Carlos Carranca - neste lugar sem portas

sexta-feira, março 30, 2007

7 Poemas para Carlos Paredes

As Palavras Possíveis*


É preciso pararmos um momento a ouvir o silêncio. Nesse espaço povoado, teremos de saber marcar encontro com as coisas maiores, vestirmos lenta e suavemente cada uma das palavras escutadas, os sons corporizados de alguns mistérios, a inquietação e a paz do reencontro com as formas mais elevadas da criação artística.
De um lado um poeta, voz contida e atormentada na incessante busca da exactidão, cinzelando, palavra a palavra, em crescimento com e contra o silêncio e as sombras, o poema, corpo definitivo para a vivificante fruição do prazer.
Do outro, uma guitarra geracional e ímpar, corpo intemporal em gritos de um sonambulismo vigil, inquieta respiração do génio que fulgurava na lira de Orfeu.
Humanizados, fundem-se num tempo único a voz do poeta e os acordes multiformes da guitarra, ganham dimensão e elevam-se ao mais alto patamar do refazer ontológico, batem contra o tempo, revelam-se no refinamento solitário e nu, cingidos à própria realidade. É o Homem revelado, messias de todas as esperanças redentoras, porque só os que encontram a Arte podem ser redimidos.
Felizes os que sabem ouvir os choros que pela noite ferem os momentos e ficam sentados à porta do sonho, com a luz em sofrimento , presos dos mistérios e silêncios, a ouvir uma guitarra sobre o pranto.
Não uma guitarra qualquer, um qualquer dedilhar trilhado de melancolias de noites de suor e bafio, de desencontros amorosos, de jogo de cartas marcadas nas esquinas suspeitas da noite.
Mas a outra, a que ganhou um outro corpo e outra voz para subir em noites estelares às janelas de todo o desassossego, a guitarra de Coimbra, com outros olhares, outros sorrisos, pauta multímoda de signos e registos cromáticos projectados contra o tempo e o silêncio, Artur guardando ciosamente o Graal das harmonias universais.
Herdeiro do génio, reinventando todos os possíveis, Carlos, com asas nos dedos, leva definitivamente o ouro e o mistério da criação ao altar supremo da Arte, numa forma singular de nos fazer ouvir a reinvenção da guitarra, corpo onde acordam sonoridades coimbrãs metamorfoseadas em refinamento aristocrático de um universalismo sem tempo e sem lugar.
Desta dinastia dos Paredes, Artur e Carlos, príncipes desse reino poderoso e tangencial ao absoluto da criação, há em Carlos uma voz outra, humaníssima e perscrutadora, que passa de leve nos corredores do sonho para com mãos de semeador chegar ao indizível dos sons, numa celebração de guitarra longínqua que toca por dentro dos muros as palavras esquecidas do Passado.
Quem não souber ouvir essas sonoridades, quem não souber transportá-las para dentro de si e guardá-las em celebração eucarística, ou nunca passou em Coimbra o tempo de todos os encantamentos ou tem a alma fechada à secreta beleza que viaja o interior das coisas superiores e íntimas. Em tal deserto, cairá irremediavelmente condenado ao dissonante vazio de não saber que existe e porque existe.
O que tento dizer-vos, do que vos falo, franzido de terror porque nada ou pouco se sabe dizer do que se sente, é de um objecto rigoroso de criação poética que sobrevive da inteligência e sensibilidade de Carlos Carranca, manifesto poético que parece edificado em meditações jansenistas, que não acolhe porém a mais leve concessão, por isso hipostasia a beleza como categoria estética e nos aproxima, como leitores, do culto particular e silencioso das mais elevadas concelebrações da liturgia sensorial e da meditação ascética:
Pela noite secreta um som nos liberta...
Senhora, nossa senhora Guitarra sedutora!
É a guitarra de Carlos Paredes, canto maternal que nos acolhe e chama, ancoradouro de todas as tormentas, inesgotável seio de todas as fomes, que o poeta nos oferece como quem reza os salmos de um destino português, bordão de peregrino, vidente e nosso, Pascoaes visionário a tanger os mistérios da nossa condição, ser povo e ser universal, com a missão de destinar ao mundo, nos sons impossíveis de um instrumento plebeu, a voz de um país por dedilhar, feito de memórias e viagens, que Carlos Carranca, na exactidão do poema, afastando névoas e esconjurando fantasmas, dimensiona à escala redentora, quinto império da voz de um povo no corpo-coração-encordoado e na boca circular de madrepérola, o braço encimado por uma lágrima de marfim, guitarra cúmplice, guitarra mulher possuída em êxtase murmurante.
Quebradas todas as grilhetas, solta gritos prometaicos que roubam o fogo sagrado da mesa dos deuses, liberta corcéis de
prazer ou raiva, ou simplesmente derrama sorrisos tomados de brisas primaveris, também a Liberdade em manifesto gritado aos quatro ventos da utopia, guitarra cravo de Abril a convocar-nos para a festiva soberania do Povo, finalmente senhor do seu destino:
Ó guitarra lusitana!
Ó harpa das loucas correrias!
salgado mar das fantasias...
É a voz do Povo que te chama!
Redentora e fraternal,
és tu quem anuncia
a hora da alegria
de ser de novo
o Povo, o Rei de Portugal.
Sete poemas, um só poema, corpo saído da persistência cinzelada que percorre a poética de Carlos Carranca, palavras exactas no lugar exacto, que ficam dentro de nós e nos aguardam, nos guardam e se demoram para essa experência maior do saber viver e criar em cio, que, no dizer de Rilke, era o caminho a percorrer, o atingível a perseguir. Sete poemas, um poema, a ler e reler incessante, penosamente, porque nada vale a pena se é fácil. Se o belo é o difícil, como diz Platão, saibamos merecê-lo na busca da perfeição que percorre os poemas deste livro.
Figueiredo Sobral não ilustra os poemas. Não é um sublinhar, é um corpo-a-corpo. Anda com eles por dentro dos gestos e avança na harmonia das formas e das cores toda a complementaridade que torna o livro um objecto-manifesto de Beleza.
Descontem e esqueçam tudo o que vos disse. Não vim apresentar um livro. Vim presentear-me e se me permitirem presentear-vos com o gesto despretencioso de apontá-lo.
De um lado o discurso poético, do outro o discurso pictórico. Ligados como uma trança de mulher em sagração de Primavera.
Convido-vos para a valsa lenta que há-de demorar-se em nós como recordação teimosa que o tempo não pode apagar. Ouçam a guitarra desse génio evocado nos poemas, sintam-lhe o corpo apetecível revelado nas pinturas de Figueiredo Sobral.
Leiam e olhem demoradamente. Procurem de novo uma e outra vez. Cada objecto, na sua multiplicidade unificável, será sempre outro e sempre novo. Partilhem os poemas e as pinturas, rosa a rosa, demorem na boca o gosto de ambos, vinho e pão consagrados para a epifania dos sentidos, também para o recolhimento, para a plena fruição deste belo e raro objecto que é o livro-lareira em torno do qual aquecemos hoje as mãos e confortamos as almas, neste fraternal encontro com a Poesia, espectáculo de exactidão.

