Carlos Carranca - neste lugar sem portas

quinta-feira, outubro 25, 2007

O Portugal dos Políticos no Diário XVI de Miguel Torga

(parte III)


Outros foram os episódios com implicações nacionais que marcaram os últimos anos de vida, amargurada, do poeta. Por exemplo, Maastricht.

Coimbra, 11 de Maio de 1992 - (...) Tenho como certo que Maastricht há-de ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. Só que as grandes potências podem dar-se ao luxo de todos os jogos malabares e safadezas, e assinar até tratados ardilosos com abdicações aparentes da sua identidade. E as pequenas, não. Se, por leviandade ou megalomania, arriscam um mau passo no caminho da independência, perdem-na de vez. Que é, infelizmente, o que, se o destino nos não acudir com um milagre, nos vai acontecer.

Um ano depois, a 1 de Novembro, regista de novo no seu “Diário”:

Entrada em vigor da União Europeia, eufemismo encontrado para nomear o negregado Tratado de Maastricht. Lá estamos, atentos à batuta do novo Bismark impante que tudo vai poder e dominar do seu teutónico quartel monetário. Lá estamos, infelizmente, na condição de humildes súbditos agradecidos, sem autonomia e sem voz, a beber champanhe comprometidamente, como parentes pobres numa boda de nababos, e a estender a mão ávida, a pedir mais dinheiro para comprar votos. E o ricaço, e os parceiros incautos que arregimentou, prodigamente, abrem os cordões à bolsa. Quem quer bons serviçais, paga-lhes.

Como remate para este tema da Europa e do Tratado de Maastricht, recorro, de novo, à carta que Miguel Torga dirigiu a Mário Soares, em Maio de 1994, e que diz:
(…) é pena que o seu medular optimismo doire sempre as conclusões de cada arrazoado. Refiro-me concretamente às idílicas considerações com que remata todas as referências à Europa. Eu também sou, e com desvanecimento, europeu. Mas disse um dia destes a um jornalista do “Le Monde” que só o era com significação se continuasse a ser plenamente português. Desculpe lembrar-lhe esta nossa velha divergência, infelizmente irremediável, que só trago à colação por descargo de consciência. Não há, nem haverá num futuro previsível, outra Europa senão esta malfadada do capitalismo insaciável e tentacular.

Quanto à abolição de fronteiras e consequente livre circulação de pessoas e de bens, Torga deixa registado, a 2 de Janeiro de 1993:

(...) Ocupados sem resistência e sem dor. Anestesiados previamente pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira.

A ternura que sempre manifestou pela sua segunda pátria, o Brasil, deixa-a agora numa crua reflexão, datada de 6 de Fevereiro de 1993 (em Coimbra):

Até esta desgraça agora nos acontece! As nossas relações fraternas com o Brasil comprometidas por leviandade governativa e imperativo comunitário. Quem contratou a submissão nacional às ordens de Bruxelas esqueceu-se de especificar que a carta de Pêro Vaz de Caminha de quinhentos é um juramento português de amor e fidelidade eternos à Terra de Santa Cruz e à sua gente.

Quanto a Angola, as suas preocupações redobram, porque sabe que quinhentos anos de incompreensão racial serão incapazes de produzir uma pátria capaz. da fraternidade, onde o futuro faça ouvir o seu cântico.

Coimbra, 20 de Fevereiro de 1993 - Angola continua a ferro e fogo. Os dois tribalismos, o oficial e o rebelde, combatem-se numa luta de morte. Não realizámos ali, infelizmente, o milagre brasileiro da fraternidade racial e nacional. Deixámos as populações na primitiva decência da selva, à mercê da avidez e rivalidade das grandes potências, sem pátria, sem civismo e sem amor aos irmãos de raça e de berço. E agora a nada podemos acudir com os panos quentes da nossa diplomacia de muitas palavras e escassos meios.

Torga, enquanto se despede da vida, vai pondo as contas em dia com a política nacional, para que não haja equívocos.

