O Portugal dos Políticos no Diário XVI de Miguel Torga
(parte II)
A sua lucidez não deixa espaço à demagogia barata:
Coimbra, 28 de Abril de 1991 - Aniversário do nascimento de Salazar. A televisão registou a efeméride e convidou um seu antigo colaborador e um adversário para um breve debate. Ambos disseram o que era de esperar. Um que sim e o outro que não. Faltou um terceiro que esclarecesse singelamente os telespectadores que o ditador foi a expressão portuguesa do andaço tirânico da sua época triste. Uma expressão medíocre e actual dum velho do Restelo, inteligente mas sem imaginação criadora, com horizontes políticos acanhados como os reais do seu agro nativo. Que teve a suficiência intelectual coimbrã, a devoção paroquial dum campónio, a crueldade plebeia, a astúcia e a rusticidade dum pastor da Estrela. Que foi nosso em algumas virtudes e em todos os defeitos. E que, o melhor que podemos fazer à sua imagem é tentar esquecê-lo, como o povo, que não teve humanidade para meter no coração, nem génio para entender e guiar no caminho da liberdade e da modernidade, felizmente, já fez.
O retrato de Salazar é feito sem colorações neo-realistas: "(...) nosso em algumas virtudes e em todos os defeitos".
Segue-se um comentário ao autor de um livro acabado de ler. Nada, neste texto, nos leva a poder concluir, seguramente, que se trata de um livro de Mário Soares, mas, comparando-o com uma carta que o poeta envia ao fundador do Partido Socialista e datada de 7 de Maio de 1994 (incluída na Fotobiografia editada pelas Publicações Dom Quixote e da autoria da sua filha Clara Rocha), a semelhança quanto à observação leva a crer que sim.
Coimbra. 5 de Maio de 1991 - Passei o Domingo a lê-lo. É um homem feliz. Discorre convictamente de tudo, está contente consigo, do que é e diz, do que fez e fará. (...) tenta, contudo, forçar o juízo da posteridade abarrotando os arquivos de documentos comprovativos da magnitude sonhada.
Agora, tomemos atenção a este excerto da carta datada de 7 de Maio de 1994:
Meu caro Dr. Mário Soares:
Como lhe tinha garantido de viva voz, acabei esta noite de ler de fio a pavio as suas “Intervenções (8)”.
(...) Você tem o pensamento ágil e a expressão fácil. É um dom dos deuses. Pena é que o seu medular optimismo doire sempre as conclusões de cada arrazoado. Refiro-me concretamente às idílicas considerações com que remata todas as referências à Europa.
Mas, como já aludi, é apenas uma suspeita, pois o autor do “Diário” tem a delicadeza de nunca identificar o alvo das suas críticas sempre que estas se dirigem a amigos ou camaradas da escrita.
Quanto ao tema da regionalização, que dividiu o País, num referendo que se lhe opôs nos resultados, e que foi proposta pelos seus amigos do Partido Socialista, com António Guterres na liderança, merece-lhe duas notas no “Diário”, uma de 12 de Julho de 1991, onde pede aos políticos: "Deixe-nos ser e sentir em todo o território justificados, fraternos e preservados na nossa identidade."
Mas é num texto datado de 30 de Setembro de 1991 que Torga deixa registada, mais uma vez, a sua desilusão:
Desmereceu hoje, como voz da nação, o aval que lhe dei ontem para o ser. Quer esquartejá-la, e pedia-me que o ajudasse na peregrina cruzada. Confunde a descentralização, o regresso ao nosso municipalismo administrativo tradicional, o povo realmente soberano, a governar-se em vez de ser governado, que sempre defendi, com a regionalização que advoga. E ouviu das boas. Mas de nada valeu. Quem não sente a unidade da pátria na própria carne, está predisposto para a ver aos bocados.
E prossegue, mais adiante:
Mas nós somos uma família unida a viver em harmonia há oitocentos anos dentro do mesmo agro patrimonial, sem contradições de nenhuma ordem e sem nenhum dos herdeiros pensar sequer em partilhas. Eu, pelo menos. E cada dia menos, até porque, mais cedo do que era de prever, os factos se encarregam de, tragicamente, me dar razão.