José Henique Dias
(professor jubilado da U.N.L. e Presidente do Conselho Científico do Instituto Superior Miguel Torga)

* Na cerimónia da abertura das comemorações dos 25 anos do 25 de Abril (Óbidos – 1999) presidida pelo Senhor Presidente da República Dr. Jorge Sampaio.

terça-feira, março 27, 2007

Emídio Guerreiro na Lousã

Exemplo vivo de dignificação do Homem


No dia 6 de Setembro de 1899 veio ao mundo, na cida­de de Guimarães, um dos ho­mens mais fascinantes de que tenho a honra de ser amigo.
Viveu em três séculos e hoje, no alto dos seus cento e cinco anos de idade, continua a ser futuro.
Pelo seu passado político de combatente contra todas as for­mas de ditadura, pelos valores democráticos de que ainda é arauto e exemplo vivo de digni­ficação do Homem, merece ser lembrado.
Há cerca de dois anos, numa das deliciosas conversas que mantinha com amigos (e supo­nho que na Lousa) fiz um co­mentário a propósito do socia­lismo democrático a que ele logo acrescentou:
- Sabe, hoje o socialismo serve para distribuir as migalhas que sobram do banquete capitalista!
Foi pela liberdade, sempre, que Emídio Guerreiro comba­teu. Foi por ela que, às ordens do General Sousa Dias, a 3 de Fevereiro de 1927, no Porto, empunhou uma arma.
Longe da Pátria, exilado em Espanha, ensinando e comba­tendo, foi adversário de Fran­co e em França integrou o ma-quis, participando na resistên­cia ao invasor alemão (evadiu--se por duas vezes de campos de concentração).
Foi pela liberdade, na defe­sa das suas convicções, que se tornou verdadeiro embaixador da resistência portuguesa ao salazarismo em Paris, acolhen­do muitos dos nossos exilados. Impulsinou o projecto político do General Humberto Delgado e foi o primeiro a denunciar a sua morte como crime perpe­trado pela PIDE.
José Augusto Seabra, um dos seus mais dedicados ami­gos, enviou uma mensagem a Emídio Guerreiro, no dia do seu centésimo aniversário onde dizia:
"Conheci o prof. Emídio Guerreiro desde os primeiros tempos do meu exílio em Fran­ça. Impressionou-me logo a sua personalidade irradiante, a sua coragem intelectual e mo­ral, a generosidade com que se entregara à causa da Liberdade e da Democracia, tanto em Por­tugal como na Europa e no Mundo."
Após quarenta e dois anos de exílio, num dia de Maio de 1974, regressava a Portugal o guerreiro Emídio e vinha para continuar a luta. Sabia que a li­berdade é um horizonte móvel e que não podemos deixar de a perseguir e de sonhar por ela.
Adere ao então PPD e, pou­co tempo depois, no célebre "Verão quente", é líder do par­tido.
Rapidamente as bases do partido e alguns barões se aper­ceberam que aquele homem estava muito para além dos seus interesses e, em breve, Emídio Guerreiro abandona o PPD, mas antes reafirmava as suas convicções, as de toda uma vida, as de homem de es­querda, as de socialista sem dogma.
Por duas vezes Emídio Guerreiro e sua esposa estive­ram na Lousa, em minha casa. Por duas vezes, visitaram locais que muito apreciaram. Lem­bro-me que, entre o muito que viram e usaram, foram os jantares no "Burgo" e no "Gato" que relembram com frequên­cia, assim como a visita à Quin­ta do Meiral para conhecerem a fábrica do célebre Licor Bei­rão e do não menos conhecido Carranca Redondo.
E as conversas intermináveis pela noite fora nas quentes noites de Verão?
Conversador inveterado, o professor Emídio Guerreiro, quando minha mulher lembra­va o adiantado da hora, não se deixava a abater: "vão as meni­nas andando para a cama que nós ficamos mais um bocado!" Bocado que se prolongava lá para as três da manhã.
Infelizmente, da Sra. D. Alice já não podemos usufruir a companhia. Mas deixou no pequenino jardim da casa do Prilhão, duas roseiras amarelas que minha mulher e eu olhamos com um carinho muito especial.

Trevim, 23 de Setembro de 2004
Carlos Carranca

domingo, março 25, 2007

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas


Salazar visto por Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, março 24, 2007

