Carlos Carranca - neste lugar sem portas

sexta-feira, outubro 27, 2006

Torga - o bicho religioso

Conferência proferida na escola Padre Alberto Neto Queluz -a 28 de Março de 2000

Há já algum tempo, tempo suficiente capaz de uma geração, afirmava eu, a dado passo, num editorial que abria uma folha cultural intitulada Boémianova (título roubado a uma publicação fundada em Coimbra por António Nobre - poeta de que se comemora este mês o centésimo aniversário da sua morte), afirmava o seguinte: "Fazer da Arte um acto de fé e não uma religião é o nosso sonho".
Torga leu o texto e, muito bem paramentado na sua bata branca de médico, deixou-me no ar este comentário interrogativo "porque não uma religião?".
Este nosso encontro multiplicou-se por não sei quantos mais, em Coimbra, no Largo da Portagem, naquele 1.° andar que ostentava, pendurada da janela, uma tabuleta que dizia:

ADOLFO ROCHA
MÉDICO ESPECIALISTA
OUVIDOS, NARIZ E GARGANTA

Habituado como médico a conviver" com doentes, com o absurdo da morte, com o poder tirânico da morte, é arrancando--o ao quotidiano que Torga nos dá a dimensão do sagrado. E porque tudo em Torga é conflito é, na expressão do seu mestre Unamuno, a agonia (entendida como luta entre a vida e a morte) que marca o sentido maior de uma existência que procura regressar ao natural, a uma etapa anterior, de inocência cósmica, de ressurreição do sagrado humano.
Na sua obra poética, assim como no conto e no romance, Deus surge sempre como força da morte, sendo o destino do poeta o de cantar para vencer a morte. Assim como Vicente, o corvo da terra, desafiou Deus e o venceu, emancipando toda a criação, Torga "Orfeu Rebelde" "Bicho instintivo que adivinha a morte/ No corpo dum poeta que a recusa,/ Canta como quem usai Os versos em legítima defesa./ Canta sem perguntar à Musa/ Se o canto é de terror ou de beleza"
(Orfeu Rebelde. 1a ed. 1958, Pag 11)

Deus é uma razão que não é do mundo e Torga é do partido do Diabo (leia-se mundo):
Foi a ele que Jesus disse que o seu reino não era deste mundo. E o meu precisamente é.
(Diário, 1946, pp. 1621163)
O que há de verdadeiramente sagrado na obra de Torga é a Vida e a Liberdade de cada ser. É isso que o poeta nos diz em Flor da Liberdade:
Liberdade do homem sobre a terra, Ou debaixo da Terra.

Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.
Quando preparava esta minha reflexão que vos dedico sobre o tema que me foi proposto - o Homem, a Terra e Deus - , reparei que Torga tinha alterado em sucessivas edições o penúltimo parágrafo do último conto de Bichos, - Vicente - o corvo que se evadiu da Arca de Noé e do cimo de um penhasco desafiou Deus.
Da primeira para a última, a décima nona edição, há uma modificação que me parece reveladora de parte do segredo da sua obra literária:
Na primeira edição podemos ler, a finalizar o conto,Mas em breve todos compreenderam que o Senhor hesitava. Que já nada podia contra aquela vontade inabalável de viver. Na última, consegue o pleno. Encontra, finalmente, a fórmula certa Mas em breve se tornou evidente que o senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade de ser livre.
É nesta leitura comparada que se nos revela, sem equívocos, o pensamento do autor: vida como sinónima de liberdade. Mas de liberdade que se conquista, aos poucos, dia a dia, quotidianamente.
y
E num poema intitulado Conquista que Torga, lapidarmente, o indica:
Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
E quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino.
(Antologia Poética, pag 124, 1." ed. Coimbra, 1981)
É também o poeta que nos esclarece ser a liberdade uma penosa conquista da solidão.

E ainda ele que nos reza este 'Padre Nosso': Liberdade
- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua voz omnipotente
Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado
Saborear, enfim
O pão da minha fome.
- Liberdade que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
(Diário XII)


Mas alerta-nos que Ninguém é feliz sozinho, nem mesmo na eternidade (prefácio de Bichos). Daí a sua vida, a vida de poeta, ser uma dádiva permanente.
Pela palavra poética, Torga é fiel à solidariedade de berço, sou do povo, sou pelo povo, e não há forças humanas que me apaguem do instinto a cepa donde provenho (Diário IV, 2a ed. revista, 1953, p.66) e à solidariedade cósmica, porque ser poeta é estar mais próximo da divindade, ainda que entre homens e pelos homens.
Torga sabe que é um predestinado. Tem uma missão a cumprir. Ele cria o mito do próprio eu e o mito de Portugal.

