segunda-feira, maio 04, 2009

“A economia vai derrotar esta democracia”



Medina Carreira, antigo ministro das Finanças, afirma que a economia vai derrotar a democracia de 1976. José Sócrates, diz, é um homem de circo, de espectáculo.

Correio da Manhã/Rádio Clube – Porque é que dizem que o senhor é um pessimista tremendista quando fala da economia portuguesa?

Medina Carreira – Quando as pessoas se qualificam antes de discutir é sintoma de que não querem discutir. Eu nunca consegui um debate com um optimista. Já tenho sugerido.

ARF – E ninguém aceita?

- Pretextam isto ou aquilo, depois estão doentes, depois ficam doentes de uma perna e nunca um optimista quis vir publicamente fazer um debate. É um não argumento. Porque o argumento é dizer o que se pensa e porque é que se pensa e a parte contrária contradiz. Se eu digo que o senhor é um pessimista eu acabei com a conversa. O senhor é optimista, a mesma coisa. Se é isto que chega para esclarecer a opinião pública estamos conversados.

ARF – E as questões da economia não se podem discutir assim.

- Um dia disse a um colega vosso: o senhor não percebe que isso é uma burrice?

LC – Há uma grande distância entre o discurso de pessoas que estão de fora e o discurso de pessoas que estão por dentro. Entre qualquer membro do Governo e pessoas como o doutor Medina Carreira há uma distância enorme que as pessoas não compreendem.

- Mas convide um deles um dia a vir aqui, ficar desse lado e vamos ver as razões das diferenças.

ARF – O que nos dizem do Governo é que esta crise internacional chegou quando nós estávamos a caminhar muito bem. Até final de 2007 estávamos óptimos, ainda em 2008 estávamos bons, de repente aparece isto e não temos culpa nenhuma disto. É verdade?

- Bom, culpa efectivamente não temos. Isto nasceu lá fora e chegou aqui como chegou a todos os cantos do Mundo. Eu não atribuo culpas a ninguém. Esta crise é traumatizante, difícil e com efeitos dramáticos do ponto de vista social que todos os dias presenciamos com despedimentos em série. É uma coisa terrível que nunca tínhamos vivido, nós que ainda estamos vivos e eventualmente válidos. Mas esta é uma crise para a qual não contribuímos e de que nós nos livraremos só quando lá fora ela acabar. Quando a Alemanha, a França, a Inglaterra e os EUA resolverem o problema ele fica resolvido cá.

ARF – Fica resolvido?

- Ficamos é com os efeitos terríveis cá. Mas estes efeitos imediatos e directos da crise eles desaparecem cá quando desaparecerem lá fora.

LC – Qual é a diferença entre um país como Portugal e um país como a França ou a Alemanha a seguir à crise?

- A França é um país que caminha paralelamente connosco, também caminha muito mal. A Alemanha caminha bem, é um país economicamente poderoso, com gente preparada, uma sociedade organizada, em que se cumprem horas, em que se cumpre a palavra. É outra coisa. Isto cá para este lado é outra coisa. Portanto, quando a Alemanha sair da crise sairá necessariamente melhor do que a França. A França apresenta hoje problemas difíceis como os nossos. E um deles é o desequilíbrio externo. Os franceses estão a produzir muito menos do que aquilo que gastam. Estão também a endividar-se no exterior. A França está menos mal do que nós, mas também não está bem. Em Portugal temos a preocupação de olhar lá para fora e eu creio que a maior parte das pessoas que se preocupam com o exterior é porque não sabem dizer nada sobre o interior. Nós é que temos de resolver os problemas do interior.

ARF – Problemas que são muito antigos, não é verdade?

- São antigos. Aqui neste caso é que esta crise veio de fora e sairá quando se resolver lá fora. Entretanto ficam mazelas. Agora, quando ela acabar ficamos com o nosso problema, com a nossa crise. Porque a nossa crise já estava cá.