Sete Poemas Para Carlos Paredes
visto por José Fernando Tavares

Os conhecedores da poesia de Carlos Carranca sabem que o autor é um espírito apaixonado, não só por característica própria do seu humanismo (íamos a dizer da sua humanidade), como também porque o autor é o fiel seguidor de um lirismo marcadamente português.
Assim, os sete poemas dedicados a Carlos Paredes, génio da guitarra portuguesa, devido ao arrebatamento lírico que neles podemos encontrar, são o testemunho desse poder genial só patente no espírito lusitano. E falamos em "espírito ", pois é ao nível de uma espiritualidade peculiar que se dá aquilo a que podemos chamar uma "correspondência" ao jeito baudelairiano: correspondência entre o génio poético do autor e o génio poético da guitarra portuguesa.
Nessa correspondência entre duas almas, porque possuídas pelo mesmo espírito, sobreleva o poder de uma íntima comunicação. Podemos mesmo dizer que estes poemas de Carlos Carranca foram o bálsamo final que permitiram acordar o génio adormecido de uma grande figura da cultura lusíada. Podemos ainda inferir da leitura destes sete poemas um sinal de iniciação, pois neles viceja o mesmo poder do cálice que faz acordar para o mundo esse Artur adormecido nas teias do feitiço. Por entre a palavra do poema, ouve-se o som cristalino da guitarra.


Sete Poemas Para Carlos Paredes de Carlos Carranca, 4ed,Universitária editora, Lisboa 1998.

segunda-feira, março 19, 2007

À memória do Allministro Pinho (com dois iis)

CARTA A ANTO *

Anto! anda ver o meu país de banqueiros,
o meu país de pederastas e políticos.
Ai o mar que é nosso!...
Um lindo mar, eu sei.
De empresários, desportistas radicais,
de jovens executivos e doutores.
(Não, já não é dos pescadores!)
É um mar de vender em pacotes aos turistas.
Ai o mar que é nosso!...
Um brando mar de agentes imobiliários
crescidos entre cifrões, a noite, pó-branco e patos-bravos.
Anto! anda ver o meu país de banqueiros,
de bancários, de vendedores, vendidos e gerentes.
Anto! Anda ver o meu pobre país dos detergentes.

Carlos Carranca
*Quem me havia de dizer que um poema escrito há dois anos viria a servir a um ministro desta espécie de socialismo!...

domingo, março 18, 2007

MORREU A POETISA SANTOMENSE MARIA MANUELA MARGARIDO

Nascida em 1925, desde cedo abraçou a causa da independência e do combate anti-colonialista que a partir dos anos 50 se afirmou em África: em 1953, levanta a voz contra o massacre de Batepá, perpetrado pela repressão colonial portuguesa. A sua poética, se canta o esplendor da sua ilha, é também denúncia da miséria vivida pelo povo das roças do café e do cacau
Lisboa (Delegação de Liberal), 10 Março – Morreu ontem em Lisboa, onde se encontrava hospitalizada, a poetisa santomense Maria Manuela Margarido. Contava 83 anos. Com Alda Espírito Santo, Caetano da Costa Alegre, Francisco José Tenreiro, Margarido fica como um dos esteios em que se fundamenta a literatura contemporânea de S. Tomé e Príncipe. Nascida em 1925, desde cedo abraçou a causa da independência e do combate anti-colonialista que a partir dos anos 50 se afirmou em África: em 1953, levanta a voz contra o massacre de Batepá, perpetrado pela repressão colonial portuguesa. A sua poética, se canta o esplendor da sua ilha, é também denúncia da miséria vivida pelo povo das roças do café e do cacau. A sua obra (como a de outros autores de S. Tomé e Príncipe) começou a ser conhecida graças aos esforços de grandes divulgadores, casos de Mário Pinto de Andrade e de Alfredo Margarido, figurando nas poucas antologias publicadas sobre a poesia deste país de expressão oficial portuguesa. Tendo ido viver para Lisboa, Manuela Margarido, empenhou-se por sua vez na divulgação da cultura santomense (em textos que foram aparecendo na imprensa portuguesa – é exemplo “Costa Alegre a Francisco José Tenreiro : um percurso poético santomense”, na revista “Estudos ultramarinos: literatura e arte”, de 1959). Integrou o Conselho Consultivo da revista Atalaia (do CICTSUL). Deixamos aqui três poemas seus:

SOCOPÉ

Os verdes longos da minha ilha
são agora a sombra do ocâ,
névoa da vida,
nos dorsos dobrados sob a carga
(copra, café ou cacau - tanto faz).
Ouço os passos no ritmo
calculado do socopé,
os pés-raizes-da-terra
enquanto a voz do coro
insiste na sua queixa
(queixa ou protesto - tanto faz).
Monótona se arrasta
até explodir
na alta ânsia de liberdade.