Portugal
Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura, serás sempre o que sou.
E eu sou a liberdade dum perfil Desenhado no mar. Ondulo e permaneço. Cavo, remo, imagino

E descubro na bruma o meu destino Que de antemão conheço:
Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às raízes do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alto ainda do que no passado.
(Diário X)
A terra é, para Torga, a realidade maior. E é partindo da sua terra natal - S. Martinho de Anta (Trás-os-Montes) - que percorre Portugal, o conhece, o sente, o ouve em confissão, palmilhando--o, como os seus avós almocreves:
Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-la como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e tristezas.
(Diário V. p.60)

E na sua terra, a terra sagrada da infância, que o poeta recupera a energia que o homem civilizado perdeu:
De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino

da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida de que os resultados obtidos confirmam a sua verdade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. E como se recebesse instantaneamente uma transfusão de sangue.
(Diário XI. 1972. p.21)

Do livro de poemas Câmara Ardente, a sua estreita relação com a terra, o seu conhecido, falado e refalado telurismo, torna--se por demais evidente - quando, recorrendo uma vez mais ao mito de Anteu, nos diz no poema Comunicado:
Filho da Terra, minha mãe amada, E ela que levanta o lutador caído. Anteu anão, Toco-lhe o coração, E ergo-me do chão Fortalecido.
(1ª ed.pag.77. 1962)

E na intemporalidade do mito que a obra literária de Torga
se humaniza.
Torga anseia por ura tempo de reconciliação de todos os homens com a vida, num regresso ao equilíbrio ecológico, que tão urgente se torna hoje. É a partir dessa relação com a natureza que o poeta entende a poesia como o meio, a forma de comungar com a transcendência. Em Torga a poesia é assumida como uma religião; a palavra como oração renovada onde o poeta é senhor do sagrado, da palavra revelada.

Para Torga o Homem é mais importante que Deus e é através dos bichos, das pedras, das plantas, que este recupera a inocência perdida, a das primeiras descobertas.
É na terra que o poeta realiza os seus sonhos de artista e de cidadão, comprometido com a vida em busca da liberdade.
Há, na obra de Miguel Torga, a glorificação pagã da vida próxima de um certo cristianismo popular. A terra é, como já referiu Teresa Rita Lopes na sua obra "Miguel Torga - Ofício a um Deus de Terra", uma espécie de Virgem Maria que concebe sem pecado. E Torga revela-nos a necessidade de nos aproximarmos dessa pureza, dessa verdade que só é virgem porque é natural:
Conseguir na prosa a dignidade e a força descarnada destas fragas, e nos versos a pureza e a largueza dos horizontes que dela se descortinam é o instintivo propósito da minha ambição de artista.
(Diário VII, 1956, p. 179)

Partindo destas fragas, Torga vai desempenhar o papel reservado ao Criador, vai falar o mundo, vai criar a sua obra.
O seu romance autobiográfico é sugestivamente designado Criação do Mundo. Todos os seus cinco volumes ostentam, a abrir, o versículo de Génesis que diz "Tomou pois o Senhor Deus ao homem, e pô-lo no paraíso das delícias..."
Foi Deus que falou o Mundo, mas Torga vai também falar o seu mundo como criador que não aceita a tirania de uma vontade cínica, sem rosto. Leia-se o poema Livro de Horas, onde Torga se confessa a si mesmo, confessando-se autenticamente filho da terra, e não do céu:

Aqui, diante de mini, eu, pecador, me confesso de ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco que atira setas acima e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu. Eu, tal e qual como vim para dizer que sou eu aqui,
diante de mim!
(o outro Livro de JOB. 1936)

Na poesia e no conto há uma dimensão trágica da vida em direcção à morte, sempre carregada de conflitos que são seus - trouxe-os de Trás-os-Montes, da sua terra natal, filhos da gente que o viu nascer:

Às vezes matam-se uns aos outros duma maneira tal que parecem sem coração. Mas, olhando bem., vê-se que no intimo de cada crime não há mais do que a exaltação de puras e cristalinas virtudes, que só não são teologais porque Deus não quer. Uma delas, que nos pecados mortais é das piores, é neste reino a mais bela afirmação humana que se pode ver. Na verdade, é por orgulho que tais homens matam, morrem, ressuscitam, vivem, desfazem fragas e dão em toda a parte testemunho digno da sua terra.
(Portugal, pag. 31)
Regressando aos problemas de Deus na obra de Torga, faço aqui referência a um texto da autoria de António Arnaut e publicado no jornal "Artes & Artes" com o título "Miguel Torga a Morte sem Deus".
Apesar do muito em que concordamos, permito-me discordar da conclusão que faz o título do referido artigo .Torga não morre sem Deus. Torga morre só. Só, porque essa é a condição do Homem. Mas não deixa de crer, não no Deus tirânico, que toda a vida combateu, mas no Deus-Menino, que sempre glorificou. Porque acredita no milagre do nascimento e nesse hino à vida que é o corpo de um filho dentro da mulher a pedir mundo.
São variadíssimos os textos que ilustram o que acabo de afirmar. Deixo-vos, a título de exemplo, com excertos de dois contos - O Senhor, Natal e o poema Último Natal.
No conto O Senhor há um padre que é chamado para dar os últimos sacramentos a uma mulher que há três dias se encontra em trabalho de parto. Este liberta-se do seu papel de padre, depõe o sagrado viático e, d? mangas arregaçadas, arranca àquela pobre mulher o filho encravado na barriga.