LC – Com os mesmos problemas que já tinha.

- Com os mesmos problemas que já tínhamos e ficamos pior. Nomeadamente ficamos com um desemprego muito maior, muito mais pobreza, muito mais desigualdades, muito mais desânimo na população. Por conseguinte, com a crise, para além destes danos imediatos, são danos que vão surgir através dos seus efeitos futuros. Mas aquilo que eram as nossas fraquezas já cá estavam e virão ao de cima.

LC – Como é que temos capacidade para resistir a isso no futuro com uma educação fraca, com uma justiça fraca?

- O problema aqui em Portugal, visto da perspectiva política, é que nós não sabemos o que é que os dirigentes políticos, como José Sócrates, do PS, pensam que é o nosso grande problema. Ainda não vi dito o nosso grande problema é este.

LC – Ele diz que é o desemprego.

- O desemprego não é um problema, é uma consequência de alguma coisa que não está bem. Se resolvermos alguma coisa que não está bem o desemprego desaparece.

ARF – José Sócrates fala muito da questão da formação.

- Mas a formação não é em si um problema. É um pressuposto daquilo que nós necessitamos para resolver o problema. Mas qual é o problema? O que derrotou o Estado Novo foi a guerra colonial. Aquilo que eu acho que vai derrotar esta democracia de 1976 é a economia.

ARF – A economia vai derrotar a democracia?

- Não sei em que termos.

ARF – Mas vai derrotá-la?

- Ai derrota. A população não vai aceitar daqui a dez anos um Estado social como aquele em que nós estamos a viver, como é evidente. Porque a população já diz, bom, prometeram-nos mundos e fundos e nós não vemos coisa nenhuma. Dizem isto agora. Só pedem sacrifícios e quando acabam é preciso recomeçar os sacrifícios. Com toda a razão. Isto vale dez, vale vinte anos, não sei se chega a trinta. E como nós temos deficiências graves não vai ser fácil sair deste estado de economia rastejante. Se eu fosse chefe do Governo o que diria ao País é que o nosso grande problema é a economia.

ARF – Porquê?

- Porque é da economia que deriva o emprego e a sua qualidade, que deriva o bem-estar, que deriva as boas expectativas, que deriva o optimismo são. É da economia.

ARF – Mas temos fraquezas porquê?

- Porque nós estamos a gastar 110, 111 e estamos a produzir 100. Para simplificar. O português está a produzir 100 euros por ano e está a gastar 110, 111 euros. Quer dizer que estamos a viver de empréstimos.

ARF – Estamos a viver acima das possibilidades.

- Acima das possibilidades. Por conseguinte, ou recuamos 10 por cento ou produzimos mais 10 por cento. É simples.

ARF – Exacto.

- Não é preciso saber altas matemáticas. Este é o estado do País.

LC – E pelo caminho em que vamos não é uma coisa nem outra?

- Estamos num caminho em que eram 107 há uns anos, 108, agora andamos pelos 110 e vai sendo cada vez pior, em princípio, porque os juros que nós devemos no exterior são cada vez maiores.

LC – No limite qual é a consequência?

- No limite a consequência é a mesma que é para mim ou para vocês se o banco não nos empresta dinheiro este mês. Ou se empresta só com um spread de 18 por cento.

ARF – Claro.

- O que é que o País vai fazer? Que é aquilo para que estamos a caminhar. É para bater na parede. Uma das coisas que pode provocar um efeito traumático muito grande do ponto de vista política e social na nossa sociedade dentro de cinco, dez anos é a possibilidade de o crédito escassear. Nós estamos a ver hoje que as grandes dificuldades da nossa sociedade resultam do facto de os bancos não emprestarem.

ARF – O crédito está caro e difícil.

- Exactamente. Se amanhã os bancos estrangeiros que nos estão a emprestar dinheiro disserem não, não emprestamos mais ou só emprestamos a 20 por cento o que é que nós fazemos?

LC – É uma boa pergunta. O que é que fazemos?

