terça-feira, maio 20, 2008

Frátria – Uma Imagem de Carlos Carranca
Por: Carmén Mesa
12 de Maio de 2008

A poesia é a forma de expressão artística onde melhor se traduz a nossa mais básica condição humana, pois tem como ponto de partida fundamental o espírito humano na sua dimensão pessoal e subjectiva. Justifica-se assim plenamente que possa ser encarada, tal como sugere Carlos Carranca no seu livro , como “a mais humana das obras”. A poesia é, ao mesmo tempo, um símbolo da beleza e da inquietação que habitam o nosso espírito, tendo a peculiar capacidade de abordar e revestir com o seu encanto mesmo as mais sombrias encruzilhadas da existência, conferindo-lhes uma nova luz.
As palavras, que na sua função essencial de intercomunicação humana se revelam limitadas, pois não têm a capacidade de transmitir vivências da forma completa e arrebatadora com que se manifestam no nosso espírito, funcionam na poesia como um instrumento, não para transmitir meras sombras dessas vivências, mas para as despertar de forma completa e portentosa no íntimo de cada leitor.
Quando lemos um poema existe algo que se desperta dentro de nós, algo que transcende o campo do conhecimento e se move no domínio dos sentimentos, algo que indubitavelmente nos enriquece: são novas portas que se abrem, horizontes que se alargam, amarras que se libertam, recantos inexplorados do nosso ser que se revelam. Ao sintonizar-nos com a alma do poeta, a poesia permite-nos, ainda que apenas por breves instantes, diminuir o espaço inexorável que nos distancia uns dos outros. Assim, ao navegar pelos poemas deste livro contactamos com as esperanças e as inquietações, as certezas e as indecisões, a liberdade e as limitações, que são tanto do poeta como intrinsecamente nossas. Cada poema revela-se como uma dádiva com que o poeta nos presenteia, numa atitude de doação de si mesmo que surge em total sintonia com o espaço espiritual para que o título do livro nos reporta – a Frátria, um espaço de completa comunhão.
Em cada verso lê-se a vida tal como é reflectiva pela subjectividade do poeta, que penetra nos recônditos do seu ser, procurando sentir-se até à mais ínfima vibração, percebendo que em si está o que todos procuramos, está cada um, está o todo. Sente-se nas palavras de Carlos Carranca essa necessidade visceral que todo o ser humano tem de se encontrar espiritualmente consigo próprio e com os outros. Essa parece ser até a motivação primordial que está na origem de toda a sua actividade poética, como se depreende do poema Escrever: “Escrevo / como quem ora / a um deus desconhecido / por isso / me rasgo / por dentro / e me persigo / sofreguidão / de me encontrar / comigo.”
Nos seus poemas, contudo, está também patente uma necessidade que transcende o plano individual e se manifesta no domínio do colectivo: é a necessidade de realização de um povo que perdeu a sua alma. Um povo que aderiu à cultura do “Pai-Natal-Coca-Cola” e se esqueceu de renascer a partir da sua própria identidade cultural, perpetuando assim a sua condição de país que se afunda e entristece, sem alma e sem originalidade, um “país naufragado” . Pressente-se, dessa forma, em Carlos Carranca uma profunda desilusão e descontentamento com o estado de marasmo a que o utilitarismo e a economia de mercado permanentemente ameaçam remeter o espírito humano. Uma situação que a sua consciência de poeta não pode tolerar e contra a qual levanta a sua voz, exprimindo o desejo de mudança que reside no íntimo de cada um de nós e propondo, sob o nome de Frátria, um ideal de irmandade que nos guie através da escuridão da noite em direcção a um novo dia. É assim de uma forma significativa que este livro termina com o poema Frátria, como que apelando à confiança nessa busca de um Quinto Império que se tarda em cumprir: “Soltem de novo as amarras. / Rasguem o mar que há-de vir. / O tempo é das cigarras / (mulheres de branco a sorrir).”
Muito mais poderia ser dito sobre este livro de poesia com que Carlos Carranca nos presenteia, tal é a extensão e profundidade do seu conteúdo, mas nada do que possa ser dito substitui a magia do contacto pessoal e directo com os seus versos, pelo que termino desafiando todos os presentes a embarcar na aventura de descobrir os tesouros escondidos que repousam no fundo deste mar de sentimentos que Carlos Carranca tão lucidamente materializou.

1- CARRANCA, Carlos – Frátria. Mar da Palavra, 2008.
2- Ideia expressa por José Fernando Tavares no seu texto intitulado Do “Mar Português” Ao ”Mar do Inferno”: Uma Leitura de Frátria de Carlos Carranca.

2 Comments:

Blogger Balbino said...

Alguém me envia o livro?

2:41 da tarde  
Blogger António Viriato said...

Caro Amigo Carlos Carranca,

Aqui venho de novo pagar-lhe o meu modesto tributo, pelos momentos de excelente convívio que ontem nos proporcionou a todos quantos se dirigiram ao jardim do Palácio do Beau Séjour.

Felicito-o, em particular, pela sentida interpretação daquela magnífica canção do portentoso Zeca, «A Morte Saiu à Rua» , trágica, mas bela, na sua funda significação, pelo poema que a sustenta e pelo apropriado arranjo musical, ali ampliado pela colaboração oportuna do seu júnior.

Valem estes preciosos momentos, acompanhados de boa música, soberba poesia e vozes inspiradas, de ontem, de hoje e, afinal, de sempre, como a do grande Luís Góis, ainda felizmente bem vivo, firme e sonoro, como pudemos comprovar.

No meio da presente enxurrada de mediocridade que literalmente nos submerge, só pela arte, parece, já nos podemos sublimar ou ressarcir.

Daí que nos cumpra valorizar os poucos momentos de excepção que se nos deparem. Nunca como aqui veio mais a propósito o velho conselho latino do Carpe Diem !

Do livro gostei bastante, desde logo do título – « Frátria » - espaço utópico de que muito andamos carenciados e, do que já li, destaco, se mo permite, os poemas «Mar Português» , «Pátria», « Telefonema à moda de Tóssan», « Zeca Afonso», «Carta a Anto», « Retrato do Pai», «S. João da Madeira», «Cemitério», «Aleluia» «Escrever», «Vida II», «Balada do Tempo» e, em especial, as referências que nos demais encontro a Pessoa, a Torga e ao «nosso» Unamuno, se assim o pudéssemos designar a este concidadão da Pátria do Sonho, da Ética e do Pensamento, ilustre companheiro daqueles espíritos de escol que, ainda hoje, nos redimem da «apagada e vil tristeza» em que vivemos todos os que não se conformam, nem desistem de sonhar outra realidade, mais justa e mais fraterna, como se usava dizer.

Entretanto, continuarei a lê-lo e a saudá-lo, como merece.

Um forte abraço.

PS : Estimo que tenha gostado do livro de José Pedro Machado que tive o prazer de lhe oferecer, no ano passado.

3:49 da tarde  

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