OLHARES DA ALMA
(Prefácio à obra Cascais e os seus Cantinhos)
"... sou do povo, sou pelo povo, e não há forças humanas que me apaguem do instinto a cepa donde provenho."
Miguel Torga
Vejo em muitas das obras que se vão publicando, e algumas de meritório interesse, prefácios que as defendem ou pretendem defender dos em-
V bates com a crítica, do rigor da leitura, do medo de não merecerem a consideração pública, de tudo o que as possa diminuir aos olhos do próprio criador.
Porque uma obra literária não é um relatório de contas, nem um produto para consumir e deitar fora. O seu autor vive da subjectividade da crítica, do gosto ou do mau gosto do seu tempo, da inconstância dos leitores, e só a arte nos provoca este permanente desconforto da dúvida - o de não sabermos se, na realidade, merecemos, ou não, os aplausos; se somos, ou não, o que julgamos ser.
Outras há, que ostentam, a abrir, prefácios que tentam explicar a obra, o que mais não fazem, muitas das vezes, do que retirar-lhes o interesse. E outras há, ainda, que pretendem, apenas, associar-lhe um amigo, o que engrandece apenas o prefaciador que, assim, se cola, por amizade, a uma obra que não produziu. É o meu caso.
Modesto leitor atento às crónicas do doutor José d'Encarnação, mais não sou do que isso: um leitor-admirador da sua importante obra de arqueólogo, da sua exemplar acção como munícipe do Concelho de Cascais e da sua franqueza de homem do povo.
Não se ama o que se não conhece e esta obra é, ao jeito de José d'Encarnação, um, ou melhor, múltiplos actos de amor.
Ele é o mágico das pedras, o que acorda o tempo adormecido na memória, o que percorre os subterrâneos da alma e, como Torga, sobe à montanha para contemplar do alto a paisagem da vida.
Como eu gostaria, um dia, levado por ele, de caminhar por esses lugares da alma!... Porque é da alma que se trata, quando lemos os seus textos.
Com José d'Encarnação, guiados por ele, nesta obra visitamos o Templo do Tempo:
o trabalhar da pedra; o aperfeiçoar da vida; o transformar do mundo.
E os homens ganham outra dimensão. Ganham humanidade — a vida aprende-se devagar.
Nas ermidas, a serena presença da divindade recebe-nos, natural e nobre, como convém a um deus. Os rituais de que se alimentam as almas dos homens e das coisas são revelados à luz.
Olhamos os ribeiros onde se pescavam enguias. Quando foi isso? No tempo dos romanos...
Ai as pedras... valerá a pena contar a história desta pedra? A pedra e o azul de Cascais.
Mas também andam por aí uns imperadores do cimento que não falam com arqueólogos e engenheiros que lêem cartas topográficas mas não sabem ler a terra, a alma do lugar!
São histórias que perpassam nos escritos de José d'Encarnação, mas com um não sei quê de magia trazida da infância. A Marinha e a infância em todo o seu esplendor, em toda a sua verdade.
Há o culto dos mortos e a procura de um sentido... porque a vida é essa procura. Como Teixeira de Pascoaes, o nosso autor poderá, talvez, dizer que nasceu no dia eleito de saudade. Porque, como ele, projectou-a no futuro, deu--Ihe vida. Como ele, prolongou a infância e guardou na memória do lugar um cheiro forte a rosas e pinheirais.
E traz-nos à memória Zeca Afonso e as cantigas do Maio quando nos diz que se bailava à porta deste e daquele para se atacar o Maio. Faz-nos sentir a voz da terra e a alma dos que mourejavam nas hortas cercadas.
Fala-nos de umas datas erradas em umas lápides por cima de uma entrada — não serão os deuses a trocar as voltas ao tempo? Que o tempo é a alma, a fortaleza da alma e o nosso tempo vai desalmado, e tu sabe-lo.
Por isso, amavelmente nos recebes, explicando-nos as datas, revelando-nos os sinais.
