domingo, junho 17, 2007

EM BUSCA DA PUREZA ORIGINAL

“Hei saudades de mim, doutro que fui – menino”2

Teixeira de Pascoaes

O Regresso à Velha Casa

Como já foi referido, a explosão criativa de Pascoaes dá-se aos dezassete anos (é a altura em que o medo da mãe se converte em medo da mulher e nos leva, ou à homossexualidade, ou à criação artística, materializada a mãe sob uma forma não ameaçadora para o Autor) e a partir daí percorrerá todos os caminhos que o levarão junto da pureza original - o verbo (é o avatar do homem sem sexo).
O ambiente bucólico da infância, a ternura edipiana, o período da adolescência em que a criatividade constitui uma das principais características, tê-lo-ão levado à descoberta do seu mundo. E lá foi tocando as coisas proíbidas, interditas ao comum dos mortais - criando, revelando mistérios, os da natureza. Pela vida irá alargando o fosso do seu mundo do dos homens.
A contemplação do intemporal, a descoberta do mistério das coisas vão-se tornar auxiliares desse seu acto romântico de existir. Em Verbo Escuro dirá:
«Poetas cantai os fantasmas; quero eu dizer, o
que é eterno...
Cantai o que não existe: o resto é cinza»
Em As Sombras escreve:
«Eis-me graças à vida, uma vez mais
No vale onde nasci; à sombra amiga
Destas velhas árvores espectrais,
Minhas irmãs em Deus...».
Poeta intuitivo, libertário, panteísta, cristão, comunista, vai juntar na sua obra os elementos bíblicos e mitológicos.
Escreve como quem obedece a uma força que está para além de si.
O Poeta, para realizar O Fantasma, vai ser obrigado a fundi-lo com a terra, projectando-se imagem da lembrança dos tempos de menino (a da mãe já perdida, a da infância) sobre o espaço da velha casa - o Solar de Pascoaes.
Transforma a palavra em objecto tornando-a Fantasma. Melhor: ele transforma-se em Palavra (Verbo), forma assexuada de Homem. A paisagem da infância permanecerá em toda a sua pureza e é a ela que o Poeta, cansado das lides po(etico) líticas, regressará.
«Eu que fui um anjo sem o saber, sou agora um demónio que se conhece. Decaí, entrei na posse de mim mesmo. Vejo-me num espelho. Vejo, enfim, o meu retrato. Sou eu... que tristeza» (Livro de Memórias).
Regressado, para sempre, a casa dos seus Avós, abandona a carreira jurídica (a conselho de seu Pai) e entrega-se, por inteiro, à sua obra.
«Nesta velha casa, no meio desta paisagem materna, o que há de banal no meu ser, desa¬parece, toma a infinita seriedade das coisas que mostram o vulto escuro, ao doirado riso do Sol.» (Verbo Escuro).

Poeta das Sombras


Na casa da sua infância, o poeta regressa ao Paraíso, a si - «sou poeta, quando as coisas me enternecem» - casa a que chama «lágrimas com salas e janelas» ou «fonte do meu ser que vai chorando até formar a onda que hoje sou».
As sombras são a face misteriosa das coisas.
As sombras são a expressão de um místico que nelas vê a sombra de Deus:
«Esta sombra infinita em que me afundo E à qual tentei dar forma, vida e cor, E o princípio da terra e o fim do mundo, A projecção espiritual das coisas...
Sombra do nosso corpo e nosso espírito! Sombra que se enraíza nas origens E vale subindo em haste, e já floresce Em altos céos anímicos e virgens.
Sombra que no Passado se projecta,
E é gélida penumbra! E ao mesmo tempo
Sobre o Futuro é sonho de Profeta?
É límpida e amorosa consciência.

Ó sagrado momento repentino,
Em que a podre Matéria transitória,
Voando em claro espírito divino.
Se vê liberta e viva e semprieterna!

Ó instante sagrado em que perpassa,
Lá na distância espiritual dos céus.
E mais do nosso olhar, etérea sombra,
Apenas um crepúsculo de Deus!

