Carlos Carranca - neste lugar sem portas

quinta-feira, abril 26, 2007

O valor da palavra


O texto de Eduardo Aroso intitulado "O Espírito da raiz de Carlos Carranca" chamou-me a atenção sobre dois factos importantes: de um lado - e talvez este aspecto seja o mais importante - deu-me a conhecer extractos da poesia de Carlos Carranca, que eu, infelizmente não conhecia. E quando digo infelizmente será com toda a sinceridade - e nem se adivinha outra forma ou outra intenção de poder ver esta questão do meu desconhecimento da excelente poesia de Carlos Carranca. As justificações são quase tantas como aquelas que eu teria para dizer caso conhecesse desde logo a poesia deste autor.
Não se conhece porque se não pode conhecer tudo, e conhece-se, ás vezes, porque calha, porque acontece, breve, porque no meio de todo um universo - que até é pequenino - é impossível saber-se de tudo aquilo que é impresso e sobretudo é impossível conhecer-se tudo aquilo que tem valor. As voltas com a indigestão de infindos "barretes" enfiados à conta do prestígio de nomes sonantes da - ainda nossa - literatura, estrondosamente envol­vidos pelos bombardeiros publicitários de editoras/ promotoras de renome, desconfiamos um pouco de tudo, mesmo do valor daquilo que depois verifica­mos ter valor. Mesmo nestes casos, muitas vezes não deixamos de procurar debaixo das nossas camas, onde tradicionalmente se escondem os ladrões das nossas verdades, na ânsia de confirmar vezes sem conta a ausência destes nas noites duvidosas. Assim, às vezes chegamos mais tarde às coisas que têm valor, outras vezes não chegamos a chegar, mas, mesmo quando chegamos tarde vale a pena e quando não chegamos temos sempre a hipótese de poder um dia vir a chegar.
Quase sem saber - vá lá, fiz de propósito! -encontro-me centrado no ponto segundo que referi no início e que gostaria de desenvolver hoje e que aliás é referido nesta mesma crítica (mais crónica que crítica) de Eduardo Aroso. (...) "Dou-lhe a minha palavra de honra! Palavra de honra que é verdade!" Homens para quem a palavra tem a verdade de uma assinatura. Quem conhece a poesia de Carlos Carranca sente que nela brota a Palavra antes da letra, ainda que em atitude silenciosa, nurna inti­midade profunda, palavras que só ele ouve, antes dos outros.
Obviamente que o poema não tem ainda a certidão de nascimento, mas ele aí está em gestação, o ente. (...) " Que será o poema-escrito -depois de falado a sós.
A separação entre a palavra escrita e a palavra dita apela, segundo aquilo que se entende das palavras de E. A. à primazia da sonoridade e/ou da interioridade, o que certamente se enquadra no espírito de uma frase de Antonino Pagliaro em "A vida do sinal" que é a seguinte: "(...) Possuidor da palavra, o homem tornou-se senhor do mundo da natureza e do mundo dos espíritos. Por isso Novalis dizia: 'A palavra é obra de magia: chamamos um espírito e ele vem".(...). Ou seja, e inserindo esta frase no contexto do trabalho de Eduardo Aroso -entendendo que ela está inserida, por sua vez, no contexto do trabalho de Aroso - poderia certamente afirmar-se que entende este autor que a Palavra sendo primeira - em termos genéticos - é antes da letra (segunda em termos genéticos) Poema em gestação. A letra aparece como uma certidão de nascimento, uma afirmação visível da vida. A Palavra é palavra de espírito, que é a anteriormente referida unidade entre significado e significante que E. A. vai buscar a S. Paulo.
Só que essa palavra que é tudo (é a verdade) sendo identidade absoluta entre o ser (gerado) e aquilo que se afirma do ser (ser gerado escrito) me leva a uma outra citação, desta vez de Giambattista Viço: "(...) A primeira (forma de linguagem) é a linguagem muda, ou seja, entender e significar as coisas na sua essência, sem necessidade de recorrer à sua objectivação formal: por outras palavras, trata--se do intelecto puro, que é próprio da divindade, que realiza a expressão e a compreensão sem qualquer intermediário de ordem física. (...)". Nem mesmo tendo como intermediária a palavra/símbolo fónico ou jogo simbólico interior, anterior à palavra símbolo escrito.
O intelecto puro em Viço tem a mesma signifi­cação daquela que foi dada pelos gregos e por Platão quando interpretava o sensível como o múltiplo (a pluralidade, o que muda, o que parece ser) e o inteligível (ou objecto último da razão prá­tica em Kant) como o uno (a unidade, o permanente, o que é). Logo, a linguagem muda seria, por outras palavras, a coisa em si (essência/existência/subs­tância) .
Portanto, e seguindo este raciocínio, facilmente poderemos chegar à conclusão que Eduardo Aroso entende que Carlos Carranca trabalha o poema enquanto intelecto puro, ou quase puro porque simbolizado pela palavra interior, independen­temente (ou com ausência de preocupação) sobre a forma que a letra posteriormente virá a dar-lhe. Esta afirmação não é feita taxativamente por E. A. mas poderemos chegar a ela pela leitura do texto, ou seja, analisando uma manifestação interior de Eduardo Aroso anterior às suas palavras escritas cujas pistas se espalham ao longo do texto. Ora, a meu ver, e sem pôr em causa a qualidade da intervenção de Eduardo Aroso, parece-me que o trabalho gráfico - chamemos-lhe assim -, ou chamemos-lhe melhor, o trabalho de composição da letra, da palavra, desperta sonoridades, imagens e todo um conjunto complexo de identidades subjectivas que estaríamos longe de poder considerar se Carlos Carranca se não dedicasse a um laborioso trabalho de composição escrita.
