O Portugal dos Políticos no Diário XVI de Miguel Torga
(parte III)
Outros foram os episódios com implicações nacionais que marcaram os últimos anos de vida, amargurada, do poeta. Por exemplo, Maastricht.
Coimbra, 11 de Maio de 1992 - (...) Tenho como certo que Maastricht há-de ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. Só que as grandes potências podem dar-se ao luxo de todos os jogos malabares e safadezas, e assinar até tratados ardilosos com abdicações aparentes da sua identidade. E as pequenas, não. Se, por leviandade ou megalomania, arriscam um mau passo no caminho da independência, perdem-na de vez. Que é, infelizmente, o que, se o destino nos não acudir com um milagre, nos vai acontecer.
Um ano depois, a 1 de Novembro, regista de novo no seu “Diário”:
Entrada em vigor da União Europeia, eufemismo encontrado para nomear o negregado Tratado de Maastricht. Lá estamos, atentos à batuta do novo Bismark impante que tudo vai poder e dominar do seu teutónico quartel monetário. Lá estamos, infelizmente, na condição de humildes súbditos agradecidos, sem autonomia e sem voz, a beber champanhe comprometidamente, como parentes pobres numa boda de nababos, e a estender a mão ávida, a pedir mais dinheiro para comprar votos. E o ricaço, e os parceiros incautos que arregimentou, prodigamente, abrem os cordões à bolsa. Quem quer bons serviçais, paga-lhes.
Como remate para este tema da Europa e do Tratado de Maastricht, recorro, de novo, à carta que Miguel Torga dirigiu a Mário Soares, em Maio de 1994, e que diz:
(…) é pena que o seu medular optimismo doire sempre as conclusões de cada arrazoado. Refiro-me concretamente às idílicas considerações com que remata todas as referências à Europa. Eu também sou, e com desvanecimento, europeu. Mas disse um dia destes a um jornalista do “Le Monde” que só o era com significação se continuasse a ser plenamente português. Desculpe lembrar-lhe esta nossa velha divergência, infelizmente irremediável, que só trago à colação por descargo de consciência. Não há, nem haverá num futuro previsível, outra Europa senão esta malfadada do capitalismo insaciável e tentacular.
Quanto à abolição de fronteiras e consequente livre circulação de pessoas e de bens, Torga deixa registado, a 2 de Janeiro de 1993:
(...) Ocupados sem resistência e sem dor. Anestesiados previamente pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira.
A ternura que sempre manifestou pela sua segunda pátria, o Brasil, deixa-a agora numa crua reflexão, datada de 6 de Fevereiro de 1993 (em Coimbra):
Até esta desgraça agora nos acontece! As nossas relações fraternas com o Brasil comprometidas por leviandade governativa e imperativo comunitário. Quem contratou a submissão nacional às ordens de Bruxelas esqueceu-se de especificar que a carta de Pêro Vaz de Caminha de quinhentos é um juramento português de amor e fidelidade eternos à Terra de Santa Cruz e à sua gente.
Quanto a Angola, as suas preocupações redobram, porque sabe que quinhentos anos de incompreensão racial serão incapazes de produzir uma pátria capaz. da fraternidade, onde o futuro faça ouvir o seu cântico.
Coimbra, 20 de Fevereiro de 1993 - Angola continua a ferro e fogo. Os dois tribalismos, o oficial e o rebelde, combatem-se numa luta de morte. Não realizámos ali, infelizmente, o milagre brasileiro da fraternidade racial e nacional. Deixámos as populações na primitiva decência da selva, à mercê da avidez e rivalidade das grandes potências, sem pátria, sem civismo e sem amor aos irmãos de raça e de berço. E agora a nada podemos acudir com os panos quentes da nossa diplomacia de muitas palavras e escassos meios.
Torga, enquanto se despede da vida, vai pondo as contas em dia com a política nacional, para que não haja equívocos.
Coimbra, 16 de Maio de 1993 - Continua o tráfego de consciências na feira política nacional. Compram-se e vendem-se convicções por todos os preços. Os jornais denunciam, o povo comenta, mas no dia seguinte chega a notícia de nova transacção. Depois de quase meio século de ditadura, o país, mal refeito do pesadelo passado, agoniza sob nova opressão, ainda mais tenebrosa. A arbitrariedade e a perversão policial de outrora deram lugar ao terrorismo de Estado. Agora, são os legitimados detentores do poder que oprimem e perseguem. A peitar sem rebuço os cidadãos venais, ou a talar discricionariamente o território dos legítimos interesses dos outros, é que condicionam os limites da nossa liberdade.
