domingo, outubro 15, 2006

Falta Académica ao OAF

Carlos Carranca ao "Tertúlia”

O poeta Carlos Carranca acaba de editar, agora em prosa, mais um livro. Chama-se "Académica sempre - a poética do futebol" e nele o autor defende o regresso aos valores da velha Briosa.
Carlos Carranca gosta de dizer que "um poeta não tem biografia, tem obra". Mas quem o não conhece, precisa de saber quem ele é. Pois bem: nasceu na Figueira da Foz, há 48 anos, mas rapidamente assentou arraiais em Coimbra.
Aí estudou, nadou e jogou rugby pela Académica. Até que a vida o chamou a Lisboa. Numa primeira vez, não se demorou muito. Regressou, integrou o movimento pela restauração das chamadas tradições académicas, fundou a revista "Coimbra de capa e batina", casou-se e viu nascer o primeiro dos seus dois filhos. Em finais de 81, porém, instalou-se definitivamente em Lisboa, onde acabou por concluir o curso de História iniciado nas margens do Mondego. Mas a sua tese de licenciatura é sobre a destruição da velha Alta coimbrã. Um dos seus primeiros poemas editados em livro, agora cantado por Luís Gois, chama-se "Guitarra de Coimbra". E à cidade dos estudantes volta sempre que pode. "A minha relação com Coimbra é um relação poética", explica Carranca, numa entrevista que tem como pretexto o seu mais recente livro - entre as quase três dezenas que já publicou -, editado este ano pela "Minerva": "Académica sempre - a poética do futebol". Um livro que é sobretudo uma com¬pilação de crónicas publicadas no "Diário de Coimbra", quase todas con¬duzindo à mesma "provocatória" conclusão: "A Académica já não existe". Porquê? "Falta Académica ao Organismo Autónomo de Futebol" (OAF), sus¬tenta o autor.
Tertúlia Académica (TA) - O teu mais recente livro é, no essencial, uma compilação de crónicas escritas entre finais de 2004 e o princípio de 2005. O que é que te levou a escrevê-lo?
Carlos Carranca (CC) - O desencanto total, ao observar que a Académica, que para mim foi, como dizia o Zeca, uma causa - porque sempre esteve para além do futebol e entendeu este como um meio para o aperfeiçoamento do homem e da sociedade -, se colocou ao serviço do seu contrário: dos negócios, da má educação...
TA - Da má educação? ...
CC - Quando o guarda-redes adversário pontapeia a bola e o público grita "filho da p...", isso não tem a ver com Coimbra nem, seguramente, com qual¬quer ideal de uma sociedade mais justa.
TA - Boa parte das crónicas reunidas no livro têm um título bastante polémico, quase diria, provocatório: "A Académica já não existe". Explica-te lá...
CC - A Académica entronca numa maneira de ser e de estar que, para ser apreendida, obriga a um certo enraizamento das pessoas. Não se ama aquilo que não se conhece e a vida aprende-se devagar. Ora, hoje, os jogadores são vistos como elementos descartáveis, a quem nem sequer é dado tempo para conhecerem o que nos distingue, para perceberem a nossa identidade. Quan¬tos brasileiros passaram pela equipa nos últimos três, quatro anos? Creio que mais de 50. A Académica não é isso!
TA - O problema é só esse?
CC - A questão de fundo é: o que é ser da Académica?. Tem de haver uma imagem de marca. Não foi por acaso que o meu livro, em Coimbra, foi apre¬sentado pelo Manuel António, nas instalações da Associação Académica e com a presença do presidente da sua direcção-geral. E que, em Cascais, foi apre¬sentado pelo Mário Wilson.
TA - Outra opinião bastante controversa é acerca do Estádio Cidade de Coimbra: "Afastou os jogadores do seu público, segregou socialmente os adeptos, tornando o espectáculo desportivo inacessível à maioria das bolsas dos portugueses que gostam de futebol, e acentuou a diferença entre os que podem muito, os que podem, os que menos podem, e os que não podem nada". O estádio não devia ter sido feito, é isso?
CC - Daquela forma e naquele sítio, não. Aquele local devia ser um grande espaço de convívio, de festa e de juventude, e não de consumismo. O novo estádio devia ter sido feito numa zona limítrofe - em Taveiro, por exemplo - e "à inglesa", com o público em cima dos jogadores. O que foi construído não é da cidade e, portanto, não é da Académica. Parece que andamos a brincar aos ricos. Ora, como dizia o Torga, "quem quer serviçais, paga-lhes".
TA - Há quem pense que a construção na periferia afasta o público.
CC - Quando foi construído, o Calhabé não era na periferia? Devíamos con¬tinuar no Santa Cruz, que era bem no "centro do meio"?
TA - Acabas praticamente o livro com um poema dedicado ao Manuel António. Qual a razão da escolha?
CC - A Académica está carregada de prosa. O que lhe falta é dimensão poética. O que faz com que a Académica tenha tantos simpatizantes? A imagem da diferença. Os valores, para além do futebol.
TA - A minha pergunta não era sobre a escolha da poesia como forma de expressão. Era acerca da escolha do Manuel António como objecto do poema.
CC - O Manuel António simboliza o que defendo. Felizmente, até ao fim dos anos 60, temos dezenas de exemplos semelhantes. Mas ele é, quer queiramos quer não, o nosso único "Bola de Prata", ainda por cima conquistada numa altura em que se dizia que o trofeu só era acessível a jogadores do Benfica, do Sporting ou do Porto. O Manuel António provou que é possível atingir o má¬ximo desenvolvimento desportivo sem renegar os princípios. Foi um excelente jogador, dignificou a Académica, é um cidadão exemplar, um profissional que, enquanto director do IPO (Instituto Português de Oncologia), coloca o seu saber ao serviço dos outros... É a prova de que há poesia no futebol. A forma como este é gerido é que está ao nível da prosa mais rasca.
TA - Nas últimas eleições para os Corpos Gerentes da Académica - e disso também falas no livro - integraste a candidatura derrotada de Maio de Abreu e participaste activamente na campanha. Que balanço fazes destes primeiros meses da direcção que acabou por ser eleita?
CC - Não me surpreendem. Mantenho todas as críticas que fiz. Falta Académica ao Organismo Autónomo de Futebol. E faltar Académica, no fundo, é isto: falta lucidez para entender que a Académica não existe sem direcção-geral da Associação Académica. Façam lá as regras que entenderem, mas sem o futebol ao serviço dos estudantes, e não com os estudantes ao serviço dos interesses do futebol, a Académica não existe.
TA - És um grande defensor das chamadas tradições académicas: das capas negras, do fado e da guitarra de Coimbra, creio mesmo que da praxe. Mas és, também, tido por um tipo progressista, politicamente cono¬tado com a ala esquerda do PS, membro da Comissão da Honra da can¬didatura presidencial de Manuel Alegre... Para ti, não há aí nenhuma con¬tradição...
CC - Não sou praxista, mas tradição é cultura e um povo sem memória é um povo sem futuro. Além disso, sempre entendi a capa como bandeira da liber¬dade. A Igreja católica queimou "infiéis", mas também salvou "almas". Assim como há monarquias progressistas e repúblicas reaccionárias. O segredo está na utilização que fazemos do património, do que herdámos. A crise académica de 69 fez-se de capa e batina e com o futebol da Académica.

João Mesquita in Tertúlia Académica, ano 4, nº 10, p.14.