O seu insatisfeito patriotismo leva-o a mais uma afirmação de desencanto extremo:
Coimbra. 23 de Setembro de 1991 - Não queria outra pátria. Mas vivo envergonhado de ser nesta contemporâneo de alguns dos mais notórios compatriotas, e, por sê-lo, responsável moral de todas as patifarias que nela cometem.
Há outro problema que obriga Torga a vários comentários inseridos neste “Diário” derradeiro: Timor.
Com datas de 10 de Março, 17 de Março, 12 de Novembro e 12 de Dezembro de 1992, e de 7 de Março e 12 de Novembro de 1993, o poeta vai seguindo o drama de um povo em luta pela sua libertação.
Coimbra, 12 de Novembro de 1992 - Aniversário dos massacres de Timor. Um dos mais dolorosos cilícios da nossa consciência colectiva.
Quanto à prisão de Xanana pelas forças indonésias, Torga comenta o episódio da aparente renúncia da seguinte forma:
Coimbra, 12 de Dezembro de 1992 - Está diante de mim no écran, sozinho, nimbado de não sei que luz espectral, com um sorriso permanente nos lábios, não sei se angélico, se diabólico, se desdenhoso. Renega todo o passado de resistente, confessa-se arrependido do mal que fez ao povo oprimido que quis libertar, e pede aos companheiros de luta que o acompanhem na deserção. Não mostra sinais de tortura fisica, e parece de boa saúde mental. Sabe, evidentemente, que está a ser visto e ouvido pelo mundo inteiro, e que a significação da renúncia que anuncia vai muito para além da circunstância da sua vida negada. É, aparentemente, um mártir sem martírio, um Ecce Homo a que falta apenas a coroa de espinhos e o ceptro de escárnio. E, contudo, recuso-me a vê-lo apenas assim, e a ter vergonha por Portugal, por ele e por mim. Sofro pela humilhação a que o sujeitaram e sinto-me diminuído como ser humano só em pensar que, em vez de respeitado como um combatente vencido, vai servir de trunfo no jogo sujo das chancelarias. Mas acredito ainda no milagre. Que tudo seja apenas uma ardilosa finta de guerrilheiro. Manietado nas mãos do inimigo, finge o que não é, e guarda os trunfos que lhe restam para a hora decisiva. Chamava-se, enquanto herói, Xanana Gusmão, era timorense e português.
Há um episódio na saga do povo de Timor, anterior cronologicamente ao acabado de referir, em que um grupo de jovens notáveis e o ex-Presidente da República, Ramalho Eanes, se envolveram na trapalhada do Lusitânia Expresso e que mereceu esta nota:
Coimbra, 10 de Março de 1992 - Acordado até desoras, contra a razão clínica e a regra hospitalar, a seguir o folhetim trágico-cómico da Lusitânia Expresso, na sua ida de protesto e solidariedade a Timor. Às tantas, a notícia fatal: o barco ia retroceder. Os heróicos tripulantes, a convite dos indonésios, voltavam costas à empresa e regressavam pacificamente à pacatez caseira. Somos assim. Entradas de leão e saídas de sendeiro. O que nos vale é que no termo de cada façanha, de calças na mão, nem sequer damos pelo ridículo.
Ao invés deste patético episódio, Xanana Gusmão enchia o cansado coração do "Orfeu Rebelde" de orgulho:
Coimbra, 7 de Maio de 1993 - Graças a Deus! Xanana Gusmão, condenado a prisão perpétua pelo tribunal às ordens do tirano indonésio, atirou à cara dos juízes serviçais toda a verdade da sua revolta contra a opressão e fidelidade à terra nativa. E, embora impedido de levar até ao fim o protesto, disse o bastante, no seu português materno, para retomar, limpo de todos os equívocos, o lugar de herói glorioso, que, por direito, lhe pertence na História.
E, a terminar o “Diário”, com data de 12 de. Novembro de 1993 (a última nota do Diário é um poema de 10 de Dezembro), Torga regressa a TimorLeste:
Coimbra, 12 de Novembro de 1993 - Ainda e sempre o pesadelo dos massacres de Timor. Ter uma pátria na cabeça dói muito. Sangram, sem cura, em nós todas as suas chagas, obsessivamente presentes nas datas fatídicas e sem contrapartida de qualquer sedativa exaltação patriótica nas horas oficiais que lhe celebram a sanidade. Mas antes a incomodidade de nunca a esquecer em Alcácer-Quibir, do que a comodidade de só a lembrar em Aljubarrota.
