segunda-feira, junho 04, 2007

Teixeira de Pascoaes: A Criança e o Silêncio

«A criança que nunca é respeitada no seu silên­cio acaba por ser incapaz de construir a sua inti­midade»
João dos Santos

O Nascimento

Teixeira de Pascoaes, de seu nome Joaquim Teixeira de Vasconcelos, nasceu em Amarante, a 2 de Novembro de 1877 - «nasci no dia eleito da Saudade» (Terra Proíbida).
Nesse dia, Dia dos Fieis Defuntos, de Outono, crepuscular, possivelmente chuvoso e cinzento, veio ao mundo um poeta - «Todos os poetas se lembram do dia em que nasceram e conservam sempre, nos ouvidos, os gritos da dor parturi­ente», escreverá no Livro de Memórias.
Detenhamo-nos, por instantes, nesta afir­mação que, aparentemente, nada tem de científi­co. Segundo o Doutor Fernandes da Fonseca, «o acto de nascimento constitui uma poderosa fonte de angústia ou, pelo menos, de um sentimento ambíguo de prazer e desprazer, de alívio e de angústia». (Psiquiatria e Psicopatologia II).
É notável, tendo em conta o esclarecimento médico, a capacidade intuitiva do Poeta. Aliás, segundo o mesmo autor, «os modernos conheci­mentos de natureza molecular da memória vie­ram confirmar uma concepção empírica já aflora­da pela psicanálise».
Uma das suas sobrinhas, Maria do Carvalhal, na obra comemorativa do centenário do nascimento do Poeta, referindo-se à extrema sensibilidade de seu tio, generaliza.: «A Alma dos Poetas é de cera, nela fica gravada a mais leve emoção» (Pascoaes). •

A Mãe

Pascoaes não será privado da companhia da mãe. Ela acompanhá-lo-á quase até à morte. Falecerá com noventa e seis anos e meio, onze meses antes cio Poeta.
Após o falecimento da mãe, o Poeta terá sen­tido o seu espaço, o de sempre, para sempre per­dido, e ainda que dedique a uma sua afilhada (filha dos caseiros) uma terna, quase doentia paixão, o mundo que acabou - sua mãe - em breve o receberá no outro.
Qual terá sido o papel da mãe na obra de Pascoaes? Terá ela sido um fantasma de carne e osso? A segurança, o refúgio à insistência obsessi­va dos Medos?
Segundo Gerard Mandei, na obra La Revolte contre lê Pére, tem o Fantasma por função proteger a fase precedente, demonstrando um sentimento contínuo de existência. Pascoaes vai sentir neces­sidade de se proteger da Vida.
O Fantasma, segundo Mandel, opor-se-á à maturação do indivíduo, maturação que se prende com o fim da Infância, idade que o poeta de Maranus sublimará.
Mais tarde, como veremos, Pascoaes irá adop­tar Pais espirituais que lhe darão respostas para a sua fixação materna:
«De olhos no Além,
Ergui um dia às nuvens o meu canto,
Como outrora envolto em misterioso encanto,
À tardinha rezava ao pé de minha mãe»
Segundo João dos Santos, uma criança aos seis anos sabe tudo da vida: andar, falar, ler, sabe fazer a leitura das situações e a leitura dos objectos à sua volta. Não sabe ler os símbolos pelos carac­teres gráficos que lhe apresentamos, não sabe, não pode saber. Mas sabe trocar afecto, dar e receber. Será que Pascoaes vai com o saber fundo da infância, atento ao que o rodeia, intuir, amar, e imaterializar o real à medida da sua sensibilidade, do seu olhar virgem que assim permanecerá? E a mãe será a guardiã desse passado infantil?
«A minha imagem infantil, onde ela vive ainda, perfeita, é na memória da minha Mãe. Ali é que vive ainda, como num íntimo refúgio. Lá estou adormecido nos teus braços. Bate-me a luz nos olhos, acordo e brinco ao sol de Deus» (Duplo Passeio).
Este texto é bem revelador da ligação do mundo infantil à paz materna.