Coimbra, 16 de Maio de 1993 - Continua o tráfego de consciências na feira política nacional. Compram-se e vendem-se convicções por todos os preços. Os jornais denunciam, o povo comenta, mas no dia seguinte chega a notícia de nova transacção. Depois de quase meio século de ditadura, o país, mal refeito do pesadelo passado, agoniza sob nova opressão, ainda mais tenebrosa. A arbitrariedade e a perversão policial de outrora deram lugar ao terrorismo de Estado. Agora, são os legitimados detentores do poder que oprimem e perseguem. A peitar sem rebuço os cidadãos venais, ou a talar discricionariamente o território dos legítimos interesses dos outros, é que condicionam os limites da nossa liberdade.

Quanto à nossa velha aliança com o Reino Unido, Torga produz um comentário, em jeito de balanço, redigido durante a sua estada nas termas de Chaves.

Chaves, 31 de Agosto de 1993 - O Primeiro-ministro britânico veio passar as férias ao Doiro, nas quintas de um patrício. Tem comido bem, bebido melhor e passeado. Até figos vindimos provou e saboreou, dizem os jornais. Os nossos velhos donos dão, como sempre, sinal na hora própria. O melhor de tudo o que temos, culinária, paisagem, conforto, mar, sol e cordialidade, já estava ao seu serviço no Algarve. Faltava o Doiro. Depois de feitoria de rapina, promovido também, na cara de quem nele consome a vida e a esperança a trabalhar de sol a sol para meia dúzia de vorazes e adventícios patrões, a éden de lazeres. E começa agora. O coitado do Forrester, ao menos, desenhava mapas bonitos da região, que explorava como bom comerciante, e saldou-lhe a dívida de parasita afogado no Cachão da Valeira ao peso dos dobrões. Este barão actual espaireceu num rabelo motorizado, sem risco e sem passaporte restritivo, apenas com licença magnânima da C.E.E., que lhe disse sim, que aproveitasse, que isto agora é baldio, comunitário, multinacional, e deles, ingleses, com particular direito. Em que feliz dia futuro a "chaga do lado de Portugal", que desde a infância me obsidia, deixará de sangrar?

Segue se um outro comentário, também ele proferido de Chaves, sobre os nossos irmãos espanhóis.

Chaves, 3 de Setembro de 1993 - (...) A tese de Franco na escola militar foi a ocupação desta faixa ocidental em poucas horas. E a da generalidade dos demais espanhóis, mesmo civis, é indisfarçadamente a mesma. No rótulo de uma caixa de melões que me mostraram há dias, vinha escrito: Origem - Espanha. Região - Portugal. Para todos os nossos vizinhos, somos independentes, sim, mas provisoriamente, enquanto os iluminados governantes que temos não acabem de abrir mãos dos nossos últimos trunfos nacionais, e um outro Filipe II nos integre submissos no grande redil peninsular, desta vez sem necessidade de herdar, de comprar e de conquistar o rectângulo rebelde. Recebe-o gratuitamente de bandeja.

A dimensão humanista de Torga vem à tona sempre que a cultura - a sua e a dos outros - entra em confronto fraterno, procurando o sentido do mundo, da vida e da existência.

Coimbra, 5 de Outubro de 1993 - Almoço chinês e sobremesa de música sacra portuguesa do século XVI, sepultada até há pouco num arquivo de Évora. Nem tudo é praça de Tienamen e orelheira de porco neste mundo. Há muitos bens dele por descobrir e saborear. Mesmo aos oitenta e seis anos, é preciso recapitular lições mal sabidas de cultura geral e nacional. A comer, a ouvir, ou doutras humanas maneiras.

Mas, de novo, regressa o desalento.

Coimbra, 31 de Outubro de 1993 - Estamos irremediavelmente perdidos. E já ninguém o ignora e cala. É um clamor uníssono que vai do Minho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não ouve, ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. (...)

Como um cilício, continua:

Coimbra, 8 de Novembro de 1993 - (...) Que, apesar de o país estar já, de facto, não só económica, mas até territorialmente alienado - praias algarvias, herdades alentejanas, aldeias da Beira, quintas do Doiro e do Minho em mãos alheias -, é tal o nosso poder de absorção que todos os estrangeiros que se fixam entre nós acabam por se portugalizar, a ponto de em muitos casos se tornarem mais papistas do que o Papa na defesa do património cultural degradado que nos resta, a recuperá-lo. (...) Pátria nova de muitos sangues adventícios nas poucas veias lusitanas, sem memória da velha. Sem África, sem América, sem Ásia, sem Oceania. Europa, apenas, a soletrar a custo Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões e padre António Vieira. Talvez mais prática, lógica e rica, mas infinitamente menos cordial, lírica, sonhadora e singular. E tragicamente ausente da história gloriosa da humanidade.