A ILHA

A ilha te fala
de rosas bravias
com pétalas de abandono e medo.
//
No fundo da sombra
bebendo por conchas
de vermelha espuma
que mundos de gentes
por entre cortinas
espessas de dor.
//
Oh, a tarde clara
deste fim de Inverno!
Só' com horas azuis
no fundo do casulo,
e agora a ilha,
a linha bravia das rosas
e a grande baba
e mortal das cobras.

A ROÇA

A noite sangra
no mato,
ferida por uma aguda lança
de cólera.
A madrugada sangra
de outro modo:
é o sino de alvorada
que desperta o terreiro.
É o feitor que começa
a destinar as tarefas
para mais um dia de trabalho.
//
A manhã sangra ainda:
salsa a bananeira
com um machim de prata;
capinas o mato
com um machim de raiva;
abres o côco
com um machim de esperança;
cortas o cacho de andim
com um machim de certeza.
//
E á tarde regressas
á sanzala;
a noite esculpe
os seus lábios frios
na tua pele.
E sonhas na distância
uma vida mais livre,
que o teu gesto
há-de realizar.

http://www.liberal-caboverde.com/noticia.asp?idEdicao=64&id=12395&idSeccao=518&Action=noticia

sábado, março 17, 2007

Manuela Margarido, a princesa da ilha do Príncipe

Faleceu na passada sexta feira, dia 9 de Março, Manuela Margarido, a minha princesa. Embaixadora da ilha do Príncipe foi uma das suas mais valiosas vozes poéticas.
A minha homenagem.

Ilha do Príncipe

A ilha te fala
de rosas bravias
com pétalas
de abandono e medo.

No fundo da sombra
bebendo por conchas
de vermelha espuma
que mundos de gentes
por entre cortinas
espessas de dor

Oh, a tarde clara
deste fim de Inverno!
Só com horas azuis
no fundo do casulo,
e agora a ilha,
a linha bravia das rosas
e a grande boba negra
e mortal das cobras.

Maria Manuela Margarido

in 25 Poemas no Feminino, selecção de Carlos Carranca, Junta de Freguesia da Penha de França, Lisboa, 2001.

segunda-feira, março 12, 2007

A Crise da Académica


Carlos Carranca

O meu amigo Carlos Carranca tem postado hoje incessantemente comentários em vários blogues ligados à Académica/OAF.Transcrevo um deles, como forma de homenagem a alguém que - como eu - se sente cada vez mais "desalinhado" com os vários poderes.

******

A Académica já não existe e estes senhores foram os seus coveiros.Agora é tarde.

Não vejo ninguém que queira ir para a direcção que não seja para tirar partido da situação. Políticos salvadores, autarcas ex-ministros, palradores do auto-elogio (nunca me esquecerei de uma homenagem a Falcão e Cunha organizada pela Casa da Académica em Lisboa em que o tal autarca esteve meia hora a falar dele para homegear o outro).

Pensem na refundação da Académica.

(in "Académica sempre")

