito agudo chegou ao meio da turba alarmada.
- O que foi?
- Calai-vos!
Era meio caminho andado, e o prior estava decidido a chegar ao fim. Guiados por urna intuição de raiz e por uma ciência
brumosa de manual, os seus dedos pareciam adivinhar no seio da escuridão.
- Tem paciência, minha filha...
Duas lágrimas de dor e de gratidão desceram pelo rosto de Filomena.
- Malaquias!
- Senhor padre Gusmão...
- Traz água quente.
(...)
- Não fiques a olhar como um palerma! Pousa isso, e arranja
uma tesoura e linha. Mexe-te!
Faltava só a cabeça, que saiu depois de Filomena gastar as últimas forças a gritar.
- Pronto, já cá está!
Na exclamação de triunfo do padre Gusmão havia qualquer coisa de herético que feria os sentimento}: do moleiro. Mas, por outro lado, nada o poderia comover mais do que ver o filho a espernear naquelas mãos poderosas, humanas, que acabavam de o roubar à escuridão do nada.
(...)
A cara esvaída de Filomena tinha agora uma paz de dia findo. Exausta, olhou por alguns instantes a criança aos estremeções, deixou cair duas lágrimas de ternura, e mergulhou num sono profundo.
- Chama uma das mulheres lá de fora. Pode ser a Constança.
O Malaquias saiu a correr, estonteado de alegria e de
assombro, e entrou pouco depois acompanhado da velha.
- Tome conta do pequerrucho, e fique aí ao pé dela, que o
pior já passou.
- Olha que riqueza!
A Constança agasalhou no xaile a nudez limpa da pequena vida que estreava nos seus braços o aconchego do mundo, e o padre Gusmão lavou as mãos, desarregaçou as mangas e paramentou-se outra vez.
- João!
- Senhor Prior...
- Vamos lá.
Da caixa, o Senhor ergueu-se então solene, chegou aporta, e cobriu-se novamente do pálio da sua glória.
O segundo conto, Natal, fala-nos de um mendigo e de uma consoada muito especial:
De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem, a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam. ..Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado emLoivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa. ..E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a
pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam.. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego.
(...)
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e
foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. A volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o
alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela
estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma
pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal aforrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
- Boas festas! - desejou-lhe a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não
desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca
do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de
presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais
faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas, dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
- É servida?
A santa pareceu sorrir-lhe outra vez e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia
dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma
coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
E por fim, o poema Último Natal:
Gaia, 24 de Dezembro de 1990
Menino Jesus, que nasces,
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
Es divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.
(Diário XVI, p. 52)
Há nestes três exemplos que vos acabo de citar, o mito do eterno retorno - o regresso ao princípio - e a imagem do Menino Jesus, do filho a pedir mundo.
A vida a vencer a morte.
O nascimento do Menino (filho do moleiro) vem restabelecer por alguns momentos a concórdia entre os homens, e esse papel do Menino corresponde ao da poesia, à sagração do humano. No conto de Natal o pedinte que faz de S. José humaniza o nascimento de Jesus. E no poema Ultimo Natal, Torga dá-nos a coerência do percurso de uma vida, a sua, continuando a acreditar na vida como uma religião que o poeta oficia e no Menino, símbolo da concórdia, da fraternidade entre os homens.
Ao despedir-se, Torga deixa-nos um hino à Vida, à fé renovada, como ritual da religião que nos faz acreditar no Futuro.
Alguém, um dia, lhe perguntou porque não deixava ele de escrever durante uma temporada para descansar. Torga respondeu:
Porque era a mesma coisa que um crente deixar de rezar um mês ou dois por higiene.
(Diário. 24/08/42)
1 Comments:
Deus em pessoa
"nao se trata de uma luz enigmática do transcendente nem de uma experiência mística, nem de uma metafísica, nem de uma pista sobre o relogio magico do universo, perfeito ou cego nas suas evoluções. Nem sequer de um eureka resultante de aglomerados culturais, camadas de visões ou sequências precipitada de feiticos. Tudo isso seria interessante a recordar aos mortais que algo existe para além do imediato ou que uma lógica sublime esconde inteligencias mil - ou uma inteligencia infinita - por detras dos absurdos que tecem tantos andamentos da historia dos homens. E, possivelmente, ficaríamos filosoficamente tranquilos, por um ser inacessível nos vigiar, uma inteligencia maior confortar a nossa estreiteza e, quem sabe, um confortável sentido último daria tranquilidade aos ventos cruzados que desnorteiam as nossas trémulas bússolas.
Os deuses do olimpo lá tinham os seus entretenimentos, afectos e fúrias para além das nuvens - mas nao muito para alem. Nao obstante alguma proximidade da sua mesquinhez, os crentes do desamor arrogante que eles alimentavam pela humanidade. Os sues afazeres, ainda que assumidos como mitologia, nada tinham a ver com a realidadde humana. Serviam para divertimento das divindadesque, afinal, em ponto maior, apenas cultivavam fraquezas humanas. Foram inspiradores de poetas, musicos e pintores. Mas sempre se mantiveram suspensos das suas proprias tramas, só se deixando ver nas tempestades furibundas que aterrorizavam os mortais.
A revelação de Deus, desde o sinai, trouxe um envolvimento na história do homem. Como pessoa e como povo. Nada lhe ficou estranho ou alheio. E o homem habituou-se a nao dar um passo no tempo sem o relacionar com os passos de Deus.
Mas foi a vinda de Jesus que vestiu Deus da nossa carne, assemelhado-o em tudo a nós excpto no mal. Antes para dele nos livrar.(do mal) E esse mistério torna-se particularmente visivel no Natal, no anuncio feito a Maria, nas dúvidas de José, na intervenção de João Baptista, na aproximação a Belém, no nascimento, no presépio, nos magos, no fundo em tudo. Foi Deus que chegou. Deus em pessoa. Bem diferente de um transcendente Abstracto."
e parecendo que nao, explica muita coisa...
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