Estas duas citações inscrevem-se numa perspectiva pessimista, dirão alguns - outros dirão realista. Apenas acrescentarei “torguiana” no destino que, infelizmente, se encarregará de o confirmar.

Um distintíssimo político da nossa praça contactou Torga na esperança de que o poeta servisse de fiador dos seus propósitos políticos. O dia era o de 1 de Dezembro de 1993.

(...) O dia era de conjurados. De humilhações que se revoltaram e sacudiram o jugo estrangeiro, de ânimos impacientes e combativos. E nem isso pesava nas respostas frouxas e evasivas que vinham do outro lado do fio. E a conversa teve este triste remate:
- Vejo que está muito pessimista.
- Estou. Infelizmente. Não acredito em nenhum de vocês. Não são quentes, nem frios. E, se leu o “Apocalipse”, sabe que até Deus vomita os mornos.

Numa sociedade cada vez mais desumanizada, sem alma nem sentido de justiça, dirigida por tecnocratas que, como um dia afirmou João Palma-Ferreira, "organizaram cientificamente a estupidez", diante de um Estado em que o cidadão não é mais do que um número com o nome acoplado, apostado em governar numa lógica ultraliberal onde o capitalismo regressa à sua forma original, isto é, à lei do mais forte, ler Torga é, de novo, ser do futuro, reconciliando-nos com a Pátria, ansiando a Frátria - o lugar onde o poeta habita.


(*) - Professor auxiliar convidado da Universidade Lusófona de Lisboa. Autor das obras “Torga, o português do Mundo” (1988); “Miguel Torga e a África Portuguesa” (1995); “Torga, o bicho religioso” (2000); “A nostalgia de Deus ou a palavra perdida em Miguel Torga” (2001); “O sentimento religioso em Torga e em Unamuno” (2002).

domingo, outubro 21, 2007

O Portugal dos Políticos no Diário XVI de Miguel Torga

(parte II)

A sua lucidez não deixa espaço à demagogia barata:

Coimbra, 28 de Abril de 1991 - Aniversário do nascimento de Salazar. A televisão registou a efeméride e convidou um seu antigo colaborador e um adversário para um breve debate. Ambos disseram o que era de esperar. Um que sim e o outro que não. Faltou um terceiro que esclarecesse singelamente os telespectadores que o ditador foi a expressão portuguesa do andaço tirânico da sua época triste. Uma expressão medíocre e actual dum velho do Restelo, inteligente mas sem imaginação criadora, com horizontes políticos acanhados como os reais do seu agro nativo. Que teve a suficiência intelectual coimbrã, a devoção paroquial dum campónio, a crueldade plebeia, a astúcia e a rusticidade dum pastor da Estrela. Que foi nosso em algumas virtudes e em todos os defeitos. E que, o melhor que podemos fazer à sua imagem é tentar esquecê-lo, como o povo, que não teve humanidade para meter no coração, nem génio para entender e guiar no caminho da liberdade e da modernidade, felizmente, já fez.

O retrato de Salazar é feito sem colorações neo-realistas: "(...) nosso em algumas virtudes e em todos os defeitos".

Segue-se um comentário ao autor de um livro acabado de ler. Nada, neste texto, nos leva a poder concluir, seguramente, que se trata de um livro de Mário Soares, mas, comparando-o com uma carta que o poeta envia ao fundador do Partido Socialista e datada de 7 de Maio de 1994 (incluída na Fotobiografia editada pelas Publicações Dom Quixote e da autoria da sua filha Clara Rocha), a semelhança quanto à observação leva a crer que sim.

Coimbra. 5 de Maio de 1991 - Passei o Domingo a lê-lo. É um homem feliz. Discorre convictamente de tudo, está contente consigo, do que é e diz, do que fez e fará. (...) tenta, contudo, forçar o juízo da posteridade abarrotando os arquivos de documentos comprovativos da magnitude sonhada.

