Portugal Invertebrado
À Memória de Miguel Torga
No pátio do Pavilhão de Portugal, ali junto ao Mondego, assisti, numa noite de Agosto, à projecção de breves imagens que vieram reforçar a minha compreensão do País, e em particular da cidade de Coimbra, nas primeiras décadas da Ditadura e de alguns males de que ainda hoje enferma.
Vi a procissão da Rainha Santa do ano de 1946, a inauguração da Ponte de Santa Clara (1954), com o senhor Arcebis-po-Bispo-Conde, a homenagem a Bis-saya Barreto (1956) e algumas visitas do Contra-Almirante Américo de Deus To-maz a Coimbra; as Bodas de Ouro do CADC e manifestações anticomunistas no ano de 1936, a visita dos catedráticos da Universidade à residência oficial do Senhor Presidente do Conselho e, por fim, um documentário que pretendia dar realce às belezas de Portugal, onde Coimbra, capital da sabedoria (para não dizer do conhecimento) mostrava essa jóia que foi o Largo da Feira, antes da demolição, apelidado na reportagem de Largo da Sé Nova - o filme era de 1930.
O invertebrado que serve de título a esta despretensiosa reflexão tem raízes em Ortega e Gasset, no seu livro "Espanha invertebrada" (publicada em 1922) e que mais adiante tentarei justificar.
O conjunto de imagem, espelho de Portugal de então, levou-me a outro grande pensador espanhol, Miguel de Unamuno, pela sua expressão "fascismo de cátedra" aplicada ao Estado Novo ajudando-me a sintetizar tudo quanto tinha visto projectado numa parede do Pavilhão de Portugal em Coimbra.
Um dos filmes mostrava um autocar ro num cortejo nacionalista pela Baixa de Coimbra, onde se podia ler em letras garrafais, as palavras Deus, Pátria e Família, e ver presas à parte dianteira do veículo duas bandeiras: uma com a cruz suástica, outra com o escudo nacional. Muito povo rodeava o cortejo e integrava-se nele saudando sem saber o quê nem para quê, dando a entender que não havia divisões entre as elites e a gente anónima.
Uma das películas fixava a visita do corpo docente da Universidade de Coimbra que, de borla e capelo, se deslocara a Lisboa com os elevados propósitos de felicitar o Senhor Presidente do Conselho - era o fascismo de cátedra a que Unamuno outrora se referira.
Regresso, agora, à "Espanha invertebrada", e cito um dos males que o autor diagnosticou na sua pátria: as elites dirigentes haviam criado a partir de cima um sentimento como de pertença, de individualidade nacional ao contrário das sociedades anglo-saxónicas em que a integração política se faz a partir de baixo por empenho da sociedade civil.
Hoje, no Portugal do séc. XXI, não se estimula a participação dos cidadãos -somos todos consumidores - nem se cria um sentimento de integração e de pertença. Somos todos duma coisa vaga a que chamam Europa.
Miguel Torga num dos seus últimos textos do Diário, alerta-nos para a tragédia que alegremente estamos a viver: 31 de Outubro de 1993
Estamos irremediavelmente perdidos. E já ninguém o ignora e cala. E um clamor uníssono que vai do Minho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não o ouve ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. "
Falta aqui uma grande razão, uma vontade colectiva capaz de se ter a si mesma como destino.
Carlos Carranca in jornal Centro de 4 de Abril de 2007
À Memória de Miguel Torga
No pátio do Pavilhão de Portugal, ali junto ao Mondego, assisti, numa noite de Agosto, à projecção de breves imagens que vieram reforçar a minha compreensão do País, e em particular da cidade de Coimbra, nas primeiras décadas da Ditadura e de alguns males de que ainda hoje enferma.
Vi a procissão da Rainha Santa do ano de 1946, a inauguração da Ponte de Santa Clara (1954), com o senhor Arcebis-po-Bispo-Conde, a homenagem a Bis-saya Barreto (1956) e algumas visitas do Contra-Almirante Américo de Deus To-maz a Coimbra; as Bodas de Ouro do CADC e manifestações anticomunistas no ano de 1936, a visita dos catedráticos da Universidade à residência oficial do Senhor Presidente do Conselho e, por fim, um documentário que pretendia dar realce às belezas de Portugal, onde Coimbra, capital da sabedoria (para não dizer do conhecimento) mostrava essa jóia que foi o Largo da Feira, antes da demolição, apelidado na reportagem de Largo da Sé Nova - o filme era de 1930.
O invertebrado que serve de título a esta despretensiosa reflexão tem raízes em Ortega e Gasset, no seu livro "Espanha invertebrada" (publicada em 1922) e que mais adiante tentarei justificar.
O conjunto de imagem, espelho de Portugal de então, levou-me a outro grande pensador espanhol, Miguel de Unamuno, pela sua expressão "fascismo de cátedra" aplicada ao Estado Novo ajudando-me a sintetizar tudo quanto tinha visto projectado numa parede do Pavilhão de Portugal em Coimbra.
Um dos filmes mostrava um autocar ro num cortejo nacionalista pela Baixa de Coimbra, onde se podia ler em letras garrafais, as palavras Deus, Pátria e Família, e ver presas à parte dianteira do veículo duas bandeiras: uma com a cruz suástica, outra com o escudo nacional. Muito povo rodeava o cortejo e integrava-se nele saudando sem saber o quê nem para quê, dando a entender que não havia divisões entre as elites e a gente anónima.
Uma das películas fixava a visita do corpo docente da Universidade de Coimbra que, de borla e capelo, se deslocara a Lisboa com os elevados propósitos de felicitar o Senhor Presidente do Conselho - era o fascismo de cátedra a que Unamuno outrora se referira.
Regresso, agora, à "Espanha invertebrada", e cito um dos males que o autor diagnosticou na sua pátria: as elites dirigentes haviam criado a partir de cima um sentimento como de pertença, de individualidade nacional ao contrário das sociedades anglo-saxónicas em que a integração política se faz a partir de baixo por empenho da sociedade civil.
Hoje, no Portugal do séc. XXI, não se estimula a participação dos cidadãos -somos todos consumidores - nem se cria um sentimento de integração e de pertença. Somos todos duma coisa vaga a que chamam Europa.
Miguel Torga num dos seus últimos textos do Diário, alerta-nos para a tragédia que alegremente estamos a viver: 31 de Outubro de 1993
Estamos irremediavelmente perdidos. E já ninguém o ignora e cala. E um clamor uníssono que vai do Minho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não o ouve ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. "
Falta aqui uma grande razão, uma vontade colectiva capaz de se ter a si mesma como destino.
Carlos Carranca in jornal Centro de 4 de Abril de 2007
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