Frátria – Uma Imagem de Carlos CarrancaPor: Carmén Mesa
12 de Maio de 2008
A poesia é a forma de expressão artística onde melhor se traduz a nossa mais básica condição humana, pois tem como ponto de partida fundamental o espírito humano na sua dimensão pessoal e subjectiva. Justifica-se assim plenamente que possa ser encarada, tal como sugere Carlos Carranca no seu livro , como “a mais humana das obras”. A poesia é, ao mesmo tempo, um símbolo da beleza e da inquietação que habitam o nosso espírito, tendo a peculiar capacidade de abordar e revestir com o seu encanto mesmo as mais sombrias encruzilhadas da existência, conferindo-lhes uma nova luz.
As palavras, que na sua função essencial de intercomunicação humana se revelam limitadas, pois não têm a capacidade de transmitir vivências da forma completa e arrebatadora com que se manifestam no nosso espírito, funcionam na poesia como um instrumento, não para transmitir meras sombras dessas vivências, mas para as despertar de forma completa e portentosa no íntimo de cada leitor.
Quando lemos um poema existe algo que se desperta dentro de nós, algo que transcende o campo do conhecimento e se move no domínio dos sentimentos, algo que indubitavelmente nos enriquece: são novas portas que se abrem, horizontes que se alargam, amarras que se libertam, recantos inexplorados do nosso ser que se revelam. Ao sintonizar-nos com a alma do poeta, a poesia permite-nos, ainda que apenas por breves instantes, diminuir o espaço inexorável que nos distancia uns dos outros. Assim, ao navegar pelos poemas deste livro contactamos com as esperanças e as inquietações, as certezas e as indecisões, a liberdade e as limitações, que são tanto do poeta como intrinsecamente nossas. Cada poema revela-se como uma dádiva com que o poeta nos presenteia, numa atitude de doação de si mesmo que surge em total sintonia com o espaço espiritual para que o título do livro nos reporta – a Frátria, um espaço de completa comunhão.
Em cada verso lê-se a vida tal como é reflectiva pela subjectividade do poeta, que penetra nos recônditos do seu ser, procurando sentir-se até à mais ínfima vibração, percebendo que em si está o que todos procuramos, está cada um, está o todo. Sente-se nas palavras de Carlos Carranca essa necessidade visceral que todo o ser humano tem de se encontrar espiritualmente consigo próprio e com os outros. Essa parece ser até a motivação primordial que está na origem de toda a sua actividade poética, como se depreende do poema Escrever: “Escrevo / como quem ora / a um deus desconhecido / por isso / me rasgo / por dentro / e me persigo / sofreguidão / de me encontrar / comigo.”
Nos seus poemas, contudo, está também patente uma necessidade que transcende o plano individual e se manifesta no domínio do colectivo: é a necessidade de realização de um povo que perdeu a sua alma. Um povo que aderiu à cultura do “Pai-Natal-Coca-Cola” e se esqueceu de renascer a partir da sua própria identidade cultural, perpetuando assim a sua condição de país que se afunda e entristece, sem alma e sem originalidade, um “país naufragado” . Pressente-se, dessa forma, em Carlos Carranca uma profunda desilusão e descontentamento com o estado de marasmo a que o utilitarismo e a economia de mercado permanentemente ameaçam remeter o espírito humano. Uma situação que a sua consciência de poeta não pode tolerar e contra a qual levanta a sua voz, exprimindo o desejo de mudança que reside no íntimo de cada um de nós e propondo, sob o nome de Frátria, um ideal de irmandade que nos guie através da escuridão da noite em direcção a um novo dia. É assim de uma forma significativa que este livro termina com o poema Frátria, como que apelando à confiança nessa busca de um Quinto Império que se tarda em cumprir: “Soltem de novo as amarras. / Rasguem o mar que há-de vir. / O tempo é das cigarras / (mulheres de branco a sorrir).”
Muito mais poderia ser dito sobre este livro de poesia com que Carlos Carranca nos presenteia, tal é a extensão e profundidade do seu conteúdo, mas nada do que possa ser dito substitui a magia do contacto pessoal e directo com os seus versos, pelo que termino desafiando todos os presentes a embarcar na aventura de descobrir os tesouros escondidos que repousam no fundo deste mar de sentimentos que Carlos Carranca tão lucidamente materializou.
1- CARRANCA, Carlos – Frátria. Mar da Palavra, 2008.
2- Ideia expressa por José Fernando Tavares no seu texto intitulado Do “Mar Português” Ao ”Mar do Inferno”: Uma Leitura de Frátria de Carlos Carranca.