Agora, tomemos atenção a este excerto da carta datada de 7 de Maio de 1994:

Meu caro Dr. Mário Soares:

Como lhe tinha garantido de viva voz, acabei esta noite de ler de fio a pavio as suas “Intervenções (8)”.
(...) Você tem o pensamento ágil e a expressão fácil. É um dom dos deuses. Pena é que o seu medular optimismo doire sempre as conclusões de cada arrazoado. Refiro-me concretamente às idílicas considerações com que remata todas as referências à Europa.

Mas, como já aludi, é apenas uma suspeita, pois o autor do “Diário” tem a delicadeza de nunca identificar o alvo das suas críticas sempre que estas se dirigem a amigos ou camaradas da escrita.

Quanto ao tema da regionalização, que dividiu o País, num referendo que se lhe opôs nos resultados, e que foi proposta pelos seus amigos do Partido Socialista, com António Guterres na liderança, merece-lhe duas notas no “Diário”, uma de 12 de Julho de 1991, onde pede aos políticos: "Deixe-nos ser e sentir em todo o território justificados, fraternos e preservados na nossa identidade."

Mas é num texto datado de 30 de Setembro de 1991 que Torga deixa registada, mais uma vez, a sua desilusão:

Desmereceu hoje, como voz da nação, o aval que lhe dei ontem para o ser. Quer esquartejá-la, e pedia-me que o ajudasse na peregrina cruzada. Confunde a descentralização, o regresso ao nosso municipalismo administrativo tradicional, o povo realmente soberano, a governar-se em vez de ser governado, que sempre defendi, com a regionalização que advoga. E ouviu das boas. Mas de nada valeu. Quem não sente a unidade da pátria na própria carne, está predisposto para a ver aos bocados.

E prossegue, mais adiante:

Mas nós somos uma família unida a viver em harmonia há oitocentos anos dentro do mesmo agro patrimonial, sem contradições de nenhuma ordem e sem nenhum dos herdeiros pensar sequer em partilhas. Eu, pelo menos. E cada dia menos, até porque, mais cedo do que era de prever, os factos se encarregam de, tragicamente, me dar razão.

O seu insatisfeito patriotismo leva-o a mais uma afirmação de desencanto extremo:

Coimbra. 23 de Setembro de 1991 - Não queria outra pátria. Mas vivo envergonhado de ser nesta contemporâneo de alguns dos mais notórios compatriotas, e, por sê-lo, responsável moral de todas as patifarias que nela cometem.

Há outro problema que obriga Torga a vários comentários inseridos neste “Diário” derradeiro: Timor.

Com datas de 10 de Março, 17 de Março, 12 de Novembro e 12 de Dezembro de 1992, e de 7 de Março e 12 de Novembro de 1993, o poeta vai seguindo o drama de um povo em luta pela sua libertação.

Coimbra, 12 de Novembro de 1992 - Aniversário dos massacres de Timor. Um dos mais dolorosos cilícios da nossa consciência colectiva.

Quanto à prisão de Xanana pelas forças indonésias, Torga comenta o episódio da aparente renúncia da seguinte forma:

Coimbra, 12 de Dezembro de 1992 - Está diante de mim no écran, sozinho, nimbado de não sei que luz espectral, com um sorriso permanente nos lábios, não sei se angélico, se diabólico, se desdenhoso. Renega todo o passado de resistente, confessa-se arrependido do mal que fez ao povo oprimido que quis libertar, e pede aos companheiros de luta que o acompanhem na deserção. Não mostra sinais de tortura fisica, e parece de boa saúde mental. Sabe, evidentemente, que está a ser visto e ouvido pelo mundo inteiro, e que a significação da renúncia que anuncia vai muito para além da circunstância da sua vida negada. É, aparentemente, um mártir sem martírio, um Ecce Homo a que falta apenas a coroa de espinhos e o ceptro de escárnio. E, contudo, recuso-me a vê-lo apenas assim, e a ter vergonha por Portugal, por ele e por mim. Sofro pela humilhação a que o sujeitaram e sinto-me diminuído como ser humano só em pensar que, em vez de respeitado como um combatente vencido, vai servir de trunfo no jogo sujo das chancelarias. Mas acredito ainda no milagre. Que tudo seja apenas uma ardilosa finta de guerrilheiro. Manietado nas mãos do inimigo, finge o que não é, e guarda os trunfos que lhe restam para a hora decisiva. Chamava-se, enquanto herói, Xanana Gusmão, era timorense e português.