(termina na próxima semana)
(parte II)
A sua lucidez não deixa espaço à demagogia barata:
Coimbra, 28 de Abril de 1991 - Aniversário do nascimento de Salazar. A televisão registou a efeméride e convidou um seu antigo colaborador e um adversário para um breve debate. Ambos disseram o que era de esperar. Um que sim e o outro que não. Faltou um terceiro que esclarecesse singelamente os telespectadores que o ditador foi a expressão portuguesa do andaço tirânico da sua época triste. Uma expressão medíocre e actual dum velho do Restelo, inteligente mas sem imaginação criadora, com horizontes políticos acanhados como os reais do seu agro nativo. Que teve a suficiência intelectual coimbrã, a devoção paroquial dum campónio, a crueldade plebeia, a astúcia e a rusticidade dum pastor da Estrela. Que foi nosso em algumas virtudes e em todos os defeitos. E que, o melhor que podemos fazer à sua imagem é tentar esquecê-lo, como o povo, que não teve humanidade para meter no coração, nem génio para entender e guiar no caminho da liberdade e da modernidade, felizmente, já fez.
O retrato de Salazar é feito sem colorações neo-realistas: "(...) nosso em algumas virtudes e em todos os defeitos".
Segue-se um comentário ao autor de um livro acabado de ler. Nada, neste texto, nos leva a poder concluir, seguramente, que se trata de um livro de Mário Soares, mas, comparando-o com uma carta que o poeta envia ao fundador do Partido Socialista e datada de 7 de Maio de 1994 (incluída na Fotobiografia editada pelas Publicações Dom Quixote e da autoria da sua filha Clara Rocha), a semelhança quanto à observação leva a crer que sim.
Coimbra. 5 de Maio de 1991 - Passei o Domingo a lê-lo. É um homem feliz. Discorre convictamente de tudo, está contente consigo, do que é e diz, do que fez e fará. (...) tenta, contudo, forçar o juízo da posteridade abarrotando os arquivos de documentos comprovativos da magnitude sonhada.
Agora, tomemos atenção a este excerto da carta datada de 7 de Maio de 1994:
Meu caro Dr. Mário Soares:
Como lhe tinha garantido de viva voz, acabei esta noite de ler de fio a pavio as suas “Intervenções (8)”.
(...) Você tem o pensamento ágil e a expressão fácil. É um dom dos deuses. Pena é que o seu medular optimismo doire sempre as conclusões de cada arrazoado. Refiro-me concretamente às idílicas considerações com que remata todas as referências à Europa.
Mas, como já aludi, é apenas uma suspeita, pois o autor do “Diário” tem a delicadeza de nunca identificar o alvo das suas críticas sempre que estas se dirigem a amigos ou camaradas da escrita.
Quanto ao tema da regionalização, que dividiu o País, num referendo que se lhe opôs nos resultados, e que foi proposta pelos seus amigos do Partido Socialista, com António Guterres na liderança, merece-lhe duas notas no “Diário”, uma de 12 de Julho de 1991, onde pede aos políticos: "Deixe-nos ser e sentir em todo o território justificados, fraternos e preservados na nossa identidade."
Mas é num texto datado de 30 de Setembro de 1991 que Torga deixa registada, mais uma vez, a sua desilusão:
Desmereceu hoje, como voz da nação, o aval que lhe dei ontem para o ser. Quer esquartejá-la, e pedia-me que o ajudasse na peregrina cruzada. Confunde a descentralização, o regresso ao nosso municipalismo administrativo tradicional, o povo realmente soberano, a governar-se em vez de ser governado, que sempre defendi, com a regionalização que advoga. E ouviu das boas. Mas de nada valeu. Quem não sente a unidade da pátria na própria carne, está predisposto para a ver aos bocados.
E prossegue, mais adiante:
Mas nós somos uma família unida a viver em harmonia há oitocentos anos dentro do mesmo agro patrimonial, sem contradições de nenhuma ordem e sem nenhum dos herdeiros pensar sequer em partilhas. Eu, pelo menos. E cada dia menos, até porque, mais cedo do que era de prever, os factos se encarregam de, tragicamente, me dar razão.
O seu insatisfeito patriotismo leva-o a mais uma afirmação de desencanto extremo:
Coimbra. 23 de Setembro de 1991 - Não queria outra pátria. Mas vivo envergonhado de ser nesta contemporâneo de alguns dos mais notórios compatriotas, e, por sê-lo, responsável moral de todas as patifarias que nela cometem.
