O HOMEM DIVIDIDO ENTRE O MAR E A TERRA
Do pseudómino do poeta, Torga, tiramos o significado claro da sua ligação à teria natal e à terra, entendida como tellus, mãe primacial, fonte de vida com a qual Torga realiza um verdadeiro «encontro eucarístico». É da terra que nasce a torga, planta silvestre que lhe aviva o nome.
Este relacionamento com a terra, o poeta vai justificá-lo e consolidá-lo evocando a cul¬tura grega e o mito de Anteu: «De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tama¬nho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida de que os resultados obtidos confirmam a sua veracidade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva» (36).
Filho da Terra, minha mãe amada,
É ela que levanta o lutador caído
Anteu anão,
Toco-lhe o coração,
E ergo-me do chão
Fortalecido.
(Câmara Ardente, p. 77)
Fernão de Magalhães Gonçalves explica-nos o telurismo de Torga. É dele a seguinte afirma¬ção : «O telurismo de Torga não é uma impostura literária. Não é um exercício determinista que tenta meter o tamanho do homem no papel de rebuçado de qualquer ideia que o pense. Tão--pouco é uma determinada fase de evolução da sua obra (...) O telurismo é a consequência directa e necessária do comportamento interior
Diário, xi, 1973, p. 21.
do homem crucificado na dualidade que divide todo o seu pensamento, toda a sua vontade, a selecção visual do seu olhar» (37).
É partindo do conhecimento da sua terra, à de Trás-os-Montes, que Torga percorre o país numa necessidade natural. «Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-la como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e tristezas» (38).
Ele experimenta «um Portugal que começa na rua quinhentista de Miranda do Douro e vem por aí abaixo» (39), um Portugal com «Camilo a descrever paixões negras em Trás-os-Montes, e o Fialho a ceifar searas de sol no Alentejo» (40), um Portugal «radioso e arcaico, lírico e feudal, de. igrejas branca.s (...), de vacas a ruminar o tremoço e o tempo, de virtudes humanas e cívicas à prova de fome e vulcões — um Portu¬gal que se destacou do continente no mar alto,
(;i7) Fernão M. Gonçalves, Sete Meditações sobre Miguel Torga, pp. 78-80.
(38) Diário, v, p. 60.
(39) Diário, viu, p. 57.
(40) Diário, n, p. 28.
e se enrolou sobre si mesmo até juntar as pontas, a fim de coutar a sua lusitanidade» (41). Um Portugal ecuménico que tomou como seu o que viria a ser o princípio fundamental da filosofia vitalista torguiana: «O universal é o local sem paredes» (42).
Miguel Torga assume a dualidade da sua Pátria, dividida entre o apelo do mar e a voz da terra:
Fui ver o mar.
Homem de pólo a pólo, vou
De vez ern quando olhá-lo, enraizar
Em água este Marão que sou.
(Diário, l, p. 143)
Portugal responde ao apelo do mar e parte à descoberta, levado por uma ânsia libertadora,
Foram então as ânsias e os pinhais Transformados em frágeis caravelas Que partiam guiadas por sinais Duma agulha inquieta como elas...
(41) Diário, xi, p. 78.
(42) Ti aço de União, 2.a ecl. revista, 1969, p. 69.
Foram então abraços repetidos
A -Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.
Foram então as velas enfunadas
Por um sopro viril de reacção
As palavras cansadas
Que se ouviram no cais dessa ilusão.
Foram então as horas no convés Do grande sonho que mandava ser Cada homem tão firme .nos seus pés Que a nau tremesse sem ninguém tremer,
(Poemas Ibéricos, «A Largada»)
O homem português foge da terra e perde-se no mar.
O homem lusíada torguiano, é um ser coro ânsias de liberdade, e gestos novos, que encontra no mar o caminho ideal para as suas tendências. Mas vai ser ele (mar) a ensinar-lhe a procurar na terra a libertação desejada,
Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia: Eras um campo macio de lavrar Ou qualquer _ sugestão que apetecia...
Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
— Nem aumentar nem sufocar o pranto.,.
Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!
Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!
Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!
(Poemas Ibéricos, «Mar»)
Jesus Herrero, esclarece-nos sobre este tema, sintetizando: «É este, afinal, o caracter espe¬cífico do povo português: ter tomado somente por bússola a fantasia ante o mistério do mar, símbolo permanente da vida» (43).
(43) Miguel Torga, Poeta Ibérico, p. 176. 52
Retirado da obra “Torga O Português do Mundo” da Coimbra editora, 1988, pp 47-52.