(...) Os pés do sacerdote estavam agora bem assentes no soalho do quarto. O burburinho que vinha da rua trazia-lhe aos ouvidos um estímulo de naturalidade e de terra. A angústia de Filomena pedia e comandava.
(...)
A cara branca e pálida de Filomena parecia polvilhada da farinha que cobria tudo. Enternecido, o prior olhou-a com uma simpatia humana que só em menino tivera. E, naquela comunhão, depôs o sagrado viático sobre a tampa da caixa, ao lado da vela, tirou a estola do braço, despiu a capa, e disse, ao mesmo tempo que levantava a roupa da cama: - Mostra lá!
Era a primeira vez que via uma mulher naquele abandono, e uma vergastada do instinto alterou-lhe o ritmo do coração. Filomena, do seu lado, embora já quase despedida deste mundo, também sentiu a brisa de um pudor violado. Mas a força da realidade quase logo os serenou a ambos.
- Há três dias... - gemeu a infeliz, a queixar-se e a justificar-se.
(...)
- Malaquias!
- Senhor Padre Gusmão...
- Traz água!
Com o alguidar de barro a transbordar, parvo, o moleiro olhou o corpo escancarado da mulher e o padre de mangas arregaçadas.
(...)
Depois de um grande esforço de Filomena e do padre, um pequenino pé encarquilhado saiu preso à garra possante que o fora procurar. Um grito agudo chegou ao meio da turba alarmada.
- O que foi?
- Calai-vos!
Era meio caminho andado, e o prior estava decidido a chegar ao fim. Guiados por urna intuição de raiz e por uma ciência
brumosa de manual, os seus dedos pareciam adivinhar no seio da escuridão.
- Tem paciência, minha filha...
Duas lágrimas de dor e de gratidão desceram pelo rosto de Filomena.
- Malaquias!
- Senhor padre Gusmão...
- Traz água quente.
(...)
- Não fiques a olhar como um palerma! Pousa isso, e arranja
uma tesoura e linha. Mexe-te!
Faltava só a cabeça, que saiu depois de Filomena gastar as últimas forças a gritar.
- Pronto, já cá está!
Na exclamação de triunfo do padre Gusmão havia qualquer coisa de herético que feria os sentimento}: do moleiro. Mas, por outro lado, nada o poderia comover mais do que ver o filho a espernear naquelas mãos poderosas, humanas, que acabavam de o roubar à escuridão do nada.
(...)
A cara esvaída de Filomena tinha agora uma paz de dia findo. Exausta, olhou por alguns instantes a criança aos estremeções, deixou cair duas lágrimas de ternura, e mergulhou num sono profundo.
- Chama uma das mulheres lá de fora. Pode ser a Constança.
O Malaquias saiu a correr, estonteado de alegria e de
assombro, e entrou pouco depois acompanhado da velha.
- Tome conta do pequerrucho, e fique aí ao pé dela, que o
pior já passou.
- Olha que riqueza!
A Constança agasalhou no xaile a nudez limpa da pequena vida que estreava nos seus braços o aconchego do mundo, e o padre Gusmão lavou as mãos, desarregaçou as mangas e paramentou-se outra vez.

- João!
- Senhor Prior...
- Vamos lá.
Da caixa, o Senhor ergueu-se então solene, chegou aporta, e cobriu-se novamente do pálio da sua glória.
O segundo conto, Natal, fala-nos de um mendigo e de uma consoada muito especial:
De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem, a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam. ..Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado emLoivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa. ..E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a
pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam.. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego.
(...)
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e
foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. A volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o
alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela
estava apenas encostada. Ou fora esquecimento ou alguma alma
pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal aforrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
- Boas festas! - desejou-lhe a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não
desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca
do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de
presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais
faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas, dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
- É servida?
A santa pareceu sorrir-lhe outra vez e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia
dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma
coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
E por fim, o poema Último Natal:
Gaia, 24 de Dezembro de 1990

Menino Jesus, que nasces,
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
Es divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.
(Diário XVI, p. 52)
Há nestes três exemplos que vos acabo de citar, o mito do eterno retorno - o regresso ao princípio - e a imagem do Menino Jesus, do filho a pedir mundo.
A vida a vencer a morte.

