quinta-feira, abril 26, 2007

O valor da palavra


O texto de Eduardo Aroso intitulado "O Espírito da raiz de Carlos Carranca" chamou-me a atenção sobre dois factos importantes: de um lado - e talvez este aspecto seja o mais importante - deu-me a conhecer extractos da poesia de Carlos Carranca, que eu, infelizmente não conhecia. E quando digo infelizmente será com toda a sinceridade - e nem se adivinha outra forma ou outra intenção de poder ver esta questão do meu desconhecimento da excelente poesia de Carlos Carranca. As justificações são quase tantas como aquelas que eu teria para dizer caso conhecesse desde logo a poesia deste autor.
Não se conhece porque se não pode conhecer tudo, e conhece-se, ás vezes, porque calha, porque acontece, breve, porque no meio de todo um universo - que até é pequenino - é impossível saber-se de tudo aquilo que é impresso e sobretudo é impossível conhecer-se tudo aquilo que tem valor. As voltas com a indigestão de infindos "barretes" enfiados à conta do prestígio de nomes sonantes da - ainda nossa - literatura, estrondosamente envol­vidos pelos bombardeiros publicitários de editoras/ promotoras de renome, desconfiamos um pouco de tudo, mesmo do valor daquilo que depois verifica­mos ter valor. Mesmo nestes casos, muitas vezes não deixamos de procurar debaixo das nossas camas, onde tradicionalmente se escondem os ladrões das nossas verdades, na ânsia de confirmar vezes sem conta a ausência destes nas noites duvidosas. Assim, às vezes chegamos mais tarde às coisas que têm valor, outras vezes não chegamos a chegar, mas, mesmo quando chegamos tarde vale a pena e quando não chegamos temos sempre a hipótese de poder um dia vir a chegar.
Quase sem saber - vá lá, fiz de propósito! -encontro-me centrado no ponto segundo que referi no início e que gostaria de desenvolver hoje e que aliás é referido nesta mesma crítica (mais crónica que crítica) de Eduardo Aroso. (...) "Dou-lhe a minha palavra de honra! Palavra de honra que é verdade!" Homens para quem a palavra tem a verdade de uma assinatura. Quem conhece a poesia de Carlos Carranca sente que nela brota a Palavra antes da letra, ainda que em atitude silenciosa, nurna inti­midade profunda, palavras que só ele ouve, antes dos outros.
Obviamente que o poema não tem ainda a certidão de nascimento, mas ele aí está em gestação, o ente. (...) " Que será o poema-escrito -depois de falado a sós.
A separação entre a palavra escrita e a palavra dita apela, segundo aquilo que se entende das palavras de E. A. à primazia da sonoridade e/ou da interioridade, o que certamente se enquadra no espírito de uma frase de Antonino Pagliaro em "A vida do sinal" que é a seguinte: "(...) Possuidor da palavra, o homem tornou-se senhor do mundo da natureza e do mundo dos espíritos. Por isso Novalis dizia: 'A palavra é obra de magia: chamamos um espírito e ele vem".(...). Ou seja, e inserindo esta frase no contexto do trabalho de Eduardo Aroso -entendendo que ela está inserida, por sua vez, no contexto do trabalho de Aroso - poderia certamente afirmar-se que entende este autor que a Palavra sendo primeira - em termos genéticos - é antes da letra (segunda em termos genéticos) Poema em gestação. A letra aparece como uma certidão de nascimento, uma afirmação visível da vida. A Palavra é palavra de espírito, que é a anteriormente referida unidade entre significado e significante que E. A. vai buscar a S. Paulo.
Só que essa palavra que é tudo (é a verdade) sendo identidade absoluta entre o ser (gerado) e aquilo que se afirma do ser (ser gerado escrito) me leva a uma outra citação, desta vez de Giambattista Viço: "(...) A primeira (forma de linguagem) é a linguagem muda, ou seja, entender e significar as coisas na sua essência, sem necessidade de recorrer à sua objectivação formal: por outras palavras, trata--se do intelecto puro, que é próprio da divindade, que realiza a expressão e a compreensão sem qualquer intermediário de ordem física. (...)". Nem mesmo tendo como intermediária a palavra/símbolo fónico ou jogo simbólico interior, anterior à palavra símbolo escrito.
O intelecto puro em Viço tem a mesma signifi­cação daquela que foi dada pelos gregos e por Platão quando interpretava o sensível como o múltiplo (a pluralidade, o que muda, o que parece ser) e o inteligível (ou objecto último da razão prá­tica em Kant) como o uno (a unidade, o permanente, o que é). Logo, a linguagem muda seria, por outras palavras, a coisa em si (essência/existência/subs­tância) .
Portanto, e seguindo este raciocínio, facilmente poderemos chegar à conclusão que Eduardo Aroso entende que Carlos Carranca trabalha o poema enquanto intelecto puro, ou quase puro porque simbolizado pela palavra interior, independen­temente (ou com ausência de preocupação) sobre a forma que a letra posteriormente virá a dar-lhe. Esta afirmação não é feita taxativamente por E. A. mas poderemos chegar a ela pela leitura do texto, ou seja, analisando uma manifestação interior de Eduardo Aroso anterior às suas palavras escritas cujas pistas se espalham ao longo do texto. Ora, a meu ver, e sem pôr em causa a qualidade da intervenção de Eduardo Aroso, parece-me que o trabalho gráfico - chamemos-lhe assim -, ou chamemos-lhe melhor, o trabalho de composição da letra, da palavra, desperta sonoridades, imagens e todo um conjunto complexo de identidades subjectivas que estaríamos longe de poder considerar se Carlos Carranca se não dedicasse a um laborioso trabalho de composição escrita.
Não vou aqui debruçar-me mais que o devido sobre a questão da comunicação e da necessidade de comunicar, nem sobre o efeito redutor que à comunicação Henri Bergson, por exemplo, atribui no seu Ensaio sobre os dados imediatos da Consciência, no que se refere à sensação. É meu entendimento que Eduardo Aroso, de certa forma, pretende poupar a poesia (de Carlos Carranca) a esse efeito redutor que, contudo, devemos entender não como uma fatalidade, mas como uma necessi­dade da comunicação que faz tanto parte dela (comunicação) como da palavra (da interiorizada e da comunicada).