Do pseudómino do poeta, Torga, tiramos o significado claro da sua ligação à teria natal e à terra, entendida como tellus, mãe primacial, fonte de vida com a qual Torga realiza um verdadeiro «encontro eucarístico». É da terra que nasce a torga, planta silvestre que lhe aviva o nome.
Este relacionamento com a terra, o poeta vai justificá-lo e consolidá-lo evocando a cul¬tura grega e o mito de Anteu: «De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tama¬nho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida de que os resultados obtidos confirmam a sua veracidade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva» (36).
Filho da Terra, minha mãe amada,
É ela que levanta o lutador caído
Anteu anão,
Toco-lhe o coração,
E ergo-me do chão
Fortalecido.
(Câmara Ardente, p. 77)
Fernão de Magalhães Gonçalves explica-nos o telurismo de Torga. É dele a seguinte afirma¬ção : «O telurismo de Torga não é uma impostura literária. Não é um exercício determinista que tenta meter o tamanho do homem no papel de rebuçado de qualquer ideia que o pense. Tão--pouco é uma determinada fase de evolução da sua obra (...) O telurismo é a consequência directa e necessária do comportamento interior
Diário, xi, 1973, p. 21.
do homem crucificado na dualidade que divide todo o seu pensamento, toda a sua vontade, a selecção visual do seu olhar» (37).
É partindo do conhecimento da sua terra, à de Trás-os-Montes, que Torga percorre o país numa necessidade natural. «Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-la como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e tristezas» (38).
Ele experimenta «um Portugal que começa na rua quinhentista de Miranda do Douro e vem por aí abaixo» (39), um Portugal com «Camilo a descrever paixões negras em Trás-os-Montes, e o Fialho a ceifar searas de sol no Alentejo» (40), um Portugal «radioso e arcaico, lírico e feudal, de. igrejas branca.s (...), de vacas a ruminar o tremoço e o tempo, de virtudes humanas e cívicas à prova de fome e vulcões — um Portu¬gal que se destacou do continente no mar alto,
(;i7) Fernão M. Gonçalves, Sete Meditações sobre Miguel Torga, pp. 78-80.
(38) Diário, v, p. 60.
(39) Diário, viu, p. 57.
(40) Diário, n, p. 28.
e se enrolou sobre si mesmo até juntar as pontas, a fim de coutar a sua lusitanidade» (41). Um Portugal ecuménico que tomou como seu o que viria a ser o princípio fundamental da filosofia vitalista torguiana: «O universal é o local sem paredes» (42).
Miguel Torga assume a dualidade da sua Pátria, dividida entre o apelo do mar e a voz da terra:
Fui ver o mar.
Homem de pólo a pólo, vou
De vez ern quando olhá-lo, enraizar
Em água este Marão que sou.
(Diário, l, p. 143)
Portugal responde ao apelo do mar e parte à descoberta, levado por uma ânsia libertadora,
Foram então as ânsias e os pinhais Transformados em frágeis caravelas Que partiam guiadas por sinais Duma agulha inquieta como elas...
(41) Diário, xi, p. 78.
(42) Ti aço de União, 2.a ecl. revista, 1969, p. 69.
Foram então abraços repetidos
A -Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.
Foram então as velas enfunadas
Por um sopro viril de reacção
As palavras cansadas
Que se ouviram no cais dessa ilusão.
Foram então as horas no convés Do grande sonho que mandava ser Cada homem tão firme .nos seus pés Que a nau tremesse sem ninguém tremer,
(Poemas Ibéricos, «A Largada»)
O homem português foge da terra e perde-se no mar.
O homem lusíada torguiano, é um ser coro ânsias de liberdade, e gestos novos, que encontra no mar o caminho ideal para as suas tendências. Mas vai ser ele (mar) a ensinar-lhe a procurar na terra a libertação desejada,
Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia: Eras um campo macio de lavrar Ou qualquer _ sugestão que apetecia...
Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
— Nem aumentar nem sufocar o pranto.,.
Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!
Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!
Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!
(Poemas Ibéricos, «Mar»)
Jesus Herrero, esclarece-nos sobre este tema, sintetizando: «É este, afinal, o caracter espe¬cífico do povo português: ter tomado somente por bússola a fantasia ante o mistério do mar, símbolo permanente da vida» (43).
(43) Miguel Torga, Poeta Ibérico, p. 176. 52
Retirado da obra “Torga O Português do Mundo” da Coimbra editora, 1988, pp 47-52.
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