Não vou aqui debruçar-me mais que o devido sobre a questão da comunicação e da necessidade de comunicar, nem sobre o efeito redutor que à comunicação Henri Bergson, por exemplo, atribui no seu Ensaio sobre os dados imediatos da Consciência, no que se refere à sensação. É meu entendimento que Eduardo Aroso, de certa forma, pretende poupar a poesia (de Carlos Carranca) a esse efeito redutor que, contudo, devemos entender não como uma fatalidade, mas como uma necessi­dade da comunicação que faz tanto parte dela (comunicação) como da palavra (da interiorizada e da comunicada).
Parece-me claro que, tal como Bergson (e qualquer pessoa que sobre essa questão reflicta pode chegar à mesma conclusão) que a necessidade de comunicar algo através de palavras (ou de meter sensações em palavras, sejam elas ditas, pensadas ou escritas) acaba por resultar não num retrato fiel daquilo que foi pensado através do referido intelecto puro, do qual emana (ainda em Platão posterior) uma multiplicidade inteligível ou ideal, mas acaba sim por resultar em algo que será, em última análise, uma imagem do pensado. E. A. refere que "Quem conhece a poesia de Carlos Carranca sente que nela brota a palavra antes da letra" mas pensamos que não está a referir-se à sensação em sentido estrito mas sim à sensação como crença (bilief).
Para esclarecer melhor este problema - uma vez que o termo e o conceito de sensação pode suscitar dúvidas - devemos levar em consideração, desde logo, que o termo sensação em Henri Bergson tem o significado que ele mesmo lhe dá, e que não difere daquele que é referido por Platão e alguns filósofos posteriores: a sensação é uma forma mediata de conhecimento (entendimento) entre o intelecto e o conhecimento racional. Se ele vem - o conhecimento racional - pronto a vestir de outras vidas anteriores ou se resulta de um processo de compilação, ordenação, indução, dedução, etc. é indiferente para este plano de análise.
Ora, se é verdade que Bergson nos aponta as limitações da linguagem como expressora da sensação, diz-nos ao mesmo tempo que tal facto se deve, em parte à sua pretensão universalizante. Por outras palavras se cada palavra significasse aquilo que tem a significar tal teria de ser visto numa perspectiva não universal, ou seja, tal tinha de ser visto numa perspectiva individual ou particular. Cada pessoa (ou cada grupo) teria a sua linguagem que mais se afastaria da sua essência quanto mais geral fosse ou pretendesse ser.
Ainda, segundo Bergson não só a linguagem nos leva a acreditar na invariabilidade das nossas sen­sações, como nos induz em erro, por vezes, quanto ao carácter da sensação experimentada, porque, de certa forma, ela mesma (palavra) é forma (recipiente) e formadora (envolvente). "Em síntese, a palavra com contornos bem definidos, a palavra em bruto, que armazena o que há de estável, de comum e, por conseguinte, de impessoal nas impressões da humanidade, esmaga, ou, pelo menos, encobre as impressões delicadas e fugitivas da nossa consciência individual. Para lutarmos com armas iguais (contra a palavra que não queremos utilizar) as sensações deveriam exprimir-se por palavras precisas; mas, as palavras, logo que formadas, voltar-se-iam contra a sensação que lhes deu origem, e, tendo sido inventadas para testemunhar que a sensação é instável, acabariam por lhes impor a sua própria estabilidade. "(Bergson) (1)
Onde regressamos às palavras ^le Eduardo Aroso quando nos refere "Dou-lhe a minha palavra de honra! Palavra de honra que é verdade!"
A hierarquia da palavra, por muito esforço que façamos para manter puro este campo, não se manteve inalterada desde o seu aparecimento cronológico (primeiro a palavra/som/interiorizada, depois a escrita/letra). Em certo sentido, e mesmo em todo o sentido, a influência da escrita sobre a palavra (colocando agora a palavra como produto do intelecto puro Kantiano, ou seja, despido de toda a sensação) foi decisiva não só no momento em que apareceu mas também nos tempos posteriores, o que não é, manifestadamente o entendimento de Eduardo Aroso:"(...) (pois que, repito, antes da letra escrita há a Palavra e o senhor da Palavra) (...)"• Passamos ainda aqui por alto uma outra componente anterior à palavra a que Piaget chama de jogo simbó­lico, que Wittgenstein refere como jogo simbólico de palavras na sua referência a St°. Agostinho, e que nos poderia levar a uma medição Estóica do estádio da palavra.
A Palavra de honra, a palavra que representa coisas (a essência daquilo que se diz) aplica-se a verdades não substanciais, ou seja, a verdades que mais não são que conformidades entre o afirmado e o agido. A palavra de honra, a verdade, não é a verdade absoluta: por outras palavras, não é a coisa em si, o númeno. É o fenómeno. Igualmente a Pala­vra de Carlos Carranca não existe em si senão depois de ser afirmada (poderá existir para ele) mas em qualquer dos casos não é a coisa que pretende repre­sentar, é a sua representação.
Logo, será verdade que só ele as ouve (as palavras) antes dos outros, mas não é menos verdade que só ele as compõe (ou decompõe) em letras e em palavras escritas. E que - seja-me permitido adivinhar - uma composição tão bem elaborada ou nasce já assim e o homem é quase perfeito no processo de transmissão do pensado para o comunicado ou o homem não é assim tão perfeito neste campo e aperfeiçoa-se à posteriori, construin­do palavras escritas que, em conjunto, representem da melhor forma aquilo que foi objecto do seu pensamento puro e aquilo que ele transmite (ou consegue transmitir) através da escrita. E, franca­mente, parece-me ser, e seguramente é, o caso de Carlos Carranca. Não se lhe retira nenhum mérito por trabalhar (esculpir) a palavra, antes se lhe elogia a capacidade de nos fazer sentir, tão bem, a unidade da palavra no poema.
Guitarra, meu bordão de peregrino!... Ouve-se o destino em tua voz misteriosa sempre ausente...
Guitarra - vidente rosa a rosa
desfolhada no presente pétala a pétala
Senhora de Portugal! Guitarra - nossa - condição. Guitarra - povo. Guitarra universal!
(Poema de Carlos Carranca)