retirado de:http://apaginadomario.blogspot.com/

quinta-feira, março 08, 2007

LUIZ GOES de Ontem e de Hoje

António Toscano

Tem a vivência coimbrã a virtualidade rara de poder ser assumida — porventura mais intensamente, até - em lugar e tempo distantes dos cenários de magia da Cidade do Mondego e das pulsões da vida académica.
No que me respeita, é falha a memória dos factos e personagens que perpassaram essa vivência, iniciada em 1950; apesar disso, gratificante sentimentalmente o que me conseguiu transportar até ao presente.
E aqui tem lugar de relevo o Luiz Góes.
Conheci-o naquele ano, o da nossa entrada na Universidade. Chegava eu a Coimbra; ele já lá estava... porque aí nasceu em 1933.
É um convívio e uma amizade que perduram, o que, por si só, basta para preencher uma vivência coimbrã, atento o que ele representa como figura da Academia, projectada na canção de Coimbra.
Valho-me, a este propósito, de ideias contidas nas palavras que disse em homenagem que lhe foi prestada pela Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa, na festa de comemoração da "Tomada da Bastilha", em 25.11.89.
Tive — modesto participante no acompanhamento instrumental em que, a partir dos anos 60, avultou, pela inovação dos temas e técnicas, o João Bagão - o privilé­gio de testemunhar, ao longo de quatro décadas, muitas das jornadas por esse mundo fora (Espanha, Brasil, Holanda, Goa, África do Sul, Áustria, Suiça, EUA) as suas glórias de criador e intérprete excepcional da canção coimbrã, de que é, reconhecidamente, em toda a sua história, a referência incontornável.
Nos anos 50, década de fulgurante ressurgimento das tradições académicas, logo se destacou dos demais, e notáveis, cantores do fado de Coimbra o Góes, em memo­ráveis serenatas, na escadaria da Sé Velha ou nas ruas do burgo, e em espectáculos dos grupos académicos (Orfeon, Tuna, Teatro, Grupo Coral da Faculdade de Letras). Relembro, particularmente, o Orfeon no Brasil em 1954 e no ano seguinte, o Grupo Coral da F.L. na Holanda, onde o acompanhei com o Júlio Ribeiro à guitarra.
Dessa época importa recordar a gravação que fez com António Portugal de um disco que, ainda hoje, é famoso (conhecido por "Coimbra Quintet").
Impuseram-no como expoente da canção coimbrã, as suas interpretações de qualidade e brilho ímpares, servi­das por uma voz portentosa cheia, de forte acento abari-tonado mas de grande amplitude e com um timbre raro, características que acentuam nele a qualidade de cantor dramático.
Creio, todavia, que é a partir de meados da década de 60 que o criador e intérprete se realizam em Luiz Góes. Foi nas canções que estão gravadas em quatro LP's: "Coimbra de ontem e de hoje", "Canções do mar e da vida", "Canções de amor e de esperança" e "Canções para quase todos".
Novas vivências lançaram-no em novos rumos da cri­ação poética e musical, e as suas interpretações são agora enriquecidas por surpreendentes e inigualáveis modu­lações, íntimas da temática explorada, tão exigente esta em expressão dramática quanto incompatível com
maneirismos vazios". Escrevi-o e reafirmo-o, sublinhando a intemporalidade das suas novas canções.