O Pai

A mãe era, segundo Maria do Carvalhal, a sim­patia e o dinamismo em pessoa. «O Pai era bem talhado para ser pai daquele Poeta» (Pascoaes).
Tendo em conta outras informações e escritos, queremos crer que esta afirmação a propósito do seu progenitor não é totalmente correcta. Se observarmos que é nos primeiros anos de vida que a imagem do pai se materializa e estabiliza, sabendo nós que seu pai utilizava um método rígido de educação, obrigando os filhos, mesmo os mais novinhos, a tomarem banho na água gelada do tanque todos os dias, mesmo no inver­no, é de imaginar que Pascoaes não se sentisse muito identificado com ele.
O pai vai-se tornar um símbolo de autoridade e de poder, e a criança não terá outra alternativa senão submeter-se.
Mais tarde, no entanto,já homem e com banca de advogado em Amarante, as relações entre um e outro serão como que de irmão para irmão, não se distinguindo, senão pela idade, o filho do pai.
Se atendermos ao verso «O que há de mim de lírio e de donzela», facilmente concluiremos que esta relação pai/filho só terá sido possível pela cultura, erudição que ambos possuíam, e não pela sensibilidade. Eram agora dois adultos.
Segundo Fernandes da Fonseca «uma das relações a que frequentemente se faz alusão, após o advento da concepção psicanalítica, é a de uma certa coexistência entre a criatividade artística e a homossexualidade» (Psicologia da Criatividade).
Freud foi o primeiro a referir-se a esta ligação. Em Pascoaes tal não se terá verificado, mas saben­do nós que nas sensibilidades mais apuradas há
um misto de masculinidade e feminilidade, é razoável considerar a infância de Pascoaes na sua relação com o pai como de um considerável afas­tamento afectivo.
Fernandes da Fonseca diz-nos ainda que o poeta sentiu dificuldades em ultrapassar a fase edipiana devido à devoção que guardava à mãe, manifes­tando muito cedo uma acentuada religiosidade, que vem a ter uma grande influência na sua obra.

O Ideal do Eu / O Eu Ideal

Como é sabido, o Eu Ideal, assim como o Ideal do Eu, são sentimentos que estão ligados directa­mente ao Imago; imago que pode ser materno ou paterno, assim como Bom ou Mau - imagem que a criança guarda do pai e da mãe.
O Ideal do Eu está dependente do imago pater­no, ao invés do Eu Ideal, que se encontra rela­cionado com o materno.
O Eu Ideal é um fantasma correspondendo a uma ideia-força que entra no campo da consciên­cia e a inunda - processo de satisfação de uma necessidade sentida sem se recorrer a qualquer acto externo.
O Eu Ideal é uma versão fantástica de si próprio e que corresponde à capacidade de sonhar de olhos abertos - o fantasma, enquanto que o Ideal do Eu corresponde ao desejo mais ou menos realizável tendo em conta o meio em que se inseriu, e está ligado à função do pai.
O Eu Ideal corresponde à fantasia, acabando por anular todos os pensamentos - uma imagem--força que está ligada à função da mãe.
O fantasma e a sublimação artística prendem-se, como é óbvio, ao Eu Ideal, levando para formas de pensamento mágico. Mas a criação artística envolve o acto, e é o resultado da orientação com-portamental do Ideal do Eu pelo Eu Ideal, que assim acaba por ser «retratado» ou «materializa­do» e proposto aos outros.
Sabendo que o imago é a projecção de uma lembrança da infância sobre uma pessoa ou um objecto e que em Pascoaes se torna notória a pre­dominância do imago materno, é possível, sem errar, dizer que a mãe preenche toda a sua obra. Sendo sempre boa, doce, a síntese de todas as vir­tudes - a paz.
É de notar a forte ligação natureza - imago materno. Pascoaes vai realizar q fantasma fundin­do-o com a terra. E mais tarde, através da arte, proporá um inconsciente colectivo feito de arquétipos, que levará à elaboração do mito da