O nascimento do Menino (filho do moleiro) vem restabelecer por alguns momentos a concórdia entre os homens, e esse papel do Menino corresponde ao da poesia, à sagração do humano. No conto de Natal o pedinte que faz de S. José humaniza o nascimento de Jesus. E no poema Ultimo Natal, Torga dá-nos a coerência do percurso de uma vida, a sua, continuando a acreditar na vida como uma religião que o poeta oficia e no Menino, símbolo da concórdia, da fraternidade entre os homens.
Ao despedir-se, Torga deixa-nos um hino à Vida, à fé renovada, como ritual da religião que nos faz acreditar no Futuro.
Alguém, um dia, lhe perguntou porque não deixava ele de escrever durante uma temporada para descansar. Torga respondeu:
Porque era a mesma coisa que um crente deixar de rezar um mês ou dois por higiene.
(Diário. 24/08/42)

A «CARTA A ZECA AFONSO» de José Jorge Letria*

Em várias ocasiões, tenho afirmado: há poetas que o são antes do verso. Emprestam à vida uma autencidade, uma entrega de tal modo absoluta que, depois, ou lhes lêem a obra como corpo vivo, palpitante, de sangue a correr nas veias (e o critico tenta apreender a essência, o que há de pessoal no texto poético), ou, como cadáver que dissecam, retalham-no para alargar a investi¬gação pretensamente científico-formal.
Tenho para mim que os poetas José Afonso e José Jorge Letria são dos que, por múltiplas vivências, atingiram o grau do mistério, do mistério indecifrável da poesia.
José Jorge Letria muito cedo terá descoberto que a POÉTICA é a sua linguagem essencial e que ela é a linguagem privilegiada da comunicação entre os seres.
Cedo, terá partido em busca da autenticidade pela palavra.
Encontrar no homem a epopeia universal da sua humanidade.
O gesto e a palavra sinceramente unidas através da lin¬guagem simbólica onde o Mito e o Rito se sustentam, tê-lo-ão conduzido ao labirinto da verdade, onde a decifração dos mis¬térios o levam a descobrir, na voz de Zeca Afonso (...) o ouro da quimera/a memória branca do sul a do cerimonial das cantigas/ habitadas pelo mistério do vento, l pelo júbilo da fraternidade.
Nesta caminhada de redescoberta do sagrado e do simbóli¬co, neste tactear a decifração dos mistérios que as dúvidas clareiam, o autor revela-nos o mistério da totalidade.
Em José Jorge Letria (e esta carta revela-o claramente) há como que uma passagem do profano para o sagrado, da prosa para a poesia. A da transformação do adulto-criança - o de regresso a uma idade primeira - a da consciência adulta da essencialidade poética da infância.
Por isso há (..,) os trovadores da errância galaico-por-tuguesa da festa da palavra e uma Coimbra a tocar as recor¬dações e as chagas/de um tempo fraterno e torturado.
Letria sabe que a voz de Zeca pedia ... as vozes que subis¬sem com a dele. E com ele vinha a lucidez cantante/dos pescadores da Fuzeta/dos descobridores de verdades etemas(...).
Nesta evocação há, como já referi, a passagem do profano para o sagrado, a entrada no grande templo poético dos homens e mulheres de boa vontade, em uníssono, partilhando o momento.
Carta a Zeca Afonso para além de um acto de amizade ver¬dadeira, é o resultado da necessidade que o autor sente de que todos participemos nos grandes mistérios da vida que as coisas simples revelam.
Não reduzir o ser ao dizer. Não transformar a vida em roti¬na ou em academismo conformista e burocrático. Dar à vida o que a vida nos pede:
Futuro, o destinatário e remetente de todas as saudades.
* Jornal de Coimbra, 29 de Setembro, 99

domingo, outubro 15, 2006

Prefácio

Para dizer de minha justiça seja o que for deste conjunto de versos livres direi, como o autor: sei imensamente nada.
Arriscando, despudoradamente, citar-me, direi que vivemos num tempo em que os discursos soam a oco.
Vivemos num tempo de múltiplas palavras sem sentido, usadas nos comércios diários dos interesses; palavras que se usam e deitam fora; palavras sem peso específico; sem leveza; sem valor.
Ao entrarmos numa obra poética - pelo contrário - penetramos na vida que se afasta da razão sem a dispensar e se aproxima da sensibilidade. A poesia, tenta pela palavra, libertar-nos do ruído que aprisiona e, em função do outro, libertá-lo, religando-o à palavra perdida. No aperfeiçoamento do Mundo. A palavra poética é obra de engenharia: fazer pontes, unir o que está separado, aproximar congregando.
Neste livro encontramos uma permanente busca de harmonia onde as questões que têm guiado o Homem nos seus caminhos, permanecem.
Frágeis, não resistimos ao tempo: "Passo... mas resisto/e embora resistindo... sempre passo/pois a vida não é mais do que isto!"