Quanto à nossa velha aliança com o Reino Unido, Torga produz um comentário, em jeito de balanço, redigido durante a sua estada nas termas de Chaves.
Chaves, 31 de Agosto de 1993 - O Primeiro-ministro britânico veio passar as férias ao Doiro, nas quintas de um patrício. Tem comido bem, bebido melhor e passeado. Até figos vindimos provou e saboreou, dizem os jornais. Os nossos velhos donos dão, como sempre, sinal na hora própria. O melhor de tudo o que temos, culinária, paisagem, conforto, mar, sol e cordialidade, já estava ao seu serviço no Algarve. Faltava o Doiro. Depois de feitoria de rapina, promovido também, na cara de quem nele consome a vida e a esperança a trabalhar de sol a sol para meia dúzia de vorazes e adventícios patrões, a éden de lazeres. E começa agora. O coitado do Forrester, ao menos, desenhava mapas bonitos da região, que explorava como bom comerciante, e saldou-lhe a dívida de parasita afogado no Cachão da Valeira ao peso dos dobrões. Este barão actual espaireceu num rabelo motorizado, sem risco e sem passaporte restritivo, apenas com licença magnânima da C.E.E., que lhe disse sim, que aproveitasse, que isto agora é baldio, comunitário, multinacional, e deles, ingleses, com particular direito. Em que feliz dia futuro a "chaga do lado de Portugal", que desde a infância me obsidia, deixará de sangrar?
Segue se um outro comentário, também ele proferido de Chaves, sobre os nossos irmãos espanhóis.
Chaves, 3 de Setembro de 1993 - (...) A tese de Franco na escola militar foi a ocupação desta faixa ocidental em poucas horas. E a da generalidade dos demais espanhóis, mesmo civis, é indisfarçadamente a mesma. No rótulo de uma caixa de melões que me mostraram há dias, vinha escrito: Origem - Espanha. Região - Portugal. Para todos os nossos vizinhos, somos independentes, sim, mas provisoriamente, enquanto os iluminados governantes que temos não acabem de abrir mãos dos nossos últimos trunfos nacionais, e um outro Filipe II nos integre submissos no grande redil peninsular, desta vez sem necessidade de herdar, de comprar e de conquistar o rectângulo rebelde. Recebe-o gratuitamente de bandeja.
A dimensão humanista de Torga vem à tona sempre que a cultura - a sua e a dos outros - entra em confronto fraterno, procurando o sentido do mundo, da vida e da existência.
Coimbra, 5 de Outubro de 1993 - Almoço chinês e sobremesa de música sacra portuguesa do século XVI, sepultada até há pouco num arquivo de Évora. Nem tudo é praça de Tienamen e orelheira de porco neste mundo. Há muitos bens dele por descobrir e saborear. Mesmo aos oitenta e seis anos, é preciso recapitular lições mal sabidas de cultura geral e nacional. A comer, a ouvir, ou doutras humanas maneiras.
Mas, de novo, regressa o desalento.
Coimbra, 31 de Outubro de 1993 - Estamos irremediavelmente perdidos. E já ninguém o ignora e cala. É um clamor uníssono que vai do Minho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não ouve, ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. (...)
Como um cilício, continua:
Coimbra, 8 de Novembro de 1993 - (...) Que, apesar de o país estar já, de facto, não só económica, mas até territorialmente alienado - praias algarvias, herdades alentejanas, aldeias da Beira, quintas do Doiro e do Minho em mãos alheias -, é tal o nosso poder de absorção que todos os estrangeiros que se fixam entre nós acabam por se portugalizar, a ponto de em muitos casos se tornarem mais papistas do que o Papa na defesa do património cultural degradado que nos resta, a recuperá-lo. (...) Pátria nova de muitos sangues adventícios nas poucas veias lusitanas, sem memória da velha. Sem África, sem América, sem Ásia, sem Oceania. Europa, apenas, a soletrar a custo Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões e padre António Vieira. Talvez mais prática, lógica e rica, mas infinitamente menos cordial, lírica, sonhadora e singular. E tragicamente ausente da história gloriosa da humanidade.