A Religião

De tenra idade, o pequeno Joaquim organizou uma Procissão de Meninos de Pascoaes recrutados nas escolas, todos fardados com anjos e outras figuras, vestidos por sua mãe.
Por volta dos sete anos pegou em duas tábuas, fez uma cruz, deitou-se nela e pediu que o amar­rassem.
Na obra Olhando para trás, vejo Pascoaes, de sua irmã Maria da Glória, o poeta dedica às velhas árvores um carinho extremo:
«Outra coisa de que ele muito gostava de tratar, como a um enfermo, as árvores velhinhas sentindo-as reviver ao contacto das suas mãos. Junto à parede do seu quarto havia um lódão carcomido pelos anos; só tinha sinais de vida nas raízes. Pascoaes conhecia essa árvore desde criança; tinha por ela uma grande ternura e quis fazer tudo para a ressuscitar. Encheu-lhe os orifícios com barro fresco, ligou-os com cortiça e arame e todos os dias a regava. Hoje, é um lódão ressuscitado, uma árvore frondosa como dantes, cuja sombra das ramagens, nas noites de luar, lembra uma renda estendida no chão».
A criada Lucrécia contara-lhe estórias de almas penadas, diabos e bruxas, enchendo a sua imagi­nação de criança.

A Escola

Os diversos textos, assim como os depoimen­tos que trataram a relação poeta-escola coincidem no desinteresse e mal-estar que esta lhe provocava.
Nas aulas, acompanhado quem sabe se dos seus fantasmas, distraía-se, evadindo-se, por certo, em formas de pensamento mágico.
Seu pai, uma vez mais identificado com o que desagrada ao poeta, obrigava-o «... a estudar, logo ao romper do dia, à luz duma candeia bruxu-leante nas gélidas manhãs de inverno» (...) «... tinha que ir a pé, de madrugada, pela estrada fora, coberta de gelo, até à vila de Amarante, ao Largo do Campo da Feira, onde o Padre Sertório tinha a sua escola. Ia muito encolhido e tímido, como o próprio se descreve nas Memórias. Se não fossem aquelas madrugadas, a sua vida na aldeia tinha sido completamente feliz; mas todo o dia pensava na ida para a escola na manhã seguinte» (Pascoaes, de Maria do Carvalhal).
Neste excerto é evidente a associação da esco­la ao pai e do pai à autoridade, ao dever, ao invés de sua mãe, que está ligada à aldeia, à casa.
As aulas eram um suplício. E, alheio, o poeta lá deixava correr as horas enquanto, aos poucos, ia configurando a paisagem do Marão.
Esta aversão à escola vai perdurar mesmo para além da Universidade.
A ida para a escola era, por certo, a passagem do natural para o artificial. Mas lá foi passando... nos exames.
No Liceu, em Amarante, reprova no exame de Português e o seu professor confessa «que ele não sabia e era incapaz de vir a saber» (Pascoaes de M. C.).

A Solidão

De tenra idade, o poeta começa a demonstrar uma visão muito particular da realidade.
O seu apego ao passado (ainda criança) não deixa já de se impor como característica primeira do seu modo de ser. É o poeta quem, no seu Diário de Memórias, no-lo revela:
«Tinha sete anos. Entre mim e os outros não havia distância. Eu era tudo e todos. Coisas de pessoas que eu amasse, adquiriam logo o encanto do meu ser, que não era ainda corpo e, muito menos um esqueleto; era uma impressão alada e viva, irmã da luz.
Convivia com fantasmas nascidos da minha tristeza, essa manhã de nevoeiro. Falavam-me. As vozes tinham baixos relevos de silêncio e alturas vagas de luar. Sugeriam-me, como ainda hoje me sugerem, sentimentos que excedem a dor e a ale­gria e esfumam a nossa presença humana, no outro mundo» (Livro de Memórias).
Maria do Carvalhal acrescenta ao tema proposto:
«Sempre que apareciam visitas o menino refu­giava-se na solidão dos montes. O Pascoaes que, mais tarde, era tão comunicativo e falador, em criança era sisudo e cabisbaixo» (Pascoaes).
Mais uma vez se torna evidente o desajusta­mento do pequeno Joaquim em relação ao mundo dos adultos - o do pai. Procura a solidão e o silên­cio.
E o seu mundo de fantasmas aos poucos a for­mar-se. Com a palavra escrita aumentarão as suas capacidades intelectuais, transformando a palavra, também ela, num fantasma.
«O mundo primitivo» (a mãe boa, fonte de vicia), mais tarde natureza humanizada, em breve será a Eva Futura, a do mito religioso da Saudade, que tentará dar voz às correntes inconscientes da alma colectiva.

In: O Fantasma de Pascoaes

5 Comments:

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