A dúvida permanece, angustia e deixa-nos sem saber se o Homem morreu, ou não, pregado numa cruz; se ressuscitou. Mas a cruz existe !...

O autor fala-nos do tempo com maiúscula, mas do que nos quer falar é do Templo.. Fala-nos das coisas simples da vida: do regador ferrugento/que foi deitado fora/e nunca mais foi visto.
E se há justiça no que vejo (interrogar-se-à o poeta ) porque é que uma pequena nuvem / esconde o sol / nascido atrás de uma alta montanha..." ? E sabe, também, que a poesia é brasa /que ainda arde/sobre fogueira fria ...
O poeta, todos os poetas, são doentes da infância. Procuram-na, reinventam-na, mitificam-na , eternizam-na.
Nos versos deste poeta há um jardim de criança a procurar por mim e há, também, os valores morais que fizeram o Ocidente. Mas o que fica, é a interrogação deixada pela Mãe :
- Carlitos, onde estás? -

Carlos Carranca

Prefácio ao livro de Carlos Couceiro “Sei imensamente Nada sobre o Universo…mas Sei”, edição de autor, 2006.

A Rendição da Académica

Por isto não prescindo de sonhar
Convosco outro jogo outra harmonia."
Excerto do poema — "Académica" de C. Carranca

Por esse país fora, sempre que se fala da Académica, há os que dizem "é o meu segundo clube". Outros fazem referência ao seu património e todos, ou quase todos, manifestam simpatia pelo emblema que marcou a diferença no futebol português.
O valor da Académica, a sua riqueza, estava toda ela nas diferenças de comportamento cívico e desportivo e na sua dimen¬são formadora.
Num texto intitulado A Académica já não existe, publicado a 2 de Outubro de 2004, no Diário de Coimbra, e que pela primeira vez trouxe à discussão a problemática da venda dos princípios da Académica — porque hoje o que está em causa é a rendição total aos mercadores de atletas futebolistas — afirmei que a Briosa hoje, "sem chama, sem estudantes, sem futuro, mas com muitos empresários, é do futebol que há: rompeu com a memória."
É sabido que a Académica, ao longo dos tempos, criou uma maneira própria, original, de estar no futebol, que contraria em absoluto este dirigismo sem escrúpulos que marca a realidade nacional.
Levado pela realidade que a nossos olhos se agiganta, repito o que afirmei a 26 de Novembro de 2004, no mesmo jornal, num texto intitulado Académica — a poética do futebol: "O conformismo das massas que se resignam é a imagem da perfeição do futebol — espectáculo que nos vai condu¬zindo para um beco sem saída, onde a ine-vitabilidade das leis de mercado, qual fim da História, nega o futuro como horizonte móvel".
É ancorado na matriz ideológica da Briosa — o futebol como elemento transformador do homem (individual) e da sociedade — que, sem equívocos, manifesto a minha oposição à actual política da Direcção do OAF, que gizou, finalmente, um acordo com a Direcção Geral da AAC, apadrinhado pela Reitoria, e que parecendo de reconciliação com os princípios serve os seus contrários.

Não basta dizer que se está com os estudantes, mesmo quando se obtém o apadrinhamento do Reitor da Universidade de Coimbra.

Os que andam por cá há décadas e têm seguido a Briosa, sabem que o acordo é de rendição da Académica.
Não me parece muito lógico que a direc¬ção dos estudantes aceite contrapartidas hoje que não foram honradas ontem pelo mesmo parceiro. Acrescentando-se que outros factores concorreriam para que, por enquanto, esse entendimento não fosse selado, por muito benéfico que seja.
Tudo leva a crer que o milagre de uma pereira dar uvas não se realize.
Na edição do jornal "A Bola" de 19 de Julho, as conclusões expressas quanto à política de contratações da Académica são claras: "Depois de resistir durante anos à tendência do mercado, a Académica rendeu-se" — que é como quem diz, vendeu-se à lei dos mercadores.

Não descortino na Académica dos empresários e afins, um fio condutor que nos ligue com verdade aos valores do passado projectando-os num futuro que se quer cada vez mais exigente.
A lógica da política e o vírus do negócio arrastaram, tragicamente, o futebol da Académica para o futebol da moda — sem ideias, sem substância, sem coesão.