(Guardo um secreto orgulho de ter sido eu a aproximar o Góes do Bagão para estes feitos e de ser autor da músi­ca de seis daquelas canções. Colega na Faculdade de Ciências de meu irmão, que mo apresentou — o Bagão que passei a acompanhar nos anos 50, então à guitarra, quan­do me deslocava a Lisboa, a casa de meus pais, que para aqui vieram no inicio da década — sabedor que o Góes voltava da Guiné, onde serviu como médico, falou-me em nos encontrarmos com ele. O propósito foi inicialmente dar a conhecer ao Luis Góes umas canções com versos do Leonel Neves e música dele, João Bagão, e entusiasmá-lo a cantá-las.
E assim aconteceu esta fecunda mediação, estendida de seguida ao Fernando Neto.)
Determinante na concretização do projecto do Bagão foi a disponibilidade e entusiasmo com que todos os inter­venientes o abraçaram. Mas acima de tudo, e como garan­tia do seu êxito, havia a condição sine qua non: a voz e as interpretações do Luiz Góes. O que reforçou no Bagão, juntamente com os textos poéticos utilizados, a convicção de que algo de novo ia surgir na canção de Coimbra.
Gostará o Góes que sejam recordados nesta sede, sobretudo, os contributos de João Bagão, mais uma vez, com a sua guitarra, de Leonel Neves, com os seus versos e o seu extraordinário empenho no projecto, de Edmundo de Bettencourt, com os seus poemas, e deste e de seu tio Armando Góes, com sua companhia e as suas achegas. Neste sentido, mais raramente, Paradela de Oliveira. E ainda as guitarras do Andias e do Aires de Aguilar (fiel
acompanhante do Bagão) e as violas do Fernando Neto, do João Gomes e do Durval Moreirinhas.
Protagonista da renovação, obrigatório se torna refe­renciar o Luiz Góes. E note-se que o foi sem rupturas, sem alarde, em autêntica, livre e irreprimível expressão da inquietude e emotividade sentidas.
Fica para as novas gerações o exemplo de um cultor da canção de Coimbra, no qual concorrem, além dos seus excepcionais atributos de artista, outros de carácter pes­soal, como o aprumo moral, a cortesia e a simplicidade de trato, bem patentes no convívio dos amigos, onde mostra a sua faceta de bom e cultivado conversador.
Não tem o Góes pendor para repisar o "triste e morto passado" (versos de uma sua cantiga), afirmando-se, com veemência, voltado para o futuro.
Ele entenderá, contudo, o sentido com que é recorda­do este percurso de cinco décadas e irá reconhecer, quiçá, a obrigação de não o considerar terminado.
Recordo, neste apelo, o que, há justamente trinta anos, escrevia um crítico no Diário de Lisboa (17.12.67):
"... quem arredava pé antes de ouvir o Góes? ..."
"Cantou-se e tocou-se numas escadas... Daí se ouviu o Dr. Luiz Góes, uma voz forte e calorosa, explicar em música a sua experiência recente de médico desterrado. ... Porque o Góes é isto: rosto quase impassível, tranquili­dade simulada. O Góes vibrava só por dentro. E toda a gente estava com ele."
Passava-se isto na inauguração da Galeria Rodin do pintor Mário Silva, em que estive presente a acompanhar o Bagão, a convite daquele nosso querido amigo. Dizia o mesmo jornalista: "A Galeria Rodin é mais uma ideia
«sui generis» de Mário Silva, ... estamos no domínio da invenção..."
"Duzentas pessoas suspensas, um microfone estendido no ar. Coimbra em Lisboa dá esta sensação estranhíssima.
"«O mundo dá tanta volta». Foi isto mesmo que can­tou o mais antigo, o Dr. António Menano, que era tam­bém o mais saudoso: passaram, pode lá ser, cinquenta e tal anos!"
Presentes neste evento, que o jornalista relata com destaque do Góes nos termos transcritos, estavam tam­bém o Tóssan que, com a sua graça e talento, disse algu­mas das suas poesias, e o Prof. Vitorino Nemésio. esse emérito conversador e poço de cultura, que nos deixaram uma saudade imperecível.