Há outro problema que obriga Torga a vários comentários inseridos neste “Diário” derradeiro: Timor.
Com datas de 10 de Março, 17 de Março, 12 de Novembro e 12 de Dezembro de 1992, e de 7 de Março e 12 de Novembro de 1993, o poeta vai seguindo o drama de um povo em luta pela sua libertação.
Coimbra, 12 de Novembro de 1992 - Aniversário dos massacres de Timor. Um dos mais dolorosos cilícios da nossa consciência colectiva.
Quanto à prisão de Xanana pelas forças indonésias, Torga comenta o episódio da aparente renúncia da seguinte forma:
Coimbra, 12 de Dezembro de 1992 - Está diante de mim no écran, sozinho, nimbado de não sei que luz espectral, com um sorriso permanente nos lábios, não sei se angélico, se diabólico, se desdenhoso. Renega todo o passado de resistente, confessa-se arrependido do mal que fez ao povo oprimido que quis libertar, e pede aos companheiros de luta que o acompanhem na deserção. Não mostra sinais de tortura fisica, e parece de boa saúde mental. Sabe, evidentemente, que está a ser visto e ouvido pelo mundo inteiro, e que a significação da renúncia que anuncia vai muito para além da circunstância da sua vida negada. É, aparentemente, um mártir sem martírio, um Ecce Homo a que falta apenas a coroa de espinhos e o ceptro de escárnio. E, contudo, recuso-me a vê-lo apenas assim, e a ter vergonha por Portugal, por ele e por mim. Sofro pela humilhação a que o sujeitaram e sinto-me diminuído como ser humano só em pensar que, em vez de respeitado como um combatente vencido, vai servir de trunfo no jogo sujo das chancelarias. Mas acredito ainda no milagre. Que tudo seja apenas uma ardilosa finta de guerrilheiro. Manietado nas mãos do inimigo, finge o que não é, e guarda os trunfos que lhe restam para a hora decisiva. Chamava-se, enquanto herói, Xanana Gusmão, era timorense e português.
Há um episódio na saga do povo de Timor, anterior cronologicamente ao acabado de referir, em que um grupo de jovens notáveis e o ex-Presidente da República, Ramalho Eanes, se envolveram na trapalhada do Lusitânia Expresso e que mereceu esta nota:
Coimbra, 10 de Março de 1992 - Acordado até desoras, contra a razão clínica e a regra hospitalar, a seguir o folhetim trágico-cómico da Lusitânia Expresso, na sua ida de protesto e solidariedade a Timor. Às tantas, a notícia fatal: o barco ia retroceder. Os heróicos tripulantes, a convite dos indonésios, voltavam costas à empresa e regressavam pacificamente à pacatez caseira. Somos assim. Entradas de leão e saídas de sendeiro. O que nos vale é que no termo de cada façanha, de calças na mão, nem sequer damos pelo ridículo.
Ao invés deste patético episódio, Xanana Gusmão enchia o cansado coração do "Orfeu Rebelde" de orgulho:
Coimbra, 7 de Maio de 1993 - Graças a Deus! Xanana Gusmão, condenado a prisão perpétua pelo tribunal às ordens do tirano indonésio, atirou à cara dos juízes serviçais toda a verdade da sua revolta contra a opressão e fidelidade à terra nativa. E, embora impedido de levar até ao fim o protesto, disse o bastante, no seu português materno, para retomar, limpo de todos os equívocos, o lugar de herói glorioso, que, por direito, lhe pertence na História.
E, a terminar o “Diário”, com data de 12 de. Novembro de 1993 (a última nota do Diário é um poema de 10 de Dezembro), Torga regressa a TimorLeste:
Coimbra, 12 de Novembro de 1993 - Ainda e sempre o pesadelo dos massacres de Timor. Ter uma pátria na cabeça dói muito. Sangram, sem cura, em nós todas as suas chagas, obsessivamente presentes nas datas fatídicas e sem contrapartida de qualquer sedativa exaltação patriótica nas horas oficiais que lhe celebram a sanidade. Mas antes a incomodidade de nunca a esquecer em Alcácer-Quibir, do que a comodidade de só a lembrar em Aljubarrota.
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