Com este acordo assinado pelas Académicas, o OAF pretende capitalizar o património moral dos estudantes, a sua força anímica. É pena que a DG se tenha deixado convencer neste negócio. Uma fez bem, outra fez mal.
Este acordo será — o tempo assim o dirá —, um fracasso histórico.

Volto ao que escrevi em Dezembro de 2004, no DG. "Esta gestão do futebol que se pratica traz a marca do capitalismo selvagem que nada tem a ver com o património da Académica." Tenham os jovens sócios e simpatizantes a certeza de que hoje a Aca¬démica em que os vossos pais e avós acreditaram, pela qual gritaram, decorando os nomes dos jogadores, convivendo com eles nos estudos e nas tertúlias, já não existe.
O Presidente do OAF poderá até conse¬guir resultados para a sua empresa, mas será sempre o gestor de uma equipa de futebol de brasileiros, argentinos, colombianos, se-negaleses e turcos que nunca estarão na Académica ao abrigo do Projecto Erasmus, mas única e exclusivamente estarão para ga¬nhar muito dinheiro utilizando-a como placa giratória para mais altos voos, ou como terminus de carreira — nunca serão da Académica pela simples razão que ela deixou de existir.
Num artigo publicado no Jornal de Notícias deste ano e intitulado "Briosa, Académica e a publicidade enganosa", o ar¬ticulista referia: "Na verdade, nos últimos anos temos assistido a uma degradação ga-lopante das suas especificidades e singulari¬dades e mais dia menos dia, a continuar assim, assistiremos ao enterro da sua alma."

O Prof. Manuel Sérgio, meu ilustre cole¬ga na Universidade Lusófona nos anos 96/97, afirmou ao "Centro" de 7 de Junho, em entrevista a Mário Martins, que "A Académica já foi um clube com alma". Todos sabemos que dado o estado actual do futebol e do mundo, tudo se vende, até a alma. Resta-me a ténue esperança que no acordo das Académicas não se tenha repeti¬do o episódio bíblico do prato de lentilhas.

Carlos Carranca
Sócio n.° 704
Retirado do jornal Centro, ano I, nº9, II série, de 2 de Agosto de 2006.

Falta Académica ao OAF

Carlos Carranca ao "Tertúlia”

