segunda-feira, outubro 15, 2007

O Portugal dos Políticos no Diário XVI de Miguel Torga


Nestas coisas da política, há que ter o cuidado necessário de não resvalar para o campo partidário, que subtrai, reduz a um enquadramento de cumplicidades mais ou menos legítimas o que se quer aberto, de todos e para todos.
A abordagem ao tema "O Portugal dos Políticos", no “Diário XVI”, de Miguel Torga, não tem como objectivo senão facilitar o entendimento da obra de quem da vida não fez senão por merecê-la. Daí que me tenha limitado à função de cicerone, apontando as verdades do poeta que justificam as suas palavras: "Quem me quiser conhecer, que me leia".
É nesta postura, nesta atitude que tem o Homem como fundamento, que o cidadão Adolfo Rocha / Miguel Torga, em luta agónica constante, revela a sua singularidade de "Orfeu Rebelde" em todas as circunstâncias, sejam elas políticas, poéticas, profissionais ou outras. Ele sabe que o valor de cada um está na originalidade, na autenticidade do olhar, e que a vida não é para ser encarcerada num redil de verdades manipuladoras. Ele sabe que pensar é gerar utopias.
Livre, quanto possível, inconformista-original, refractário às "autoridades teológica e política", como Espinosa, colocou o seu talento ao serviço do cumprimento de uma sociedade mais justa, onde os princípios e valores do socialismo democrático - entendidos à escala planetária - conduziriam ao sentido do Homem universal.
Torga cumpre-se num combate espiritual, intelectual, moral e social, sendo o seu sentimento religioso e utópico, a base estruturante da sua acção política, agindo por sentido do dever.
Está confinada esta análise ao “Diário” derradeiro que nos deixa um travo amargo de descrença nos políticos, em especial nos da nossa praça. Os portugueses que "amesquinha[ra]m a nossa pequenez a engrandecê-la com frases ocas, como nós a apoucamos elegendo-os (...)".
Fica para mais tarde uma análise conjunta aos aspectos da política internacional. Por agora, citarei, apenas, os dias deste livro dedicados à política à portuguesa, de uma Pátria que já não é nossa, dando-nos a conhecer, por antecipação, este "nosso" Portugal do ‘power point’, sem alma nem verdade telúrica.

Coimbra, 3 de Maio de 1990 - Não há dúvida. Perdemos colectivamente o rumo, e não há bússola política, nem gajeiro partidário que nos valha. Indiferentes à lição do passado, que já nenhuma escola nos ensina, sem ânimo e sem estímulo para sonhar e merecer o futuro, granjeamos passivamente a courela do tempo, até esquecidos de que estamos no presente e somos seus contemporâneos e protagonistas.

Não há dúvidas quanto à descrença: "Perdemos colectivamente o rumo". Qual será o nosso destino?
Eduardo Lourenço, com a autoridade que todos lhe reconhecemos, afirmou um dia só existir uma pátria quando se tem a si mesma, colectivamente, como destino.
Será que estamos condenados ao destino do patrioteirismo do futebol?
Trinta e três anos após o 25 de Abril, substituímos o F de "futuro" pelo antigo e "reaccionário" F do "futebol". Onde ficamos nós? Que património legamos aos vindouros?

Coimbra. 6 de Maio de 1990 - Serão chineses os futuros administradores de Macau, disse hoje uma voz de Pequim. O que é compreensível, pois o território foi sempre uma concessão. Mas que pena! A minha esperança é que o dragão, apesar da natural gula nacionalista, não consiga devorar até à exaustão os muitos testemunhos da singularidade do génio português. Que eles fiquem latentes na pequena península como uma incurável e benéfica endemia.

Resta-nos a utopia do poeta. Porque a realidade indica-nos um apagamento progressivo da nossa cultura em Macau, enquanto o dragão - misto de capitalismo selvagem e comunismo totalitário - invade Portugal de "lojas dos trezentos" e de restaurantes de comida barata.

Coimbra, 29 de Junho de 1990 - Já não tem remédio. As minhas relações com os governantes hão-de ser sempre uma confrontação crispada. Mesmo quando uma real simpatia nos aproxima, o diálogo nunca é naturalmente cordial. (...) Mas o político, só pelo facto de o ser, é sempre um estranho ao pé de nós. Tem qualquer coisa de um predador humano, que ameaça dia e noite a paz dos demais viventes da selva. É pelo menos o que sinto. (...) Sei que só um objectivo o move na vida: o poder. Que por ele de tudo é capaz, diga o que disser, pareça o pareça. (...) É como se o soubesse caladamente armado contra mim.

É evidente que se refere à classe política em geral, sem excluir aqueles de quem se sente ideologicamente mais próximo, "mesmo quando uma real simpatia nos aproxima".

Coimbra, 28 de Setembro de 1990 - Escândalos políticos sucessivos, com justificações oficiais vergonhosas. Inquéritos, demissões, prisões, mas tudo a fingir, para oposição ver. A hora é de podridão e desvergonha. (...) A execrável tirania de há pouco tinha ao menos o mérito de ser frontal, culta e respeitar o inconsciente do povo português. Esta de agora é sorna, analfabeta, e agride e ofende diariamente o que de mais profundo e sagrado há em nós.

Este comentário, vindo de um velho resistente à ditadura, traz a marca pungente da desilusão… e voltamos à interrogação:
- Que destino será o nosso?

Coimbra, 6 de Dezembro de 1990 - Frente a frente televisivo dos dois principais candidatos presidenciais. Um espectáculo triste, que só não entristeceu quem não acredita na democracia. Mas eu acredito. Tempo virá em que dialogar cortesmente será um acto natural de todos os homens civilizados, mesmo a disputar o poder, que será uma maneira plebiscitada de melhor servir, e não trampolim de nenhuma megalomania ou ambição inconfessada.

Aqui, enquanto o desencanto se mantém, torna-se nítida a sua dimensão utópica, quando diz que "tempo virá em que dialogar cortesmente será um acto natural de todos os homens civilizados"...

Coimbra, 7 de Fevereiro de 1991 - Telefonema da capital a solicitar a minha assinatura num dos apoios habituais do remanescente prestígio das artes à contumaz leviandade política. E lá disse mais uma vez que não, que nunca serei um literato de serviço. Que afianço os meus actos, e já não é pouco.

Volta a dirigir-se à classe política chamando-lhe leviana e, logo de seguida, mantém o seu juramento de ser fiel à sua condição de artista, porque ele sabe que "a liberdade é uma penosa conquista da solidão".
Há muito, já, escrevi um pequeno livro intitulado “Torga - O português do Mundo”, dando realce a essa dimensão universalista que o poeta de “Ansiedade” tanto considerava ser a nossa marca. Ei-la de novo, num registo de 9 de Abril de 1991:

Foi dificil meter-lhe no entendimento a evidência de que sou, por nascimento e cultura, europeu, e quero continuar a sê-lo desvanecidamente. Mas que sou também brasileiro, angolano, moçambicano, goês, macaense, cabo-verdiano, guinéu, timorense e cidadão de todos os mundos por nós descobertos e por descobrir, e vivo a sonhar um padrão português erguido neles em cada esquina.

(continua na próxima semana)