(1) - O sentir de Bergson, neste plano, tem bastante a ver com a institucionalização da palavra como detentora de um conteúdo próprio que lhe é estável, ou pelo menos, que lhe é mais estável do que são para nós as sensações experimentadas. Em nenhum lugar é tão flagrante este esmagamento (do verdadeiro significado da sensação experimentada) como nos fenómenos do sentimento. Um amor violento, uma melancolia profunda invadindo a nossa alma: são infindos elementos diversos que se fundam, se penetram, sem contornos precisos, sem a menor tendência a exteriorizarem-se uns relativamente aos outros; a sua originalidade tem esse preço. E inexprimível.
O próprio sentimento é um ser que vive e se desenvolve, e, consequentemente, muda sem cessar. Vive porque a duração em que se desenvolve é uma duração cujos momentos se penetram. Ao procurarmos definir esse sentimento, um sentimento dado, julgamos ter analisado o nosso sentimento, mas, na verdade, substituímo-lo por uma justaposição de estados inertes, traduzíveis por palavras, e que constituem cada um o elemento comum e consequentemente o resíduo impessoal das impressões experimentadas num determinado caso pela sociedade inteira.
Precisamente por isso ( por causa da necessidade de exteriorizar) o nosso sentimento ao exprimir-se por palavras só nos proporciona uma sombra dele mesmo

Humberto Teixeira
in Artes e Artes, nº21 de Agosto de 1999.