Para recordar: dois poemas de Luiz Goes



HOMEM SÓ, MEU IRMÃO
1968

Tu, a quem a vida pouco deu
que deste o nada que foi teu
em gestos desmedidos...

Tu, a quem ninguém estendeu a mão
e mendigas o pão dos teus sentidos
homem só, meu irmão!

Tu, que andas em busca da verdade
e só encontras falsidade
em cada sentimento
inventa, inventa amigo uma canção
que dure para além deste momento,
homem só, meu irmão!

Tu, que nesta vida te perdeste
e nunca a mitos te vendeste
— dura solidão —
faz dessa solidão teu chão sagrado,
agarra bem teu leme ou teu arado,
homem só, meu irmão!



SANGUE NOVO
1972


Ao ouvir a voz do povo
é que se aprende a verdade;
quem ama nasce de novo
e vive sem ter idade.
Levar a vida a lembrar
Um triste passado morto,
é como querer navegar
num mar sem água nem porto.


Ao ouvir a voz do povo
é que a verdade aparece;
amor novo é sangue novo,
até na velhice aquece.
Levar a vida a lembrar
um triste e morto passado,
é como querer habitar
um lar sem chão nem telhado.

quinta-feira, março 01, 2007

A Zeca Afonso

Dos tempos da alegria
já partimos

somos agora outro tempo
outro lugar.
Sabemos existir
sem existirmos na alegria
que foi de começar.

O tempo de ficar
dói nos ouvidos.
Ele voa, como olhos
percorridos pelo castigo
de um vento sem saber
onde parar.

Dos tempos da alegria
já partimos...

só nos resta
o sonho onde dormimos
e acordados havemos de voltar.


poema inédito de Carlos Carranca