sexta-feira, novembro 30, 2007

Carlos Carranca e a Chama de Torga em Cada Um de Nós

Comentário ao espectáculo “Aqui, Diante de Mim” (Homenagem a Miguel Torga no Casino Estoril em comemoração do centenário do seu nascimento), 24 de Novembro 2007.

Sou um jovem estudante de medicina em Coimbra e confesso que desconheço em grande parte a obra de Miguel Torga, muito embora o seu entusiasmo pelas montanhas agrestes da paisagem transmontana, bem como a transparência das suas palavras no que diz respeito à mais subtil natureza humana, me tenham chamado a atenção para o seu nome. Existe em mim uma profunda admiração pela tranquilidade majestosa das montanhas – silêncio que nos confronta implacavelmente com o ruidoso desassossego das nossas existências em roda-viva. Quanto à necessidade de procurar um sentido para a vida humana, está latente em cada um de nós e é uma busca que começa precisamente por compreender qual a nossa verdadeira natureza.
Quiseram as circunstâncias que me deparasse com a voz imortal, possante e cheia de emoção de Miguel Torga, levada ao palco por Carlos Carranca, numa homenagem feita pela Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa no Casino Estoril, e que contou com a participação dos alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais.
A homenagem consistiu numa recriação de alguns momentos da vida de Torga, partindo de alguns dos seus textos e poemas. Juntando canto, poesia, dança e imagens, o espectáculo deu ao público a oportunidade de contactar com o poeta e o seu mundo, numa atmosfera de grande intimidade e cumplicidade. A figura imponente mas humilde de Carlos Carranca com os seus pés descalços simbolizou bem toda a força telúrica de Torga, em uníssono com a sua condição humana. Em pouco mais de 45 minutos transmitiu-se toda uma vivência de um homem que soube dar o devido valor às raízes humanas que nos prendem à vida.
Presenciei um espectáculo que deu a conhecer Torga de uma forma muito prática, através da sua obra, sem qualquer exercício de erudição. Foi um momento de profunda interiorização poética, no qual percebi claramente o quanto as palavras de Torga ressoam dentro de mim. Ligam-nos a mesma natureza humana e a mesma inquietação. Na verdade, basta existir neste transitório mundo desconhecido e ter uma completa consciência disso para que a necessidade de encontrar respostas surja sem dó nem piedade. É uma busca que não tem fim, mas a única capaz de nos ir libertando, aos poucos, das amarras invisíveis da nossa própria inconsciência.
Como diz Torga, o importante é aceitar partir nessa aventura, o ponto de chegada pouco importa. Até porque respostas absolutas nunca se encontram, ou não fosse este um mundo em que a mais básica ilusão se toma facilmente por verdade à luz do nosso entendimento. Mas é no seio desta aparente realidade que cabe ao homem encontrar-se a si mesmo, descobrir a sua essência de poeta e, com a mesma lucidez de Torga, compreender que recebemos de Deus uma grandeza natural que dispensa qualquer tipo de submissão. Compreender o verdadeiro valor da existência humana passa realmente por reconhecer que é nesta nossa experiência telúrica que se encontram as oportunidades perfeitas para a nossa completa realização espiritual.
Reconhecendo o valor da herança que Torga deixou a Portugal, que nenhum de nós descanse enquanto não conquistar também dentro de si a liberdade necessária para manifestar toda a grandeza que se esconde dentro de cada ser humano. No nosso espírito arde a mesma chama de faíscas irrequietas que se encontra em todos os poetas.
De facto, uma homenagem capaz de (re)despertar consciências para o grande poeta que foi Miguel Torga. Uma excelente forma de dar a conhecer um autor e que me contagiou com uma vontade sincera de conhecer melhor a sua obra. Um exemplo a seguir, num momento em que é muitas vezes difícil cativar os jovens para os grandes autores da nossa língua e para a importância que a literatura representa como ponto de partida para uma compreensão mais profunda de nós próprios.

Por João da Cruz
(finalista de Medicina da Univ. de Coimbra)