sábado, abril 14, 2007

O coração ao pé da boca*

Na nota prévia deste livro, o autor, define-o como sendo apenas textos curtos e nada mais do que isso.
Pois eu proponho uma alteração, e faço-lhe referência como sendo - textos curtos e muito mais do que isso - já que esses pequenos textos, ao mesmo tempo ágeis e virtuosos, percorrem sentimentos e vivências, opiniões esclarecidas e reflexões do poeta, aceitando ou discutindo ideias e ideais, questionando a política, a ética, reclamando sonhos e futuro.
O titulo -O coração ao pé da boca - levou-me a pensar que este seria um livro de desabafos, dominando a emotividade sobre a razão. Depois da primeira leitura obriguei-me à procura desse confronto. Confesso que não o encontrei. Ao interrogar-me sobre a natureza do livro pensei em falar com o Carranca, em perguntar-lhe o porquê deste título, intrigava-me, porque tudo o que lia fazia sentido, concordando ou não, os textos eram matéria lógica, não eram devaneios. Decidi não lhe telefonar e tentar eu mesma destrinçar esta meada.
Equacionei de novo a frase - O coração ao pé da boca - e em vez de pensar na escrita pensei no escritor ... e nessa terceira leitura, achei a resposta. É que o coração do poeta são os seus olhos para o mundo, é que este autor vê o mundo com um coração limpo e grande. É o coração que fala, porque é o coração que sabe, repito o que já disse uma vez, não se duvida de sentimentos assim expostos. Com profundo conhecimento do nosso presente e passado recente, acompanhamo-lo nesse interesse pela palavra escrita diária. Actual nos contínuos exemplos de leitura critica de jornais e artigos de opinião, leva-nos pelo mundo de hoje, que se transforma nessa prosa clara e, vemos agora, onde antes só existiam factos, surgir ideias.
Porque este poeta emprestado à política torna visível a crítica construtiva, firmemente baseada era ideais, que sabe sempre separar o que parece daquilo que é, vamos pela mão destes pequenos textos até ao fundo das coisas, conduzidos pela ironia hilariante do deputado Henrique Neto e o "cavador" Fernando Rebelo, pelo tom sério de O novo centro, pelo fugaz desalento de Escrever para quê.
Penso que, talvez por ser professora, por defeito de profissão, que este é um livro vocacionado para os jovens. Recorrendo a exemplos, citações, factos, não é livro para ser colocado na estante da literatura, mas para ficar à mão, utilíssimo nas aulas de debate, abrindo-o nesta ou naquela passagem para melhor esclarecer uma ideia.
Na síntese final existe uma mensagem objectiva de incentivo à criação, à coragem de inovar, de se arriscar soluções de um mundo como nós o queremos, em desfavor do facilitismo material que cerca novos e velhos. E essa é a mensagem que se quer para o futuro ou pelo menos que o futuro entenda como possível lutar pelo impossível.
Sendo essencialmente um livro de opinião política é também autobiográfico. Quem conhece o Carlos Carranca lê estas crónicas ouvindo-o, reconhece as suas palavras e atitudes e muitas vezes os seus gestos, olhando-nos, ou vendo mais longe.
Sempre admirei na sua obra a capacidade de nos entusiasmar com a crueza das suas palavras, que têm para mim a clareza fácil daquela simplicidade muito difícil de conseguir. Os seus escritos não são feitos para nos seduzir ou intimidar, os seus são textos inteiros e que bem alto - tom de voz tão oposto ao da sedução - nos confrontam com o homem e a sua posição no mundo, na capacidade que tem o seu grito em ser a voz que acreditamos pode fazer-se ouvir.

Ana Clara Justino

* Universitária Editora. Lx, 2001.

segunda-feira, abril 09, 2007

A Coragem de Sermos

(Prefácio à obra Do Galaico-Português à Lusofonia)