O poeta Carlos Carranca acaba de editar, agora em prosa, mais um livro. Chama-se "Académica sempre - a poética do futebol" e nele o autor defende o regresso aos valores da velha Briosa.
Carlos Carranca gosta de dizer que "um poeta não tem biografia, tem obra". Mas quem o não conhece, precisa de saber quem ele é. Pois bem: nasceu na Figueira da Foz, há 48 anos, mas rapidamente assentou arraiais em Coimbra.
Aí estudou, nadou e jogou rugby pela Académica. Até que a vida o chamou a Lisboa. Numa primeira vez, não se demorou muito. Regressou, integrou o movimento pela restauração das chamadas tradições académicas, fundou a revista "Coimbra de capa e batina", casou-se e viu nascer o primeiro dos seus dois filhos. Em finais de 81, porém, instalou-se definitivamente em Lisboa, onde acabou por concluir o curso de História iniciado nas margens do Mondego. Mas a sua tese de licenciatura é sobre a destruição da velha Alta coimbrã. Um dos seus primeiros poemas editados em livro, agora cantado por Luís Gois, chama-se "Guitarra de Coimbra". E à cidade dos estudantes volta sempre que pode. "A minha relação com Coimbra é um relação poética", explica Carranca, numa entrevista que tem como pretexto o seu mais recente livro - entre as quase três dezenas que já publicou -, editado este ano pela "Minerva": "Académica sempre - a poética do futebol". Um livro que é sobretudo uma com¬pilação de crónicas publicadas no "Diário de Coimbra", quase todas con¬duzindo à mesma "provocatória" conclusão: "A Académica já não existe". Porquê? "Falta Académica ao Organismo Autónomo de Futebol" (OAF), sus¬tenta o autor.
Tertúlia Académica (TA) - O teu mais recente livro é, no essencial, uma compilação de crónicas escritas entre finais de 2004 e o princípio de 2005. O que é que te levou a escrevê-lo?
Carlos Carranca (CC) - O desencanto total, ao observar que a Académica, que para mim foi, como dizia o Zeca, uma causa - porque sempre esteve para além do futebol e entendeu este como um meio para o aperfeiçoamento do homem e da sociedade -, se colocou ao serviço do seu contrário: dos negócios, da má educação...
TA - Da má educação? ...
CC - Quando o guarda-redes adversário pontapeia a bola e o público grita "filho da p...", isso não tem a ver com Coimbra nem, seguramente, com qual¬quer ideal de uma sociedade mais justa.
TA - Boa parte das crónicas reunidas no livro têm um título bastante polémico, quase diria, provocatório: "A Académica já não existe". Explica-te lá...
CC - A Académica entronca numa maneira de ser e de estar que, para ser apreendida, obriga a um certo enraizamento das pessoas. Não se ama aquilo que não se conhece e a vida aprende-se devagar. Ora, hoje, os jogadores são vistos como elementos descartáveis, a quem nem sequer é dado tempo para conhecerem o que nos distingue, para perceberem a nossa identidade. Quan¬tos brasileiros passaram pela equipa nos últimos três, quatro anos? Creio que mais de 50. A Académica não é isso!
TA - O problema é só esse?
CC - A questão de fundo é: o que é ser da Académica?. Tem de haver uma imagem de marca. Não foi por acaso que o meu livro, em Coimbra, foi apre¬sentado pelo Manuel António, nas instalações da Associação Académica e com a presença do presidente da sua direcção-geral. E que, em Cascais, foi apre¬sentado pelo Mário Wilson.
TA - Outra opinião bastante controversa é acerca do Estádio Cidade de Coimbra: "Afastou os jogadores do seu público, segregou socialmente os adeptos, tornando o espectáculo desportivo inacessível à maioria das bolsas dos portugueses que gostam de futebol, e acentuou a diferença entre os que podem muito, os que podem, os que menos podem, e os que não podem nada". O estádio não devia ter sido feito, é isso?
CC - Daquela forma e naquele sítio, não. Aquele local devia ser um grande espaço de convívio, de festa e de juventude, e não de consumismo. O novo estádio devia ter sido feito numa zona limítrofe - em Taveiro, por exemplo - e "à inglesa", com o público em cima dos jogadores. O que foi construído não é da cidade e, portanto, não é da Académica. Parece que andamos a brincar aos ricos. Ora, como dizia o Torga, "quem quer serviçais, paga-lhes".
TA - Há quem pense que a construção na periferia afasta o público.
CC - Quando foi construído, o Calhabé não era na periferia? Devíamos con¬tinuar no Santa Cruz, que era bem no "centro do meio"?
TA - Acabas praticamente o livro com um poema dedicado ao Manuel António. Qual a razão da escolha?
CC - A Académica está carregada de prosa. O que lhe falta é dimensão poética. O que faz com que a Académica tenha tantos simpatizantes? A imagem da diferença. Os valores, para além do futebol.
TA - A minha pergunta não era sobre a escolha da poesia como forma de expressão. Era acerca da escolha do Manuel António como objecto do poema.
CC - O Manuel António simboliza o que defendo. Felizmente, até ao fim dos anos 60, temos dezenas de exemplos semelhantes. Mas ele é, quer queiramos quer não, o nosso único "Bola de Prata", ainda por cima conquistada numa altura em que se dizia que o trofeu só era acessível a jogadores do Benfica, do Sporting ou do Porto. O Manuel António provou que é possível atingir o má¬ximo desenvolvimento desportivo sem renegar os princípios. Foi um excelente jogador, dignificou a Académica, é um cidadão exemplar, um profissional que, enquanto director do IPO (Instituto Português de Oncologia), coloca o seu saber ao serviço dos outros... É a prova de que há poesia no futebol. A forma como este é gerido é que está ao nível da prosa mais rasca.
TA - Nas últimas eleições para os Corpos Gerentes da Académica - e disso também falas no livro - integraste a candidatura derrotada de Maio de Abreu e participaste activamente na campanha. Que balanço fazes destes primeiros meses da direcção que acabou por ser eleita?
CC - Não me surpreendem. Mantenho todas as críticas que fiz. Falta Académica ao Organismo Autónomo de Futebol. E faltar Académica, no fundo, é isto: falta lucidez para entender que a Académica não existe sem direcção-geral da Associação Académica. Façam lá as regras que entenderem, mas sem o futebol ao serviço dos estudantes, e não com os estudantes ao serviço dos interesses do futebol, a Académica não existe.
TA - És um grande defensor das chamadas tradições académicas: das capas negras, do fado e da guitarra de Coimbra, creio mesmo que da praxe. Mas és, também, tido por um tipo progressista, politicamente cono¬tado com a ala esquerda do PS, membro da Comissão da Honra da can¬didatura presidencial de Manuel Alegre... Para ti, não há aí nenhuma con¬tradição...
CC - Não sou praxista, mas tradição é cultura e um povo sem memória é um povo sem futuro. Além disso, sempre entendi a capa como bandeira da liber¬dade. A Igreja católica queimou "infiéis", mas também salvou "almas". Assim como há monarquias progressistas e repúblicas reaccionárias. O segredo está na utilização que fazemos do património, do que herdámos. A crise académica de 69 fez-se de capa e batina e com o futebol da Académica.

