Carlos Carranca - neste lugar sem portas

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

COIMBRA À GUITARRA
Georges Leroux*


Os antigos reflectiram muito sobre as profundas alianças entre a poesia e a música; admiraram nelas uma cumplicidade tão natural que lhes parecia brotarem ambas da mesma fonte.
Todas as culturas possuem o seu instrumento e também todas querem dar a esse instrumento a palavra do poema. Ninguém sabe como é que esta história começou e pode contar-se muita coisa acerca da preponderância dos tambores e das flautas no aparecimento das primeiras músicas, no acompanhamento das primeiras narrativas.
À roda de fogueiras, os contadores de histórias dão lugar ao canto e, como acontece na Ilíada, a música invade o poema. Antiga é a arte que alia a voz e o instrumento, mas nenhuma parece ter tido maior proximidade com o poema como a guitarra, quiçá devido à sua simplicidade. A cítara indiana e grega, o alaúde árabe partilham essa espécie de parentesco campestre com a rapsódia dos contadores de histórias. Vemo-los nas pinturas dos vasos, a cantar os feitos dos heróis e há sempre um instrumento por perto.
Todas as cidades do Mediterrâneo conhecem a guitarra e todas lhe seguiram a caminhada, atravessando o lamento dos trovadores e o flamenco cigano. Àquele que observa esta história é imperativo dizer que a guitarra não gosta nada de estar só, porque ela, então, fecha-se, chama o poeta e gosta de se lhe confiar. Desde os primeiros alaúdes aos belos instrumentos modernos, ela solicitou sempre o canto e sempre consigo o levou.
Em todas as tradições onde este canto se desenvolveu como canto de um povo, a guitarra se imiscuiu como a voz solitária daquele que traz consigo o canto. Ele é, como o diz o poema de Carlos Carranca, o próprio sentimento que faz existir este canto popular, e é ao procurar ouvi-lo nas vielas de todas as cidades da Itália, da Espanha e de Portugal que melhor podemos palpar aquilo que faz brotar tal sentimento. Este canto não teria em si mesmo nenhuma directriz particular, se não encontrasse na guitarra uma aliada tão próxima que acabou por se tornar a companheira indispensável de tudo o que exprime a alma popular. Quando, em contrapartida, a melodia surgiu, fica a saber-se que a tradição que a traz é tão antiga como o instrumento e tem a mesma voz. É por essa razão, sem dúvida, que o poema do fado está tão intimamente ligado à guitarra, porque o canto que o constitui não conheceu, e não conhece ainda, uma existência em que ela não lhe esteja associada. O lamento, o apelo, a invocação e, inclusive, até a reivindicação política – uma vez que o fado, sabemo-lo sobejamente desde José Afonso, pode ser isso também – fundiram-se no instrumento, a ponto de se tornarem indissociáveis – e é esta alma popular que Carlos Carranca retoma nos seus poemas.
Não somente nas palavras e nas músicas dos grandes guitarristas que ele evoca – como Carlos Paredes, o maior de todos – mas também e profundamente na língua de todos aqueles para quem o fado é emoção da vida, expressão da existência. Quando escreve que o fado é o sentimento, ele quer, sem dúvida, dizer que o fado exprime a emoção, mas diz algo mais: o fado, nesta fusão da palavra e do instrumento, é a própria experiência desse sentimento, dessa vida exposta, posta a nu na mais estreita viela de Portugal. Exprime o fado a própria vivência num mundo que apela ao amor. Com efeito, há no âmago da experiência da música popular, um pedido, um apelo, que toda a tradição do fado manteve, tanto a de Coimbra como a de Lisboa. Nos seus poemas, Carlos Carranca exprime esse apelo, confia-o àquilo que na guitarra é reivindicação do indivíduo a quem este sentimento arrasta e faz existir.