Rumor de sombra ideal de Deus!
Perturbação divina!
Alto rumor
Que me beijaste em pleno coração,
O qual em verso pobre e comovido,
Em troca te quis dar sua emoção,
A sua própria vida e próprio corpo...» (
«A Última Sombra», in As Sombras)

Heróis e Santos

Os heróis e os santos correspondem a uma fase da produção «poética» de Teixeira de Pascoaes. Apaixona-se pela «biografia» e vai, na sequência da sua obra, continuar a criar mitos, fantasmas que vão levar a Igreja Católica a insurgir-se contra o seu São Paulo.
O São Paulo, como é fácil concluir, nada tem a ver com o santo da Igreja Católica. E uma figura criada pelo Poeta, um mito saído da sua caneta: uma livre interpretação, alguém que «humanizou Deus absolutamente».
Pascoaes afirma no livro que «à força de ser homem é que Jesus alcança a divindade, é que Deus é Deus.» (São Paulo),
E um São Paulo carregado de subjectividade, demasiadamente romântico, representando para o Poeta um exemplo acabado de sublimação.
Recorrendo à interpretação de Fernandes da Fonseca somos levados a concluir que «o poeta soube como ninguém encontrar entre essa figura ímpar do cristianismo e o mito da Saudade (dessa força vital que estabelece a simbiose entre o nosso passado e o nosso futuro) uma relação íntima e transcendental, susceptível de pôr em evidência o sagrado de toda a natureza» (Psicologia e Criatividade),
Publica outras biografias:
São Jerónimo, Napoleão, O Penitente (Camilo Castelo Branco), Santo Agostinho, e todas elas servirão para reforçar a realidade pascoaliana, que não é a que se vê, mas a que se sente.

O Velho e a Criança (a criança velha e a nova criança)