Parece-me claro que, tal como Bergson (e qualquer pessoa que sobre essa questão reflicta pode chegar à mesma conclusão) que a necessidade de comunicar algo através de palavras (ou de meter sensações em palavras, sejam elas ditas, pensadas ou escritas) acaba por resultar não num retrato fiel daquilo que foi pensado através do referido intelecto puro, do qual emana (ainda em Platão posterior) uma multiplicidade inteligível ou ideal, mas acaba sim por resultar em algo que será, em última análise, uma imagem do pensado. E. A. refere que "Quem conhece a poesia de Carlos Carranca sente que nela brota a palavra antes da letra" mas pensamos que não está a referir-se à sensação em sentido estrito mas sim à sensação como crença (bilief).
Para esclarecer melhor este problema - uma vez que o termo e o conceito de sensação pode suscitar dúvidas - devemos levar em consideração, desde logo, que o termo sensação em Henri Bergson tem o significado que ele mesmo lhe dá, e que não difere daquele que é referido por Platão e alguns filósofos posteriores: a sensação é uma forma mediata de conhecimento (entendimento) entre o intelecto e o conhecimento racional. Se ele vem - o conhecimento racional - pronto a vestir de outras vidas anteriores ou se resulta de um processo de compilação, ordenação, indução, dedução, etc. é indiferente para este plano de análise.
Ora, se é verdade que Bergson nos aponta as limitações da linguagem como expressora da sensação, diz-nos ao mesmo tempo que tal facto se deve, em parte à sua pretensão universalizante. Por outras palavras se cada palavra significasse aquilo que tem a significar tal teria de ser visto numa perspectiva não universal, ou seja, tal tinha de ser visto numa perspectiva individual ou particular. Cada pessoa (ou cada grupo) teria a sua linguagem que mais se afastaria da sua essência quanto mais geral fosse ou pretendesse ser.
Ainda, segundo Bergson não só a linguagem nos leva a acreditar na invariabilidade das nossas sen­sações, como nos induz em erro, por vezes, quanto ao carácter da sensação experimentada, porque, de certa forma, ela mesma (palavra) é forma (recipiente) e formadora (envolvente). "Em síntese, a palavra com contornos bem definidos, a palavra em bruto, que armazena o que há de estável, de comum e, por conseguinte, de impessoal nas impressões da humanidade, esmaga, ou, pelo menos, encobre as impressões delicadas e fugitivas da nossa consciência individual. Para lutarmos com armas iguais (contra a palavra que não queremos utilizar) as sensações deveriam exprimir-se por palavras precisas; mas, as palavras, logo que formadas, voltar-se-iam contra a sensação que lhes deu origem, e, tendo sido inventadas para testemunhar que a sensação é instável, acabariam por lhes impor a sua própria estabilidade. "(Bergson) (1)
Onde regressamos às palavras ^le Eduardo Aroso quando nos refere "Dou-lhe a minha palavra de honra! Palavra de honra que é verdade!"
A hierarquia da palavra, por muito esforço que façamos para manter puro este campo, não se manteve inalterada desde o seu aparecimento cronológico (primeiro a palavra/som/interiorizada, depois a escrita/letra). Em certo sentido, e mesmo em todo o sentido, a influência da escrita sobre a palavra (colocando agora a palavra como produto do intelecto puro Kantiano, ou seja, despido de toda a sensação) foi decisiva não só no momento em que apareceu mas também nos tempos posteriores, o que não é, manifestadamente o entendimento de Eduardo Aroso:"(...) (pois que, repito, antes da letra escrita há a Palavra e o senhor da Palavra) (...)"• Passamos ainda aqui por alto uma outra componente anterior à palavra a que Piaget chama de jogo simbó­lico, que Wittgenstein refere como jogo simbólico de palavras na sua referência a St°. Agostinho, e que nos poderia levar a uma medição Estóica do estádio da palavra.
A Palavra de honra, a palavra que representa coisas (a essência daquilo que se diz) aplica-se a verdades não substanciais, ou seja, a verdades que mais não são que conformidades entre o afirmado e o agido. A palavra de honra, a verdade, não é a verdade absoluta: por outras palavras, não é a coisa em si, o númeno. É o fenómeno. Igualmente a Pala­vra de Carlos Carranca não existe em si senão depois de ser afirmada (poderá existir para ele) mas em qualquer dos casos não é a coisa que pretende repre­sentar, é a sua representação.
Logo, será verdade que só ele as ouve (as palavras) antes dos outros, mas não é menos verdade que só ele as compõe (ou decompõe) em letras e em palavras escritas. E que - seja-me permitido adivinhar - uma composição tão bem elaborada ou nasce já assim e o homem é quase perfeito no processo de transmissão do pensado para o comunicado ou o homem não é assim tão perfeito neste campo e aperfeiçoa-se à posteriori, construin­do palavras escritas que, em conjunto, representem da melhor forma aquilo que foi objecto do seu pensamento puro e aquilo que ele transmite (ou consegue transmitir) através da escrita. E, franca­mente, parece-me ser, e seguramente é, o caso de Carlos Carranca. Não se lhe retira nenhum mérito por trabalhar (esculpir) a palavra, antes se lhe elogia a capacidade de nos fazer sentir, tão bem, a unidade da palavra no poema.
Guitarra, meu bordão de peregrino!... Ouve-se o destino em tua voz misteriosa sempre ausente...
Guitarra - vidente rosa a rosa
desfolhada no presente pétala a pétala
Senhora de Portugal! Guitarra - nossa - condição. Guitarra - povo. Guitarra universal!
(Poema de Carlos Carranca)