João Mesquita in Tertúlia Académica, ano 4, nº 10, p.14.

sábado, outubro 14, 2006

O HOMEM DIVIDIDO ENTRE O MAR E A TERRA

Do pseudómino do poeta, Torga, tiramos o significado claro da sua ligação à teria natal e à terra, entendida como tellus, mãe primacial, fonte de vida com a qual Torga realiza um verdadeiro «encontro eucarístico». É da terra que nasce a torga, planta silvestre que lhe aviva o nome.
Este relacionamento com a terra, o poeta vai justificá-lo e consolidá-lo evocando a cul¬tura grega e o mito de Anteu: «De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro e mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tama¬nho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida de que os resultados obtidos confirmam a sua veracidade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva» (36).

Filho da Terra, minha mãe amada,
É ela que levanta o lutador caído
Anteu anão,
Toco-lhe o coração,
E ergo-me do chão
Fortalecido.
(Câmara Ardente, p. 77)

Fernão de Magalhães Gonçalves explica-nos o telurismo de Torga. É dele a seguinte afirma¬ção : «O telurismo de Torga não é uma impostura literária. Não é um exercício determinista que tenta meter o tamanho do homem no papel de rebuçado de qualquer ideia que o pense. Tão--pouco é uma determinada fase de evolução da sua obra (...) O telurismo é a consequência directa e necessária do comportamento interior
Diário, xi, 1973, p. 21.
do homem crucificado na dualidade que divide todo o seu pensamento, toda a sua vontade, a selecção visual do seu olhar» (37).
É partindo do conhecimento da sua terra, à de Trás-os-Montes, que Torga percorre o país numa necessidade natural. «Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-la como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e tristezas» (38).
Ele experimenta «um Portugal que começa na rua quinhentista de Miranda do Douro e vem por aí abaixo» (39), um Portugal com «Camilo a descrever paixões negras em Trás-os-Montes, e o Fialho a ceifar searas de sol no Alentejo» (40), um Portugal «radioso e arcaico, lírico e feudal, de. igrejas branca.s (...), de vacas a ruminar o tremoço e o tempo, de virtudes humanas e cívicas à prova de fome e vulcões — um Portu¬gal que se destacou do continente no mar alto,
(;i7) Fernão M. Gonçalves, Sete Meditações sobre Miguel Torga, pp. 78-80.
(38) Diário, v, p. 60.
(39) Diário, viu, p. 57.
(40) Diário, n, p. 28.
e se enrolou sobre si mesmo até juntar as pontas, a fim de coutar a sua lusitanidade» (41). Um Portugal ecuménico que tomou como seu o que viria a ser o princípio fundamental da filosofia vitalista torguiana: «O universal é o local sem paredes» (42).
Miguel Torga assume a dualidade da sua Pátria, dividida entre o apelo do mar e a voz da terra:

Fui ver o mar.
Homem de pólo a pólo, vou
De vez ern quando olhá-lo, enraizar
Em água este Marão que sou.
(Diário, l, p. 143)

Portugal responde ao apelo do mar e parte à descoberta, levado por uma ânsia libertadora,
Foram então as ânsias e os pinhais Transformados em frágeis caravelas Que partiam guiadas por sinais Duma agulha inquieta como elas...
(41) Diário, xi, p. 78.
(42) Ti aço de União, 2.a ecl. revista, 1969, p. 69.

Foram então abraços repetidos
A -Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.
Foram então as velas enfunadas
Por um sopro viril de reacção
As palavras cansadas
Que se ouviram no cais dessa ilusão.

Foram então as horas no convés Do grande sonho que mandava ser Cada homem tão firme .nos seus pés Que a nau tremesse sem ninguém tremer,
(Poemas Ibéricos, «A Largada»)
O homem português foge da terra e perde-se no mar.
O homem lusíada torguiano, é um ser coro ânsias de liberdade, e gestos novos, que encontra no mar o caminho ideal para as suas tendências. Mas vai ser ele (mar) a ensinar-lhe a procurar na terra a libertação desejada,
Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia: Eras um campo macio de lavrar Ou qualquer _ sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
— Nem aumentar nem sufocar o pranto.,.
Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!
Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!
Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!
(Poemas Ibéricos, «Mar»)

Jesus Herrero, esclarece-nos sobre este tema, sintetizando: «É este, afinal, o caracter espe¬cífico do povo português: ter tomado somente por bússola a fantasia ante o mistério do mar, símbolo permanente da vida» (43).
(43) Miguel Torga, Poeta Ibérico, p. 176. 52

Retirado da obra “Torga O Português do Mundo” da Coimbra editora, 1988, pp 47-52.