Estas duas citações inscrevem-se numa perspectiva pessimista, dirão alguns - outros dirão realista. Apenas acrescentarei “torguiana” no destino que, infelizmente, se encarregará de o confirmar.
Um distintíssimo político da nossa praça contactou Torga na esperança de que o poeta servisse de fiador dos seus propósitos políticos. O dia era o de 1 de Dezembro de 1993.
(...) O dia era de conjurados. De humilhações que se revoltaram e sacudiram o jugo estrangeiro, de ânimos impacientes e combativos. E nem isso pesava nas respostas frouxas e evasivas que vinham do outro lado do fio. E a conversa teve este triste remate:
- Vejo que está muito pessimista.
- Estou. Infelizmente. Não acredito em nenhum de vocês. Não são quentes, nem frios. E, se leu o “Apocalipse”, sabe que até Deus vomita os mornos.
Numa sociedade cada vez mais desumanizada, sem alma nem sentido de justiça, dirigida por tecnocratas que, como um dia afirmou João Palma-Ferreira, "organizaram cientificamente a estupidez", diante de um Estado em que o cidadão não é mais do que um número com o nome acoplado, apostado em governar numa lógica ultraliberal onde o capitalismo regressa à sua forma original, isto é, à lei do mais forte, ler Torga é, de novo, ser do futuro, reconciliando-nos com a Pátria, ansiando a Frátria - o lugar onde o poeta habita.
(*) - Professor auxiliar convidado da Universidade Lusófona de Lisboa. Autor das obras “Torga, o português do Mundo” (1988); “Miguel Torga e a África Portuguesa” (1995); “Torga, o bicho religioso” (2000); “A nostalgia de Deus ou a palavra perdida em Miguel Torga” (2001); “O sentimento religioso em Torga e em Unamuno” (2002).
(parte III)
Outros foram os episódios com implicações nacionais que marcaram os últimos anos de vida, amargurada, do poeta. Por exemplo, Maastricht.
Coimbra, 11 de Maio de 1992 - (...) Tenho como certo que Maastricht há-de ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. Só que as grandes potências podem dar-se ao luxo de todos os jogos malabares e safadezas, e assinar até tratados ardilosos com abdicações aparentes da sua identidade. E as pequenas, não. Se, por leviandade ou megalomania, arriscam um mau passo no caminho da independência, perdem-na de vez. Que é, infelizmente, o que, se o destino nos não acudir com um milagre, nos vai acontecer.
Um ano depois, a 1 de Novembro, regista de novo no seu “Diário”:
Entrada em vigor da União Europeia, eufemismo encontrado para nomear o negregado Tratado de Maastricht. Lá estamos, atentos à batuta do novo Bismark impante que tudo vai poder e dominar do seu teutónico quartel monetário. Lá estamos, infelizmente, na condição de humildes súbditos agradecidos, sem autonomia e sem voz, a beber champanhe comprometidamente, como parentes pobres numa boda de nababos, e a estender a mão ávida, a pedir mais dinheiro para comprar votos. E o ricaço, e os parceiros incautos que arregimentou, prodigamente, abrem os cordões à bolsa. Quem quer bons serviçais, paga-lhes.
Como remate para este tema da Europa e do Tratado de Maastricht, recorro, de novo, à carta que Miguel Torga dirigiu a Mário Soares, em Maio de 1994, e que diz:
(…) é pena que o seu medular optimismo doire sempre as conclusões de cada arrazoado. Refiro-me concretamente às idílicas considerações com que remata todas as referências à Europa. Eu também sou, e com desvanecimento, europeu. Mas disse um dia destes a um jornalista do “Le Monde” que só o era com significação se continuasse a ser plenamente português. Desculpe lembrar-lhe esta nossa velha divergência, infelizmente irremediável, que só trago à colação por descargo de consciência. Não há, nem haverá num futuro previsível, outra Europa senão esta malfadada do capitalismo insaciável e tentacular.
Quanto à abolição de fronteiras e consequente livre circulação de pessoas e de bens, Torga deixa registado, a 2 de Janeiro de 1993:
(...) Ocupados sem resistência e sem dor. Anestesiados previamente pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira.