Há um episódio na saga do povo de Timor, anterior cronologicamente ao acabado de referir, em que um grupo de jovens notáveis e o ex-Presidente da República, Ramalho Eanes, se envolveram na trapalhada do Lusitânia Expresso e que mereceu esta nota:

Coimbra, 10 de Março de 1992 - Acordado até desoras, contra a razão clínica e a regra hospitalar, a seguir o folhetim trágico-cómico da Lusitânia Expresso, na sua ida de protesto e solidariedade a Timor. Às tantas, a notícia fatal: o barco ia retroceder. Os heróicos tripulantes, a convite dos indonésios, voltavam costas à empresa e regressavam pacificamente à pacatez caseira. Somos assim. Entradas de leão e saídas de sendeiro. O que nos vale é que no termo de cada façanha, de calças na mão, nem sequer damos pelo ridículo.

Ao invés deste patético episódio, Xanana Gusmão enchia o cansado coração do "Orfeu Rebelde" de orgulho:

Coimbra, 7 de Maio de 1993 - Graças a Deus! Xanana Gusmão, condenado a prisão perpétua pelo tribunal às ordens do tirano indonésio, atirou à cara dos juízes serviçais toda a verdade da sua revolta contra a opressão e fidelidade à terra nativa. E, embora impedido de levar até ao fim o protesto, disse o bastante, no seu português materno, para retomar, limpo de todos os equívocos, o lugar de herói glorioso, que, por direito, lhe pertence na História.

E, a terminar o “Diário”, com data de 12 de. Novembro de 1993 (a última nota do Diário é um poema de 10 de Dezembro), Torga regressa a TimorLeste:

Coimbra, 12 de Novembro de 1993 - Ainda e sempre o pesadelo dos massacres de Timor. Ter uma pátria na cabeça dói muito. Sangram, sem cura, em nós todas as suas chagas, obsessivamente presentes nas datas fatídicas e sem contrapartida de qualquer sedativa exaltação patriótica nas horas oficiais que lhe celebram a sanidade. Mas antes a incomodidade de nunca a esquecer em Alcácer-Quibir, do que a comodidade de só a lembrar em Aljubarrota.

(termina na próxima semana)

segunda-feira, outubro 15, 2007

O Portugal dos Políticos no Diário XVI de Miguel Torga


Nestas coisas da política, há que ter o cuidado necessário de não resvalar para o campo partidário, que subtrai, reduz a um enquadramento de cumplicidades mais ou menos legítimas o que se quer aberto, de todos e para todos.
A abordagem ao tema "O Portugal dos Políticos", no “Diário XVI”, de Miguel Torga, não tem como objectivo senão facilitar o entendimento da obra de quem da vida não fez senão por merecê-la. Daí que me tenha limitado à função de cicerone, apontando as verdades do poeta que justificam as suas palavras: "Quem me quiser conhecer, que me leia".
É nesta postura, nesta atitude que tem o Homem como fundamento, que o cidadão Adolfo Rocha / Miguel Torga, em luta agónica constante, revela a sua singularidade de "Orfeu Rebelde" em todas as circunstâncias, sejam elas políticas, poéticas, profissionais ou outras. Ele sabe que o valor de cada um está na originalidade, na autenticidade do olhar, e que a vida não é para ser encarcerada num redil de verdades manipuladoras. Ele sabe que pensar é gerar utopias.
Livre, quanto possível, inconformista-original, refractário às "autoridades teológica e política", como Espinosa, colocou o seu talento ao serviço do cumprimento de uma sociedade mais justa, onde os princípios e valores do socialismo democrático - entendidos à escala planetária - conduziriam ao sentido do Homem universal.
Torga cumpre-se num combate espiritual, intelectual, moral e social, sendo o seu sentimento religioso e utópico, a base estruturante da sua acção política, agindo por sentido do dever.
Está confinada esta análise ao “Diário” derradeiro que nos deixa um travo amargo de descrença nos políticos, em especial nos da nossa praça. Os portugueses que "amesquinha[ra]m a nossa pequenez a engrandecê-la com frases ocas, como nós a apoucamos elegendo-os (...)".
Fica para mais tarde uma análise conjunta aos aspectos da política internacional. Por agora, citarei, apenas, os dias deste livro dedicados à política à portuguesa, de uma Pátria que já não é nossa, dando-nos a conhecer, por antecipação, este "nosso" Portugal do ‘power point’, sem alma nem verdade telúrica.