Gosto desta ideia de, conduzindo-o ao seu limite social e político, o sentimento do fado ser arte redentora e fraternal, como voz do povo que encontra a sua plena soberania neste momento da História de Portugal, trazido pelos fadistas de todos os tempos. Redentora, esta arte foi-o da maneira mais profunda, porque salvou do desespero um povo desamparado e submetido à tirania: a mais simples guitarra, o mais despojado dos poemas podiam manter no “sentimento” da vida todos aqueles que então duvidavam da sua alma e da sua capacidade de continuar. Existir no fado, como Luiz Goes nos dá o testemunho cada vez mais vivo, o mais inquietante, quer isto dizer aceitar de confiar à música esse apelo, esse pedido. Mas esse poder de salvação, é preciso notar, num país tão católico como Portugal, nunca foi buscar a religião patrimonial, nunca a incluiu no repertório dos seus símbolos: o fado desenvolveu o seu espaço poético: o de uma solidão com que cada um se pode identificar. A guitarra é a pessoa que canta, e ela canta nessa solidão melancólica que a reconduz não a uma esperança religiosa, mas a uma fraternidade sempre inscrita já no mais profundo tecido da sociedade. Ninguém pode ouvir Amália Rodrigues sem sentir esse laço fundamental com uma esperança que é a de todos. Essa a razão que me faz apreciar, na poética de Carranca, esse apelo à música, na sua força de fraternidade, nessa reclamação do laço fraternal. Os fadistas compartilham com os buzuquistas gregos esta solidariedade no apelo, mesmo se não experimentam nunca essa alegria desenvolta. Poder-se-ia compará-los politicamente, em particular o rebetiko, que é, como o fado, um canto rebelde e, por vezes, desesperado, mas isso seria para nos apercebermos de que o fado, no seu quase exclusivo recurso à guitarra, consagrou a solidão do instrumento como solidão do apelo: neste músico sozinho, sentado na sua cadeira ou no seu banco expõe-se, de facto, aquele que não somente acompanha o canto, mas com ele se identifica como músico solitário. Por comparação, o tampo do buzuque representa a sociedade, enquanto que, no fado, esse efeito de conjunto não existe: há, de preferência, o apelo à fraternidade e, na melancolia à qual se costuma associar o fado, é primeiro preciso compreender essa solidão de que a guitarra é o exemplo. Isso Carranca o diz melhor que ninguém, e quiçá de modo especial nessa relação da guitarra com o corpo da mulher amada.
Como é que esta solidão pode ser, simultaneamente, uma arte poética do sentimento de existir e uma ânsia política de fraternidade, expõe-o Carlos Carranca numa poética paradoxal. «O povo é português, escreve, e a guitarra teima em tocar-lhe o coração.» É esse o elo de um coração de partilha que todas as sociedades evocam como coração fraternal: todos estão convidados a reconhecerem-se nesse instrumento solitário que os representa; todos podem encontrar aí o seu próprio apelo; mas, fazendo-o, todos sabem também que, nesse gesto, deixam a sua solidão e encontram toda a história e toda a tradição que conduziu o povo até ele. Este é o paradoxo de uma identidade melancólica, mantida na solidão do instrumento. Em todos os seus poemas, o povo surge como sujeito do fado, como sujeito do poema, como portador desse tema popular que junta e reúne no canto todos aqueles que a angústia do tempo isola. Em toda a cidade, em todas as suas praças, esse elo é esperado, esse sentimento está exposto como o próprio sentimento de uma história que se prolonga e vem do fundo dos tempos. Todas as músicas populares têm em comum essa força da origem, essa densidade do acolhimento num canto que é levado pelo tempo, mas são, sem dúvida, o fado e a sua guitarra a arte que mais profundamente lhe ilustra essa riqueza.
O mistério da guitarra está aí; ela dirige-se àquele que sofre no tempo, mas ela apresenta-lhe o exemplo da salvação possível. É política a poesia de Carranca? Não hesitaria a afirmá-lo, na condição de manter tudo aquilo que nela associe o povo à história desse sentimento profundo da existência, a esse apelo que nem sempre é reivindicação de soberania. Todavia, a liberdade volta sempre, e sempre exige e reclama, e sempre a salvação evocada pelo poeta ultrapassa essa cura dos males da alma no sentido do destino do povo, da sua felicidade.
Uma simples guitarra pode tudo isso e Carranca mostra que o poema pode carregar todo o registo desse sentimento, pode exprimir toda a reivindicação humana de ternura e de justiça, todo o pedido de amor e de paz. Era necessário que ele fosse o grande poeta que é para que a voz do fado surgisse com tal verdade, para que nós o ouvíssemos no cerne da emoção do seu lugar fraternal.

