quarta-feira, abril 04, 2007

Portugal Invertebrado

À Memória de Miguel Torga

No pátio do Pavilhão de Portugal, ali junto ao Mondego, assisti, numa noite de Agosto, à projecção de breves imagens que vieram reforçar a minha compreen­são do País, e em particular da cidade de Coimbra, nas primeiras décadas da Ditadura e de alguns males de que ainda hoje enferma.
Vi a procissão da Rainha Santa do ano de 1946, a inauguração da Ponte de San­ta Clara (1954), com o senhor Arcebis-po-Bispo-Conde, a homenagem a Bis-saya Barreto (1956) e algumas visitas do Contra-Almirante Américo de Deus To-maz a Coimbra; as Bodas de Ouro do CADC e manifestações anticomunistas no ano de 1936, a visita dos catedráticos da Universidade à residência oficial do Senhor Presidente do Conselho e, por fim, um documentário que pretendia dar realce às belezas de Portugal, onde Co­imbra, capital da sabedoria (para não di­zer do conhecimento) mostrava essa jóia que foi o Largo da Feira, antes da demo­lição, apelidado na reportagem de Largo da Sé Nova - o filme era de 1930.
O invertebrado que serve de título a esta despretensiosa reflexão tem raízes em Ortega e Gasset, no seu livro "Espa­nha invertebrada" (publicada em 1922) e que mais adiante tentarei justificar.
O conjunto de imagem, espelho de Portugal de então, levou-me a outro gran­de pensador espanhol, Miguel de Unamuno, pela sua expressão "fascismo de cátedra" aplicada ao Estado Novo aju­dando-me a sintetizar tudo quanto tinha visto projectado numa parede do Pavi­lhão de Portugal em Coimbra.
Um dos filmes mostrava um autocar ro num cortejo nacionalista pela Baixa de Coimbra, onde se podia ler em letras garrafais, as palavras Deus, Pátria e Família, e ver presas à parte dianteira do veículo duas bandeiras: uma com a cruz suástica, outra com o escudo naci­onal. Muito povo rodeava o cortejo e in­tegrava-se nele saudando sem saber o quê nem para quê, dando a entender que não havia divisões entre as elites e a gente anónima.
Uma das películas fixava a visita do corpo docente da Universidade de Co­imbra que, de borla e capelo, se desloca­ra a Lisboa com os elevados propósitos de felicitar o Senhor Presidente do Con­selho - era o fascismo de cátedra a que Unamuno outrora se referira.
Regresso, agora, à "Espanha inverte­brada", e cito um dos males que o autor diagnosticou na sua pátria: as elites diri­gentes haviam criado a partir de cima um sentimento como de pertença, de in­dividualidade nacional ao contrário das sociedades anglo-saxónicas em que a integração política se faz a partir de bai­xo por empenho da sociedade civil.
Hoje, no Portugal do séc. XXI, não se estimula a participação dos cidadãos -somos todos consumidores - nem se cria um sentimento de integração e de per­tença. Somos todos duma coisa vaga a que chamam Europa.
Miguel Torga num dos seus últimos textos do Diário, alerta-nos para a tragédia que alegremente estamos a viver: 31 de Outubro de 1993
Estamos irremediavelmente perdi­dos. E já ninguém o ignora e cala. E um clamor uníssono que vai do Mi­nho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não o ouve ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. "
Falta aqui uma grande razão, uma von­tade colectiva capaz de se ter a si mes­ma como destino.

Carlos Carranca in jornal Centro de 4 de Abril de 2007