A ternura que sempre manifestou pela sua segunda pátria, o Brasil, deixa-a agora numa crua reflexão, datada de 6 de Fevereiro de 1993 (em Coimbra):
Até esta desgraça agora nos acontece! As nossas relações fraternas com o Brasil comprometidas por leviandade governativa e imperativo comunitário. Quem contratou a submissão nacional às ordens de Bruxelas esqueceu-se de especificar que a carta de Pêro Vaz de Caminha de quinhentos é um juramento português de amor e fidelidade eternos à Terra de Santa Cruz e à sua gente.
Quanto a Angola, as suas preocupações redobram, porque sabe que quinhentos anos de incompreensão racial serão incapazes de produzir uma pátria capaz. da fraternidade, onde o futuro faça ouvir o seu cântico.
Coimbra, 20 de Fevereiro de 1993 - Angola continua a ferro e fogo. Os dois tribalismos, o oficial e o rebelde, combatem-se numa luta de morte. Não realizámos ali, infelizmente, o milagre brasileiro da fraternidade racial e nacional. Deixámos as populações na primitiva decência da selva, à mercê da avidez e rivalidade das grandes potências, sem pátria, sem civismo e sem amor aos irmãos de raça e de berço. E agora a nada podemos acudir com os panos quentes da nossa diplomacia de muitas palavras e escassos meios.
Torga, enquanto se despede da vida, vai pondo as contas em dia com a política nacional, para que não haja equívocos.
Coimbra, 16 de Maio de 1993 - Continua o tráfego de consciências na feira política nacional. Compram-se e vendem-se convicções por todos os preços. Os jornais denunciam, o povo comenta, mas no dia seguinte chega a notícia de nova transacção. Depois de quase meio século de ditadura, o país, mal refeito do pesadelo passado, agoniza sob nova opressão, ainda mais tenebrosa. A arbitrariedade e a perversão policial de outrora deram lugar ao terrorismo de Estado. Agora, são os legitimados detentores do poder que oprimem e perseguem. A peitar sem rebuço os cidadãos venais, ou a talar discricionariamente o território dos legítimos interesses dos outros, é que condicionam os limites da nossa liberdade.
Quanto à nossa velha aliança com o Reino Unido, Torga produz um comentário, em jeito de balanço, redigido durante a sua estada nas termas de Chaves.
Chaves, 31 de Agosto de 1993 - O Primeiro-ministro britânico veio passar as férias ao Doiro, nas quintas de um patrício. Tem comido bem, bebido melhor e passeado. Até figos vindimos provou e saboreou, dizem os jornais. Os nossos velhos donos dão, como sempre, sinal na hora própria. O melhor de tudo o que temos, culinária, paisagem, conforto, mar, sol e cordialidade, já estava ao seu serviço no Algarve. Faltava o Doiro. Depois de feitoria de rapina, promovido também, na cara de quem nele consome a vida e a esperança a trabalhar de sol a sol para meia dúzia de vorazes e adventícios patrões, a éden de lazeres. E começa agora. O coitado do Forrester, ao menos, desenhava mapas bonitos da região, que explorava como bom comerciante, e saldou-lhe a dívida de parasita afogado no Cachão da Valeira ao peso dos dobrões. Este barão actual espaireceu num rabelo motorizado, sem risco e sem passaporte restritivo, apenas com licença magnânima da C.E.E., que lhe disse sim, que aproveitasse, que isto agora é baldio, comunitário, multinacional, e deles, ingleses, com particular direito. Em que feliz dia futuro a "chaga do lado de Portugal", que desde a infância me obsidia, deixará de sangrar?
Segue se um outro comentário, também ele proferido de Chaves, sobre os nossos irmãos espanhóis.
Chaves, 3 de Setembro de 1993 - (...) A tese de Franco na escola militar foi a ocupação desta faixa ocidental em poucas horas. E a da generalidade dos demais espanhóis, mesmo civis, é indisfarçadamente a mesma. No rótulo de uma caixa de melões que me mostraram há dias, vinha escrito: Origem - Espanha. Região - Portugal. Para todos os nossos vizinhos, somos independentes, sim, mas provisoriamente, enquanto os iluminados governantes que temos não acabem de abrir mãos dos nossos últimos trunfos nacionais, e um outro Filipe II nos integre submissos no grande redil peninsular, desta vez sem necessidade de herdar, de comprar e de conquistar o rectângulo rebelde. Recebe-o gratuitamente de bandeja.