Para que não se repita a evidência já cons­tatada por Aquilino: «Dizem que o português é uma língua rica. Ê mas é pobre, tem palavras a mais», vou ser parco em palavras, a propósito desta obra dedicada aos jovens que se iniciam no estudo da cultura portuguesa.
Maria Fernanda Godinho Esteves ama Por­tugal e o Brasil, suas duas pátrias, e estuda a sua língua e seus cultores num processo de reu­nificação nacional-afectivo, como traço de união (para utilizar uma expressão de Torga) de uma pátria comum.
Mas será que a lusofonia existirá, na reali­dade, como comunidade de países de língua portuguesa? As comemorações oficiais desta comunidade têm revelado aos olhos de todos, uma fraude com intenção de ocultar erros, dis­tribuir medalhas, acumular riquezas; tudo em nome de valores caros, não só ao património histórico dos que falam português, como à Hu­manidade em geral. O nosso tempo, tão com­plexo quanto bárbaro, não nos deixa tempo para vermos «claramente visto». A globaliza­ção, em nome do progresso e da liberdade, es­maga-nos o olhar, a nós, que somos de «uma vaga pátria carinhosa».
Como afirmou Eduardo Lourenço, o nosso país «é um país pequeno mas tem imaginário hiperbólico». Anda ansioso, Portugal por re cuperar de uma forma literária e mítica a iden­tidade que «Os Lusíadas» lhe deixou pelo mundo repartida e que hoje lhe falta.
Este livro, simples, dedicado aos jovens, re­toma essa necessidade de reencontro com o nosso imaginário.
Como um livro, a Pátria é o local de reen­contro, onde se pensa a nossa condição e se re­velam desígnios.
A lusofonia tem a dimensão, se assim o qui­sermos, de um mundo que ajudámos a achar, na certeza porém, de que hoje os Oceanos já não estão por desvendar, e que o mais importante é preservar, para todos, o que é de todos, em nome de todos os idiomas; os Oceanos concre­tos que conservam a vida no planeta que pere­cerá se não houver, de novo, a coragem de ser­mos.

Monte Estoril,
Carlos Carranca

quarta-feira, abril 04, 2007

Portugal Invertebrado

À Memória de Miguel Torga

No pátio do Pavilhão de Portugal, ali junto ao Mondego, assisti, numa noite de Agosto, à projecção de breves imagens que vieram reforçar a minha compreen­são do País, e em particular da cidade de Coimbra, nas primeiras décadas da Ditadura e de alguns males de que ainda hoje enferma.
Vi a procissão da Rainha Santa do ano de 1946, a inauguração da Ponte de San­ta Clara (1954), com o senhor Arcebis-po-Bispo-Conde, a homenagem a Bis-saya Barreto (1956) e algumas visitas do Contra-Almirante Américo de Deus To-maz a Coimbra; as Bodas de Ouro do CADC e manifestações anticomunistas no ano de 1936, a visita dos catedráticos da Universidade à residência oficial do Senhor Presidente do Conselho e, por fim, um documentário que pretendia dar realce às belezas de Portugal, onde Co­imbra, capital da sabedoria (para não di­zer do conhecimento) mostrava essa jóia que foi o Largo da Feira, antes da demo­lição, apelidado na reportagem de Largo da Sé Nova - o filme era de 1930.
O invertebrado que serve de título a esta despretensiosa reflexão tem raízes em Ortega e Gasset, no seu livro "Espa­nha invertebrada" (publicada em 1922) e que mais adiante tentarei justificar.
O conjunto de imagem, espelho de Portugal de então, levou-me a outro gran­de pensador espanhol, Miguel de Unamuno, pela sua expressão "fascismo de cátedra" aplicada ao Estado Novo aju­dando-me a sintetizar tudo quanto tinha visto projectado numa parede do Pavi­lhão de Portugal em Coimbra.
Um dos filmes mostrava um autocar ro num cortejo nacionalista pela Baixa de Coimbra, onde se podia ler em letras garrafais, as palavras Deus, Pátria e Família, e ver presas à parte dianteira do veículo duas bandeiras: uma com a cruz suástica, outra com o escudo naci­onal. Muito povo rodeava o cortejo e in­tegrava-se nele saudando sem saber o quê nem para quê, dando a entender que não havia divisões entre as elites e a gente anónima.
Uma das películas fixava a visita do corpo docente da Universidade de Co­imbra que, de borla e capelo, se desloca­ra a Lisboa com os elevados propósitos de felicitar o Senhor Presidente do Con­selho - era o fascismo de cátedra a que Unamuno outrora se referira.
Regresso, agora, à "Espanha inverte­brada", e cito um dos males que o autor diagnosticou na sua pátria: as elites diri­gentes haviam criado a partir de cima um sentimento como de pertença, de in­dividualidade nacional ao contrário das sociedades anglo-saxónicas em que a integração política se faz a partir de bai­xo por empenho da sociedade civil.
Hoje, no Portugal do séc. XXI, não se estimula a participação dos cidadãos -somos todos consumidores - nem se cria um sentimento de integração e de per­tença. Somos todos duma coisa vaga a que chamam Europa.
Miguel Torga num dos seus últimos textos do Diário, alerta-nos para a tragédia que alegremente estamos a viver: 31 de Outubro de 1993
Estamos irremediavelmente perdi­dos. E já ninguém o ignora e cala. E um clamor uníssono que vai do Mi­nho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não o ouve ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. "
Falta aqui uma grande razão, uma von­tade colectiva capaz de se ter a si mes­ma como destino.