(1) - O sentir de Bergson, neste plano, tem bastante a ver com a institucionalização da palavra como detentora de um conteúdo próprio que lhe é estável, ou pelo menos, que lhe é mais estável do que são para nós as sensações experimentadas. Em nenhum lugar é tão flagrante este esmagamento (do verdadeiro significado da sensação experimentada) como nos fenómenos do sentimento. Um amor violento, uma melancolia profunda invadindo a nossa alma: são infindos elementos diversos que se fundam, se penetram, sem contornos precisos, sem a menor tendência a exteriorizarem-se uns relativamente aos outros; a sua originalidade tem esse preço. E inexprimível.
O próprio sentimento é um ser que vive e se desenvolve, e, consequentemente, muda sem cessar. Vive porque a duração em que se desenvolve é uma duração cujos momentos se penetram. Ao procurarmos definir esse sentimento, um sentimento dado, julgamos ter analisado o nosso sentimento, mas, na verdade, substituímo-lo por uma justaposição de estados inertes, traduzíveis por palavras, e que constituem cada um o elemento comum e consequentemente o resíduo impessoal das impressões experimentadas num determinado caso pela sociedade inteira.
Precisamente por isso ( por causa da necessidade de exteriorizar) o nosso sentimento ao exprimir-se por palavras só nos proporciona uma sombra dele mesmo

Humberto Teixeira
in Artes e Artes, nº21 de Agosto de 1999.

2 Comments:

Blogger sapateando... said...

Deus falou o Mundo.
E porque os poetas são deuses, o Carranca falou o seu "coração ao pé da boca".


NOTA: Queria aqui apenas sugerir o seguinte: que tal pôr mais alguns dos seus poemas?! Estou apaixonada pelas suas "Raízes" (apenas uma sugestão)

12:25 da tarde  
Blogger sapateando... said...

Correcção: "falou" não. FALA!

12:25 da tarde  

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