* Professor de Filosofia da Universidade de Montreal, especializado em Filosofia Antiga, é considerado um dos maiores helenistas do Quebeque.

Tradução de José d’ Encarnação – Professor Catedrático da Universidade de Coimbra.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O CAPITALISMO VISTO POR MIGUEL TORGA


O mundo está irremediavelmente perdido, porque é incorrigível a voracidade capitalista e a nossa obstinação consumista. (...) Contemporâneos passivos de uma civilização técnica e industrial, que nos serve o necessário poluído e o supérfluo esterilizado, já nem sequer nos indignamos de a ver acabar assim, pletórica e podre.

MIGUEL TORGA, Diário XVI, Coimbra, 4 de Junho de 1992

sábado, fevereiro 14, 2009

EDUCAÇÃO PS

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

José Sócrates em 2004

Peace


O triunfo dos porcos?


quarta-feira, fevereiro 11, 2009


segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Um país "faz de conta"

Está bem... façamos de conta

Por Mário Crespo
(in "Jornal de Notícias" de hoje)

Façamos de conta que nada aconteceu no Freeport. Que não houve invulgaridades no processo de licenciamento e que despachos ministeriais a três dias do fim de um governo são coisa normal. Que não houve tios e primos a falar para sobrinhas e sobrinhos e a referir montantes de milhões (contos, libras, euros?). Façamos de conta que a Universidade que licenciou José Sócrates não está fechada no meio de um caso de polícia com arguidos e tudo.Façamos de conta que José Sócrates sabe mesmo falar Inglês. Façamos de conta que é de aceitar a tese do professor Freitas do Amaral de que, pelo que sabe, no Freeport está tudo bem e é em termos quid juris irrepreensível. Façamos de conta que aceitamos o mestrado em Gestão com que na mesma entrevista Freitas do Amaral distinguiu o primeiro-ministro e façamos de conta que não é absurdo colocá-lo numa das "melhores posições no Mundo" para enfrentar a crise devido aos prodígios académicos que Freitas do Amaral lhe reconheceu. Façamos de conta que, como o afirma o professor Correia de Campos, tudo isto não passa de uma invenção dos média. Façamos de conta que o "Magalhães" é a sério e que nunca houve alunos/figurantes contratados para encenar acções de propaganda do Governo sobre a educação. Façamos de conta que a OCDE se pronunciou sobre a educação em Portugal considerando-a do melhor que há no Mundo. Façamos de conta que Jorge Coelho nunca disse que "quem se mete com o PS leva". Façamos de conta que Augusto Santos Silva nunca disse que do que gostava mesmo era de "malhar na Direita" (acho que Klaus Barbie disse o mesmo da Esquerda). Façamos de conta que o director do Sol não declarou que teve pressões e ameaças de represálias económicas se publicasse reportagens sobre o Freeport. Façamos de conta que o ministro da Presidência Pedro Silva Pereira não me telefonou a tentar saber por "onde é que eu ia começar" a entrevista que lhe fiz sobre o Freeport e não me voltou a telefonar pouco antes da entrevista a dizer que queria ser tratado por ministro e sem confianças de natureza pessoal. Façamos de conta que Edmundo Pedro não está preocupado com a "falta de liberdade". E Manuel Alegre também. Façamos de conta que não é infinitamente ridículo e perverso comparar o Caso Freeport ao Caso Dreyfus. Façamos de conta que não aconteceu nada com o professor Charrua e que não houve indagações da Polícia antes de manifestações legais de professores. Façamos de conta que é normal a sequência de entrevistas do Ministério Público e são normais e de boa prática democrática as declarações do procurador-geral da República. Façamos de conta que não há SIS. Façamos de conta que o presidente da República não chamou o PGR sobre o Freeport e quando disse que isto era assunto de Estado não queria dizer nada disso. Façamos de conta que esta democracia está a funcionar e votemos. Votemos, já que temos a valsa começada, e o nada há-de acabar-se como todas as coisas. Votemos Chaves, Mugabe, Castro, Eduardo dos Santos, Kabila ou o que quer que seja. Votemos por unanimidade porque de facto não interessa. A continuar assim, é só a fazer de conta que votamos.

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Em nome da liberdade


Fonte:Público

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

UMA QUESTÃO DE DIGNIDADE

Seis razões que me levam a não apresentar objectivos individuais (OI)….

…pela memória, pelo futuro, pela dignidade!


1 – Tenho direito a que o meu trabalho dos dois últimos anos seja avaliado de uma forma justa, rigorosa e séria. Trabalhei de forma honesta, empenhada, correcta e cumprindo sempre os meus deveres profissionais. Aquilo que fiz na escola não pode, agora, ser objecto de uma brincadeira de “faz de conta que era uma vez uma avaliação”. Recuso-me, em nome do profissionalismo, a pactuar com este simulacro de avaliação que apenas serve para ganhar votos da opinião pública. Dediquei parte da minha vida à escola pelo que, sendo coerente, só posso indignar-me por tudo o que se está a passar.

2 – Quero continuar a ensinar os meus alunos, a prepará-los como cidadãos responsáveis e íntegros. São eles que estão em primeiro lugar, a sua formação, o seu desenvolvimento pessoal. É nisso que continuarei a empenhar-me e não a construir “umas fichas” para enfeitar as estatísticas do Ministério da Educação. Tenho o direito à valorização profissional, a continuar a preparar as aulas, a envolver-me em projectos…

3 – Quero continuar a entrar na escola de cabeça levantada, a ensinar o que são valores e a importância dos princípios na acção humana. Quero continuar a falar de solidariedade, de justiça e de dignidade como princípios basilares da nossa cultura e que devem ser preservados. Quero continuar a falar de respeito sem que isso soe a palavra falsa. Que os meus alunos saibam que quando falo de respeito, estou a falar a sério! E que a cidadania é uma prática e não uma palavra para enfeitar programas escolares!

4 – Não me vendo por uma ameaça de dois anos sem progressão na carreira (o que é isso para quem esteve congelado tanto tempo?), nem por uma promessa de um 4º escalão.

5 – Não esqueço as injustiças do concurso dos titulares que, em muitos casos, deixou de fora os melhores professores das escolas. E que fez com que a sorte favorecesse outros…Também não esqueço tudo o que os responsáveis do Ministério da Educação têm afirmado, publicamente, sobre os professores.

6 – Não esqueço o que os meus pais me ensinaram: a honra, a honestidade e a coragem são importantes! Devemos cumprir o nosso dever! Não esqueço que tenho uma filha à qual gostaria de dar lições de vida – a dignidade não tem preço.


Maria do Céu Pires,
Professora Titular, Escola Secundária Rainha Santa Isabel - Estremoz