Carlos Carranca in jornal Centro de 4 de Abril de 2007

OLHARES DA ALMA

(Prefácio à obra Cascais e os seus Cantinhos)

"... sou do povo, sou pelo povo, e não há forças hu­manas que me apaguem do instinto a cepa donde provenho."
Miguel Torga

Vejo em muitas das obras que se vão publicando, e algumas de meritório interesse, prefácios que as defendem ou pretendem defender dos em-
V bates com a crítica, do rigor da leitura, do medo de não merecerem a consideração pública, de tudo o que as possa diminuir aos olhos do próprio criador.
Porque uma obra literária não é um relatório de contas, nem um produto para consumir e deitar fora. O seu autor vive da subjectividade da crítica, do gosto ou do mau gosto do seu tempo, da inconstância dos leitores, e só a arte nos provoca este permanente desconforto da dúvida - o de não sabermos se, na realidade, merecemos, ou não, os aplausos; se somos, ou não, o que julga­mos ser.
Outras há, que ostentam, a abrir, prefácios que tentam explicar a obra, o que mais não fazem, muitas das vezes, do que retirar-lhes o interesse. E outras há, ainda, que pretendem, apenas, associar-lhe um amigo, o que engrandece apenas o prefaciador que, assim, se cola, por amizade, a uma obra que não produziu. É o meu caso.
Modesto leitor atento às crónicas do doutor José d'Encarnação, mais não sou do que isso: um leitor-admirador da sua importante obra de arqueólogo, da sua exemplar acção como munícipe do Concelho de Cascais e da sua fran­queza de homem do povo.
Não se ama o que se não conhece e esta obra é, ao jeito de José d'Encarnação, um, ou melhor, múltiplos actos de amor.
Ele é o mágico das pedras, o que acorda o tempo adormecido na memória, o que percorre os subterrâneos da alma e, como Torga, sobe à montanha para contemplar do alto a paisagem da vida.
Como eu gostaria, um dia, levado por ele, de caminhar por esses lugares da alma!... Porque é da alma que se trata, quando lemos os seus textos.
Com José d'Encarnação, guiados por ele, nesta obra visitamos o Templo do Tempo:
o trabalhar da pedra; o aperfeiçoar da vida; o transformar do mundo.
E os homens ganham outra dimensão. Ganham humanidade — a vida apren­de-se devagar.
Nas ermidas, a serena presença da divindade recebe-nos, natural e nobre, como convém a um deus. Os rituais de que se alimentam as almas dos homens e das coisas são revelados à luz.
Olhamos os ribeiros onde se pescavam enguias. Quando foi isso? No tem­po dos romanos...
Ai as pedras... valerá a pena contar a história desta pedra? A pedra e o azul de Cascais.
Mas também andam por aí uns imperadores do cimento que não falam com arqueólogos e engenheiros que lêem cartas topográficas mas não sabem ler a terra, a alma do lugar!
São histórias que perpassam nos escritos de José d'Encarnação, mas com um não sei quê de magia trazida da infância. A Marinha e a infância em todo o seu esplendor, em toda a sua verdade.
Há o culto dos mortos e a procura de um sentido... porque a vida é essa procura. Como Teixeira de Pascoaes, o nosso autor poderá, talvez, dizer que nasceu no dia eleito de saudade. Porque, como ele, projectou-a no futuro, deu--Ihe vida. Como ele, prolongou a infância e guardou na memória do lugar um cheiro forte a rosas e pinheirais.
E traz-nos à memória Zeca Afonso e as cantigas do Maio quando nos diz que se bailava à porta deste e daquele para se atacar o Maio. Faz-nos sentir a voz da terra e a alma dos que mourejavam nas hortas cercadas.
Fala-nos de umas datas erradas em umas lápides por cima de uma entrada — não serão os deuses a trocar as voltas ao tempo? Que o tempo é a alma, a fortaleza da alma e o nosso tempo vai desalmado, e tu sabe-lo.
Por isso, amavelmente nos recebes, explicando-nos as datas, revelando-nos os sinais.

Carlos Carranca Monte Estoril, l de Dezembro de 2002