Coimbra, 3 de Maio de 1990 - Não há dúvida. Perdemos colectivamente o rumo, e não há bússola política, nem gajeiro partidário que nos valha. Indiferentes à lição do passado, que já nenhuma escola nos ensina, sem ânimo e sem estímulo para sonhar e merecer o futuro, granjeamos passivamente a courela do tempo, até esquecidos de que estamos no presente e somos seus contemporâneos e protagonistas.

Não há dúvidas quanto à descrença: "Perdemos colectivamente o rumo". Qual será o nosso destino?
Eduardo Lourenço, com a autoridade que todos lhe reconhecemos, afirmou um dia só existir uma pátria quando se tem a si mesma, colectivamente, como destino.
Será que estamos condenados ao destino do patrioteirismo do futebol?
Trinta e três anos após o 25 de Abril, substituímos o F de "futuro" pelo antigo e "reaccionário" F do "futebol". Onde ficamos nós? Que património legamos aos vindouros?

Coimbra. 6 de Maio de 1990 - Serão chineses os futuros administradores de Macau, disse hoje uma voz de Pequim. O que é compreensível, pois o território foi sempre uma concessão. Mas que pena! A minha esperança é que o dragão, apesar da natural gula nacionalista, não consiga devorar até à exaustão os muitos testemunhos da singularidade do génio português. Que eles fiquem latentes na pequena península como uma incurável e benéfica endemia.

Resta-nos a utopia do poeta. Porque a realidade indica-nos um apagamento progressivo da nossa cultura em Macau, enquanto o dragão - misto de capitalismo selvagem e comunismo totalitário - invade Portugal de "lojas dos trezentos" e de restaurantes de comida barata.

Coimbra, 29 de Junho de 1990 - Já não tem remédio. As minhas relações com os governantes hão-de ser sempre uma confrontação crispada. Mesmo quando uma real simpatia nos aproxima, o diálogo nunca é naturalmente cordial. (...) Mas o político, só pelo facto de o ser, é sempre um estranho ao pé de nós. Tem qualquer coisa de um predador humano, que ameaça dia e noite a paz dos demais viventes da selva. É pelo menos o que sinto. (...) Sei que só um objectivo o move na vida: o poder. Que por ele de tudo é capaz, diga o que disser, pareça o pareça. (...) É como se o soubesse caladamente armado contra mim.

É evidente que se refere à classe política em geral, sem excluir aqueles de quem se sente ideologicamente mais próximo, "mesmo quando uma real simpatia nos aproxima".

Coimbra, 28 de Setembro de 1990 - Escândalos políticos sucessivos, com justificações oficiais vergonhosas. Inquéritos, demissões, prisões, mas tudo a fingir, para oposição ver. A hora é de podridão e desvergonha. (...) A execrável tirania de há pouco tinha ao menos o mérito de ser frontal, culta e respeitar o inconsciente do povo português. Esta de agora é sorna, analfabeta, e agride e ofende diariamente o que de mais profundo e sagrado há em nós.

Este comentário, vindo de um velho resistente à ditadura, traz a marca pungente da desilusão… e voltamos à interrogação:
- Que destino será o nosso?

Coimbra, 6 de Dezembro de 1990 - Frente a frente televisivo dos dois principais candidatos presidenciais. Um espectáculo triste, que só não entristeceu quem não acredita na democracia. Mas eu acredito. Tempo virá em que dialogar cortesmente será um acto natural de todos os homens civilizados, mesmo a disputar o poder, que será uma maneira plebiscitada de melhor servir, e não trampolim de nenhuma megalomania ou ambição inconfessada.

Aqui, enquanto o desencanto se mantém, torna-se nítida a sua dimensão utópica, quando diz que "tempo virá em que dialogar cortesmente será um acto natural de todos os homens civilizados"...

Coimbra, 7 de Fevereiro de 1991 - Telefonema da capital a solicitar a minha assinatura num dos apoios habituais do remanescente prestígio das artes à contumaz leviandade política. E lá disse mais uma vez que não, que nunca serei um literato de serviço. Que afianço os meus actos, e já não é pouco.

