quinta-feira, março 08, 2007

LUIZ GOES de Ontem e de Hoje

António Toscano

Tem a vivência coimbrã a virtualidade rara de poder ser assumida — porventura mais intensamente, até - em lugar e tempo distantes dos cenários de magia da Cidade do Mondego e das pulsões da vida académica.
No que me respeita, é falha a memória dos factos e personagens que perpassaram essa vivência, iniciada em 1950; apesar disso, gratificante sentimentalmente o que me conseguiu transportar até ao presente.
E aqui tem lugar de relevo o Luiz Góes.
Conheci-o naquele ano, o da nossa entrada na Universidade. Chegava eu a Coimbra; ele já lá estava... porque aí nasceu em 1933.
É um convívio e uma amizade que perduram, o que, por si só, basta para preencher uma vivência coimbrã, atento o que ele representa como figura da Academia, projectada na canção de Coimbra.
Valho-me, a este propósito, de ideias contidas nas palavras que disse em homenagem que lhe foi prestada pela Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa, na festa de comemoração da "Tomada da Bastilha", em 25.11.89.
Tive — modesto participante no acompanhamento instrumental em que, a partir dos anos 60, avultou, pela inovação dos temas e técnicas, o João Bagão - o privilé­gio de testemunhar, ao longo de quatro décadas, muitas das jornadas por esse mundo fora (Espanha, Brasil, Holanda, Goa, África do Sul, Áustria, Suiça, EUA) as suas glórias de criador e intérprete excepcional da canção coimbrã, de que é, reconhecidamente, em toda a sua história, a referência incontornável.
Nos anos 50, década de fulgurante ressurgimento das tradições académicas, logo se destacou dos demais, e notáveis, cantores do fado de Coimbra o Góes, em memo­ráveis serenatas, na escadaria da Sé Velha ou nas ruas do burgo, e em espectáculos dos grupos académicos (Orfeon, Tuna, Teatro, Grupo Coral da Faculdade de Letras). Relembro, particularmente, o Orfeon no Brasil em 1954 e no ano seguinte, o Grupo Coral da F.L. na Holanda, onde o acompanhei com o Júlio Ribeiro à guitarra.
Dessa época importa recordar a gravação que fez com António Portugal de um disco que, ainda hoje, é famoso (conhecido por "Coimbra Quintet").
Impuseram-no como expoente da canção coimbrã, as suas interpretações de qualidade e brilho ímpares, servi­das por uma voz portentosa cheia, de forte acento abari-tonado mas de grande amplitude e com um timbre raro, características que acentuam nele a qualidade de cantor dramático.
Creio, todavia, que é a partir de meados da década de 60 que o criador e intérprete se realizam em Luiz Góes. Foi nas canções que estão gravadas em quatro LP's: "Coimbra de ontem e de hoje", "Canções do mar e da vida", "Canções de amor e de esperança" e "Canções para quase todos".
Novas vivências lançaram-no em novos rumos da cri­ação poética e musical, e as suas interpretações são agora enriquecidas por surpreendentes e inigualáveis modu­lações, íntimas da temática explorada, tão exigente esta em expressão dramática quanto incompatível com
maneirismos vazios". Escrevi-o e reafirmo-o, sublinhando a intemporalidade das suas novas canções.
(Guardo um secreto orgulho de ter sido eu a aproximar o Góes do Bagão para estes feitos e de ser autor da músi­ca de seis daquelas canções. Colega na Faculdade de Ciências de meu irmão, que mo apresentou — o Bagão que passei a acompanhar nos anos 50, então à guitarra, quan­do me deslocava a Lisboa, a casa de meus pais, que para aqui vieram no inicio da década — sabedor que o Góes voltava da Guiné, onde serviu como médico, falou-me em nos encontrarmos com ele. O propósito foi inicialmente dar a conhecer ao Luis Góes umas canções com versos do Leonel Neves e música dele, João Bagão, e entusiasmá-lo a cantá-las.
E assim aconteceu esta fecunda mediação, estendida de seguida ao Fernando Neto.)
Determinante na concretização do projecto do Bagão foi a disponibilidade e entusiasmo com que todos os inter­venientes o abraçaram. Mas acima de tudo, e como garan­tia do seu êxito, havia a condição sine qua non: a voz e as interpretações do Luiz Góes. O que reforçou no Bagão, juntamente com os textos poéticos utilizados, a convicção de que algo de novo ia surgir na canção de Coimbra.
Gostará o Góes que sejam recordados nesta sede, sobretudo, os contributos de João Bagão, mais uma vez, com a sua guitarra, de Leonel Neves, com os seus versos e o seu extraordinário empenho no projecto, de Edmundo de Bettencourt, com os seus poemas, e deste e de seu tio Armando Góes, com sua companhia e as suas achegas. Neste sentido, mais raramente, Paradela de Oliveira. E ainda as guitarras do Andias e do Aires de Aguilar (fiel
acompanhante do Bagão) e as violas do Fernando Neto, do João Gomes e do Durval Moreirinhas.
Protagonista da renovação, obrigatório se torna refe­renciar o Luiz Góes. E note-se que o foi sem rupturas, sem alarde, em autêntica, livre e irreprimível expressão da inquietude e emotividade sentidas.
Fica para as novas gerações o exemplo de um cultor da canção de Coimbra, no qual concorrem, além dos seus excepcionais atributos de artista, outros de carácter pes­soal, como o aprumo moral, a cortesia e a simplicidade de trato, bem patentes no convívio dos amigos, onde mostra a sua faceta de bom e cultivado conversador.
Não tem o Góes pendor para repisar o "triste e morto passado" (versos de uma sua cantiga), afirmando-se, com veemência, voltado para o futuro.
Ele entenderá, contudo, o sentido com que é recorda­do este percurso de cinco décadas e irá reconhecer, quiçá, a obrigação de não o considerar terminado.
Recordo, neste apelo, o que, há justamente trinta anos, escrevia um crítico no Diário de Lisboa (17.12.67):
"... quem arredava pé antes de ouvir o Góes? ..."
"Cantou-se e tocou-se numas escadas... Daí se ouviu o Dr. Luiz Góes, uma voz forte e calorosa, explicar em música a sua experiência recente de médico desterrado. ... Porque o Góes é isto: rosto quase impassível, tranquili­dade simulada. O Góes vibrava só por dentro. E toda a gente estava com ele."
Passava-se isto na inauguração da Galeria Rodin do pintor Mário Silva, em que estive presente a acompanhar o Bagão, a convite daquele nosso querido amigo. Dizia o mesmo jornalista: "A Galeria Rodin é mais uma ideia
«sui generis» de Mário Silva, ... estamos no domínio da invenção..."
"Duzentas pessoas suspensas, um microfone estendido no ar. Coimbra em Lisboa dá esta sensação estranhíssima.
"«O mundo dá tanta volta». Foi isto mesmo que can­tou o mais antigo, o Dr. António Menano, que era tam­bém o mais saudoso: passaram, pode lá ser, cinquenta e tal anos!"
Presentes neste evento, que o jornalista relata com destaque do Góes nos termos transcritos, estavam tam­bém o Tóssan que, com a sua graça e talento, disse algu­mas das suas poesias, e o Prof. Vitorino Nemésio. esse emérito conversador e poço de cultura, que nos deixaram uma saudade imperecível.