Pascoaes terá sido «vítima» da sua extrema sensibilidade, logo nos primeiros anos de vida. Ao invés das demais crianças que se perdiam em brincadeiras próprias das suas idades, ele, como já referimos, imaginava procissões, organizava-as e dirigia-as. Pedia que o crucificassem e, muito atento, ouvia as velhas estórias que o terão ajudado a criar o mundo de fantasmas - estórias da criada Lucrécia com almas penadas...
«Reflexos de labaredas avermelham-te as maçãs do rosto salientes; e as faúlhas apagadas davam um tom grisalho às três ripas sujas de cabelo que nunca te embranqueceram» (Livro de Memórias) - assim evocara o Poeta a sua tecedeira de sonhos.
Os adultos, os das relações de seus pais, provocavam-lhe um enorme mal-estar, levando-o a refugiar-se na solidão dos montes.
João dos Santos em Eu Agora Quero-me Ir Embora, livro extraído de um programa da rádio e realizado em parceria com João Sousa Monteiro, diz a páginas tantas que «...é mais importante o que se é do que o cjue se sabe» e Pascoaes havia escrito muito tempo antes: «...porque o supremo crime é na verdade ser».
O Poeta começara bem cedo a ser. A sua fobia para com a escola é bem o espelho do relaciona¬mento incapaz de identificação de dois mundos antagónicos. Um ideal, sensível e aberto (o do poeta), o outro - a escola - limitado, dogmático e
castrador.
O Poder Social, que já o havia ajudado a tornar-se sisudo e cabisbaixo, vai-se tornando cada vez mais ostensivo - a instituição escolar.
Este poder que Pascoaes associava à imagem do Pai é contrário à força que dominava os seres e as coisas e que é de essência materna - a Natureza. Era ela a sua segunda mãe, e onde se sentia naturalmente bem.
Em Pascoaes o processo de maturação do Eu deu-se sem nunca ter perdido o suporte da relação primária, sublimando a mãe, que continuará nas suas características fantasmáticas.
A mãe foi na vida um fantasma de carne e osso que amou com verdadeira devoção - mãe calma e doce, a síntese da paz do poeta.
De entre as paixões de Teixeira de Pascoaes nascidas já em idade avançada, contam-se as que nutriu pela sobrinha-afilhada Maria José, a «Zézinha» e pela «Adelaidinha», a maior de todas, a derradeira, esta filha de uns caseiros da quinta.
A esta criança, escreverá no testamento «deve ao amor que lhe consagra os últimos lampejos da sua inspiração» (in Teixeira de Pascoaes de Mário Garcia).
Mas se o amor de um velho por uma criança não tem nada de espantar, este, particularmente, deverá ser observado com os olhos do espirito, para podermos penetrar fundo no amor que o agora velho Poeta dedicou à Vida, a tudo o que era puro, natural, infantil.
Pascoaes havia proclamado aos sete ventos que «ser ingénuo, ser ingénuo...é ser» e esta verdade que perseguiu talvez seja a chave do segredo da sua vida.
A ingenuidade da infância que procurará perpetuamente, a sua incapacidade de se afastar das raízes, condicionaram o seu trajecto poético que, por ser autêntico, encontrou no tempo encantado iln infância, em Gatão, o útero, a mãe. Nunca se afastará dela e não deixará de a nomear, mesmo quando projectada em seres e coisas - imagens da infância. Eterna criança procurará sempre a deusa, a mãe; a infância, a saudade... A seus olhos todas eram puras, louras, brancas como a neve do Marão, e o que lhe importava era recordar a amar, amar a recordar.
Maria do Carvalhal, a propósito da dedicação de seu tio à afilhada, esclarece:
«Ele que estava na máxima força e juventude espiritual, quando o viam com a pequena e o cortejo da família atrás, julgavam-no enfraquecido do espírito - nunca nenhum espírito esteve tão forte e esplendoroso, porque ninguém amou tão totalmente!
A humanidade vê sempre o ridículo no sub¬lime.» (Pascoaes).
Em plena fixação amorosa, Pascoaes sofre um rude golpe. Sua mãe morre a três de Fevereiro de 1952.
A sobrinha-afilhada do Poeta, Maria José Teixeira de Vasconcelos, é quem, na revista Vértice de Março de 1953, nos conta que sua avó, no leito da morte, terá dito ao Poeta, numa última confissão, como quem pede desculpa: «Já não posso viver mais !» Após uma vida longa, de mais de noventa e seis anos, extinguia-se para sempre a luz que ilu¬minara o poeta.
Combalido com a morte da mãe, Pascoaes, agora mais do que nunca, entrega-se totalmente à sua réstea de esperança, a Adelaidinha.
Guiado pela paixão atravessará os últimos meses de vida.
À afilhada legará em testamento algumas das suas obras:
«Também o crime nas chamas do amor se purifica... E eu próprio devo o ser, actualmente ao amor que dedico a uma criança. A ela me prendi como nos prendemos à vida, que nos quer fugir (...) Quando o amor é só ternura elevada ao infinito, será capaz de purificar os nossos crimes sensuais?» (Conferência proferida na Casa Museu Guerra Junqueiro, ano de 1950 - in: Teixeira de Pascoaes de Mário Garcia).
Esta «ternura elevada ao infinito» é a do imago materno «capaz de purificar os nossos crimes sensuais».
No mês de Dezembro, o ano da morte física de sua mãe, Pascoaes encerra-o como se se tratasse de uma obrigação a cumprir. A mãe e o filho - o ano de todas as mortes - o ano eleito da Saudade.
No quarto da velha casa, rodeado do mundo de sombras «nesta velha casa, no meio desta paisagem materna,o que há de banal, no meu ser desaparece; tomo a infinita seriedade das coisas, que mostram o vulto escuro, ao doirado riso do sol», o D. Quixote português, o enamorado da Quimera, o peregrino do Ideal e da Beleza, na companhia da Nova Luz - a Adelaidinha -, adormece para sempre.
E desse momento de silêncio parado, de ouvi¬dos atentos à paisagem, uma voz se levanta ecoan¬do pelo céu:
«Poetas, cantai os fantasmas (...) o que é eterno... Cantai o que não existe: o resto é cinza.»

'E como quem diz: Hei saudades de mim, doutro que tinha uma ligação próxima com minha mãe.

in: O Fantasma de Pascoaes