Volta a dirigir-se à classe política chamando-lhe leviana e, logo de seguida, mantém o seu juramento de ser fiel à sua condição de artista, porque ele sabe que "a liberdade é uma penosa conquista da solidão".
Há muito, já, escrevi um pequeno livro intitulado “Torga - O português do Mundo”, dando realce a essa dimensão universalista que o poeta de “Ansiedade” tanto considerava ser a nossa marca. Ei-la de novo, num registo de 9 de Abril de 1991:

Foi dificil meter-lhe no entendimento a evidência de que sou, por nascimento e cultura, europeu, e quero continuar a sê-lo desvanecidamente. Mas que sou também brasileiro, angolano, moçambicano, goês, macaense, cabo-verdiano, guinéu, timorense e cidadão de todos os mundos por nós descobertos e por descobrir, e vivo a sonhar um padrão português erguido neles em cada esquina.

(continua na próxima semana)

terça-feira, outubro 09, 2007

JOSÉ BELO NA HORA DA ACADÉMICA

Por Carlos Carranca


Ando há alguns anos a discutir com amigos aquilo a que chamam hoje Académica. Farto de reflectir sobre o pesadelo de uma causa cada vez mais coisa, que se tem vindo a afastar tragicamente dos seus princípios e valores, mas sem nunca ter perdido a esperança de um dia ver ou ouvir alguém que mereça o nosso respeito e a nossa admiração, a assumir aquilo que, todos sabemos, mal, e que se resume ao seguinte: a Académica é hoje um clube como outro qualquer, sem estudantes, sem ideias, nem ética capaz de impor a diferença no reino do vale-tudo que é o nosso futebol. Por outras palavras, o José Belo, glória da Académica e meu querido amigo, afirmou ao Record de 7 de Outubro que “É na conquista dos valores e princípios que fizeram desta (a Académica) uma instituição de referência que devem centrar-se as nossas energias”. E continua, afirmando, sem deixar qualquer espécie de dúvidas aos leitores, que o futebol de hoje “pulsa ao ritmo de um mercantilismo puro e duro”, sublinhando que “o futuro pode e deve passar por nós, por um modelo onde o Homem também se cumpra na sua integralidade”.

Há já alguns anos escrevi que “Nós somos desse tempo de ansiar/o lugar onde nasce a poesia”. Nós que aprendemos com a Académica a ser do futuro, a jogar à bola contra os interesses instalados; nós que fomos modernos e clássicos ao mesmo tempo, que deixámos pegadas humanizadoras no futebol de então; nós que soubemos assumir as nossas responsabilidades em tempo próprio, é altura de, mais uma vez, estarmos com o futebol-festa da vida contra o futebol-espectáculo alienador das massas.

Ser da Académica é não pactuar com a negociata que faz do OAF placa giratória para profissionais do futebol e seus empresários.

Nós acreditamos numa Académica de cidadãos, e não de mercadorias transaccionáveis.

O futuro da Briosa deve passar pelo reforço da identidade como mais-valia de um futebol de cidadãos.

Os interesses políticos e o vírus do negócio arrastaram a Académica para um futebol de gosto duvidoso, sem ideias, sem substância, sem coesão. Deixou-se prostituir pela mercantilização e cedeu ao vírus negocista que se apoderou de todos os sectores da vida nacional, levando João Palma-Ferreira a afirmar, poucos dias antes de morrer, ter a tecnocracia organizado cientificamente a estupidez.

Reconhecendo que a Académica já não é a nossa e serve mal o futebol que há, está na hora de alguém assumir patrioticamente a responsabilidade pelo futuro – o outro património da eterna Académica, congregando todos quantos ainda acreditam no futebol dos princípios desportivos e, como muito bem afirmou o José Belo “onde o Homem se cumpra na sua integralidade”.

Essa personalidade já foi encontrada. Chama-se José Belo, herói da Taça de 69, presidente do Núcleo dos Veteranos, símbolo da Académica de sempre e que, em boa hora, disse o que todos estamos fartos de saber.

terça-feira, outubro 02, 2007

BOCA DO INFERNO



A batida cardíaca

é o mar - este mar - a bater na minha vida.


Mar de cadência dorida

solidão líquida de sal.


Esta batida é o mal

da angústia demoníaca

a desfazer-se em poemas


princípio da própria vida

que a morte dá de saída.



Carlos Carranca