sábado, fevereiro 10, 2007

O DIREITO À INDIGNAÇÃO*


Escrever para quê? Quando sei que vou ser lido, a correr, por meia dúzia de amigos e poucos concordarão comigo.
Sei também que por mais que façamos para que nos levem a sério, o nosso tempo, o tempo em que habitamos, encarregar-se-á de nos levar de empurrão por um qualquer lugar que não é o nosso, onde desempenharemos um papel que os outros destinaram sem terem em conta o actor. O que é preciso é que aconteça. E muitas coisas vão acontecendo neste País...
A insegurança e a instabilidade de que tudo dá provas tem vindo a condicionar o comportamento social, levando a relações de verdadeira promiscuidade, onde os valores e a dignidade são simplesmente ignorados.
Tenho para mim que, remetidas as ideologias para um lugar subalterno, direi mesmo, insignificante, são os interesses económicos, ou simplesmente os interesses, que comandam.
Dificilmente nos revemos em algumas manifestações públi­cas de homenagem a cidadãos que sinceramente admiramos quan­do sobre ela paira a sombra da ignomínia.
Não cairei no erro grosseiro de confundir os papéis nem os actores.
Na hora de fazer apelo às reservas humanas e morais da Nação há que saber homenagear os seus filhos mais ilustres.
Miguel Torga, mais uma vez, foi alvo de homenagem. Esta,
prestada pelo Montepio Geral, proprietário do edifício onde se encontrava, no primeiro andar, o humilde consultório do médico otorrinolaringologista, Adolfo Rocha (Miguel Torga).
Foram várias e ilustres as personalidades que em acto públi­co ao criador de «Bichos» não regatearam encómios.
Entre eles António Arnaut, seu amigo dedicado que durante décadas partilhou com o poeta o sonho socialista «ao serviço desse povo verdadeiro que queremos servir»1) e José Mattoso, que definiu o poeta como «Um modelo privilegiado da construção da identidade nacional».
Mas no bom pano cai a nódoa e, segundo relato do Público de 24 de Outubro, o Senhor Presidente do Conselho de Administração, do Montepio Geral, Dr. António da Costa Leal, terá afirmado, referindo-se ao comentário de Torga incluído no Vol. XVI do Diário e datado de 20 de Maio de 92, que este era resultado da «perturbação do poeta em alturas menos felizes da sua vida». Para que se saiba, reproduzo, na íntegra, a nota do Diário:
- Visita fúnebre de dois administradores do banco, meu senhorio do consultório. Querem-me na rua, para fazer obras no prédio e aumentar o rendimento. Pareciam fantasmas agoirentos a anunciar-me ainda em vida o meu enterro e o meu passado. O capitalismo é assim: não hesita, nem mesmo diante dum leito de sofrimento. E lá os ouvi de coração alanceado, a argumentar com a gaguez do espanto vencido. No fim da entrevista, em que levaram a melhor, apeteceu-me chorar de desespero. Naquele velho refúgio que vai ser demolido e remodelado, estão muradas a minha vida e outras vidas. Das duas janelas que lhe davam luz, perspectivei durante meio século o mundo e as tragédias dele. Ali enxuguei muitas lágrimas, resisti a muitas tentações, remediei até onde pude erros da natureza, ouvi as mais íntimas confidências, sonhei, acudi a muitas aflições, dei o melhor de mim. E ali ia ser argamassado e estucado convenientemente para sempre o esque­cimento.
Com data de 8 de Junho do mesmo ano, Miguel Torga volta a referir-se ao seu consultório do Largo da Portagem:
"Desfiz-me do consultório. Mil circunstâncias adversas con­jugaram-se encarniçadamente nesse sentido. E adeus meu velho reduto, onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta. Ofereci o material cirúrgico ao hospital da Misericórdia em que durante anos operei, e o mobiliário à Junta de Freguesia de S. Maninho. E fiquei naquelas salas vazias vazio como elas. Sem passado, sem presente e sem futuro, com a minha própria vida abolida no tempo. À medida que os carregadores iam reti­rando o espólio, tinha a sensação de que estava a ser descarna­do, a tornar-me humanamente espectral. No fim, estonteado, com o chão a fugir-me debaixo dos pés, sem um banco sequer para me sentar, ainda o telefone tocou. Do lado de lá do fio pediam-me que juntasse aos despojos a tabuleta. Respondi que sim, que ia ser arrancada e seguiria. E perguntei, de voz estrangulada, se que­riam que mandasse também o meu cadáver. "
Resta-nos viver o presente? É pouco.

1) Excerto do discurso proferido no primeiro comício socialista em Coimbra, presidido por Miguel Torga em 1/06/74.

* Jornal de Coimbra, 12 de Novembro, 97