Carlos Carranca Monte Estoril, l de Dezembro de 2002
(Prefácio à obra Cascais e os seus Cantinhos)
"... sou do povo, sou pelo povo, e não há forças humanas que me apaguem do instinto a cepa donde provenho."
Miguel Torga
Vejo em muitas das obras que se vão publicando, e algumas de meritório interesse, prefácios que as defendem ou pretendem defender dos em-
V bates com a crítica, do rigor da leitura, do medo de não merecerem a consideração pública, de tudo o que as possa diminuir aos olhos do próprio criador.
Porque uma obra literária não é um relatório de contas, nem um produto para consumir e deitar fora. O seu autor vive da subjectividade da crítica, do gosto ou do mau gosto do seu tempo, da inconstância dos leitores, e só a arte nos provoca este permanente desconforto da dúvida - o de não sabermos se, na realidade, merecemos, ou não, os aplausos; se somos, ou não, o que julgamos ser.
Outras há, que ostentam, a abrir, prefácios que tentam explicar a obra, o que mais não fazem, muitas das vezes, do que retirar-lhes o interesse. E outras há, ainda, que pretendem, apenas, associar-lhe um amigo, o que engrandece apenas o prefaciador que, assim, se cola, por amizade, a uma obra que não produziu. É o meu caso.
Modesto leitor atento às crónicas do doutor José d'Encarnação, mais não sou do que isso: um leitor-admirador da sua importante obra de arqueólogo, da sua exemplar acção como munícipe do Concelho de Cascais e da sua franqueza de homem do povo.
Não se ama o que se não conhece e esta obra é, ao jeito de José d'Encarnação, um, ou melhor, múltiplos actos de amor.
Ele é o mágico das pedras, o que acorda o tempo adormecido na memória, o que percorre os subterrâneos da alma e, como Torga, sobe à montanha para contemplar do alto a paisagem da vida.
Como eu gostaria, um dia, levado por ele, de caminhar por esses lugares da alma!... Porque é da alma que se trata, quando lemos os seus textos.
Com José d'Encarnação, guiados por ele, nesta obra visitamos o Templo do Tempo:
o trabalhar da pedra; o aperfeiçoar da vida; o transformar do mundo.
E os homens ganham outra dimensão. Ganham humanidade — a vida aprende-se devagar.
Nas ermidas, a serena presença da divindade recebe-nos, natural e nobre, como convém a um deus. Os rituais de que se alimentam as almas dos homens e das coisas são revelados à luz.
Olhamos os ribeiros onde se pescavam enguias. Quando foi isso? No tempo dos romanos...
Ai as pedras... valerá a pena contar a história desta pedra? A pedra e o azul de Cascais.
Mas também andam por aí uns imperadores do cimento que não falam com arqueólogos e engenheiros que lêem cartas topográficas mas não sabem ler a terra, a alma do lugar!
São histórias que perpassam nos escritos de José d'Encarnação, mas com um não sei quê de magia trazida da infância. A Marinha e a infância em todo o seu esplendor, em toda a sua verdade.
Há o culto dos mortos e a procura de um sentido... porque a vida é essa procura. Como Teixeira de Pascoaes, o nosso autor poderá, talvez, dizer que nasceu no dia eleito de saudade. Porque, como ele, projectou-a no futuro, deu--Ihe vida. Como ele, prolongou a infância e guardou na memória do lugar um cheiro forte a rosas e pinheirais.
E traz-nos à memória Zeca Afonso e as cantigas do Maio quando nos diz que se bailava à porta deste e daquele para se atacar o Maio. Faz-nos sentir a voz da terra e a alma dos que mourejavam nas hortas cercadas.
Fala-nos de umas datas erradas em umas lápides por cima de uma entrada — não serão os deuses a trocar as voltas ao tempo? Que o tempo é a alma, a fortaleza da alma e o nosso tempo vai desalmado, e tu sabe-lo.
Por isso, amavelmente nos recebes, explicando-nos as datas, revelando-nos os sinais.
Carlos Carranca Monte Estoril, l de Dezembro de 2002
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