A dimensão humanista de Torga vem à tona sempre que a cultura - a sua e a dos outros - entra em confronto fraterno, procurando o sentido do mundo, da vida e da existência.
Coimbra, 5 de Outubro de 1993 - Almoço chinês e sobremesa de música sacra portuguesa do século XVI, sepultada até há pouco num arquivo de Évora. Nem tudo é praça de Tienamen e orelheira de porco neste mundo. Há muitos bens dele por descobrir e saborear. Mesmo aos oitenta e seis anos, é preciso recapitular lições mal sabidas de cultura geral e nacional. A comer, a ouvir, ou doutras humanas maneiras.
Mas, de novo, regressa o desalento.
Coimbra, 31 de Outubro de 1993 - Estamos irremediavelmente perdidos. E já ninguém o ignora e cala. É um clamor uníssono que vai do Minho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não ouve, ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. (...)
Como um cilício, continua:
Coimbra, 8 de Novembro de 1993 - (...) Que, apesar de o país estar já, de facto, não só económica, mas até territorialmente alienado - praias algarvias, herdades alentejanas, aldeias da Beira, quintas do Doiro e do Minho em mãos alheias -, é tal o nosso poder de absorção que todos os estrangeiros que se fixam entre nós acabam por se portugalizar, a ponto de em muitos casos se tornarem mais papistas do que o Papa na defesa do património cultural degradado que nos resta, a recuperá-lo. (...) Pátria nova de muitos sangues adventícios nas poucas veias lusitanas, sem memória da velha. Sem África, sem América, sem Ásia, sem Oceania. Europa, apenas, a soletrar a custo Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões e padre António Vieira. Talvez mais prática, lógica e rica, mas infinitamente menos cordial, lírica, sonhadora e singular. E tragicamente ausente da história gloriosa da humanidade.
Estas duas citações inscrevem-se numa perspectiva pessimista, dirão alguns - outros dirão realista. Apenas acrescentarei “torguiana” no destino que, infelizmente, se encarregará de o confirmar.
Um distintíssimo político da nossa praça contactou Torga na esperança de que o poeta servisse de fiador dos seus propósitos políticos. O dia era o de 1 de Dezembro de 1993.
(...) O dia era de conjurados. De humilhações que se revoltaram e sacudiram o jugo estrangeiro, de ânimos impacientes e combativos. E nem isso pesava nas respostas frouxas e evasivas que vinham do outro lado do fio. E a conversa teve este triste remate:
- Vejo que está muito pessimista.
- Estou. Infelizmente. Não acredito em nenhum de vocês. Não são quentes, nem frios. E, se leu o “Apocalipse”, sabe que até Deus vomita os mornos.
Numa sociedade cada vez mais desumanizada, sem alma nem sentido de justiça, dirigida por tecnocratas que, como um dia afirmou João Palma-Ferreira, "organizaram cientificamente a estupidez", diante de um Estado em que o cidadão não é mais do que um número com o nome acoplado, apostado em governar numa lógica ultraliberal onde o capitalismo regressa à sua forma original, isto é, à lei do mais forte, ler Torga é, de novo, ser do futuro, reconciliando-nos com a Pátria, ansiando a Frátria - o lugar onde o poeta habita.
(*) - Professor auxiliar convidado da Universidade Lusófona de Lisboa. Autor das obras “Torga, o português do Mundo” (1988); “Miguel Torga e a África Portuguesa” (1995); “Torga, o bicho religioso” (2000); “A nostalgia de Deus ou a palavra perdida em Miguel Torga” (2001); “O sentimento religioso em Torga e em Unamuno” (2002).
2 Comments:
Caro Amigo,
Bem oportuna esta chamada do Torga e do seu pensamento sobre os Políticos.
Faltam, hoje, vozes autorizadas, eticamente intocadas, como a da Torga, para zurzir em tanta mediocridade política que nos mal governa.
Conviria também falar do Iberismo de Torga, para dissipar equívocos, alguns até, infelizmente, vindos de cabeças nobelizadas.
Porque não fazê-lo aqui?
Um abraço de saudação e de agradecimento.
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2017.7.24
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