- O que é que fazemos. Bom. Temos de repente de passar de 110 para 80. Como é evidente.

ARF – De uma forma abrupta.

- De uma forma abrupta. Vamos ver. Qual é o problema da economia? Há uns políticos importantes em Portugal que quando se lhes faz contas ficam horrorizados, isso são os contabilistas, a gente só pensa no marxismo, no leninismo, nós pensamos alto. Fazer contas, não fazem, mesmo os que sabem tabuada, que aliás não são muitos.

LC – Como é que se consegue reduzir isso? Com uma reforma brutal na administração pública?

- Ouça, na Argentina reduziu-se. Pessoas a passar fome, não compram medicamentos, tudo a cair aos bocados.

LC – Imagine que era convidado a definir as prioridades do próximo Governo. Quais seriam as duas, três ou quatro das suas prioridades?

- A prioridade é esta. A primeira coisa é explicar ao País que nós temos uma economia que não vai sustentar este nível de vida.

LC – Que não chega.

- Não chega. Portanto, o eleitorado ou quer gastar 110 e produzir 110 e nesse caso temos de mudar de economia ou o eleitorado não quer mudar de economia e nós temos de passar de 110 para 100. Isso é uma escolha do votante. Se os senhores da Comunicação Social propiciarem conversas que esclareçam o eleitorado ele percebe.

LC – Qual seria a sua opção?

- Nós temos no imediato de reduzir. Eu sou partidário que logo no plano do Estado seja revisto o aspecto salarial e o aspecto dos benefícios fiscais. Eu acho que as reformas e os salários da Função Pública, a partir de um certo nível, devem ser diminuídos.

ARF – Imediatamente?

- No imediato. Para passarmos dos 111 para 108. Mas para que isto não seja uma solução no caminho da miséria nós temos de mudar. E mudar a economia é mudar as circunstâncias que permitam atrair investimentos.

ARF – O investimento estrangeiro não vem para cá neste estado de coisas?

- Não. Nós tivemos nos anos 60, 70 um factor de grande atracção de investimento. Foi a nossa entrada para a EFTA e o baixos salários. Como nós podíamos exportar com facilidade muita gente veio investir em Portugal. Muitas coisas que os senhores vêem das manufacturas, das montagens de automóveis, das cabelagens, dos electrodomésticos, do concentrado de tomate, da beterraba, isso veio tudo para aqui nessa altura. Porque o investidor nacional e estrangeiro vinham beneficiar de um factor favorável do ponto de vista do capital que era o salário baixo. Além de outros factores atraentes nessa época. Como a inexistência de sindicatos, ordem nas ruas e essas coisas que atraem o investidor.

LC – Mas o principal factor, os salários baixos, não era o ideal.

- Mas o ideal do ponto de vista da mão-de-obra não é este que se prega aqui. Nós para termos uma mão-de-obra que ganhe bem temos de ter outra escola. Nós não podemos andar a formar analfabetos e depois dizermos para arranjarem empregos bons a esta gente. A gente tem de ir à escola.

ARF – Aumentar a escolaridade obrigatória nestas condições é uma ideia má?

- Teoricamente é uma boa medida. Como mexer na Justiça também seria uma boa medida.

LC – Mas é preciso que a escola seja boa.

- Agora mexer na escola e ficar tudo na mesma não interessa. Se os alunos estiverem lá e são tão bons os bons como são bons os maus, quer dizer, anda lá um número grande a atrapalhar o trânsito, em nome de uma coisa esquisitíssima e que eu não aceito que é a escola inclusiva. Ora, a escola é inclusiva se as pessoas estão lá para aprender. Se não estão para aprender têm de ir para outro sítio. Um estádio de futebol, põe-se lá toda a gente aos pontapés na bola. Agora, na escola só pode estar quem queira aprender. Mas isso tem de ser aferido. Nós temos todos os anos de verificar se eles aprenderam.

ARF – Têm de ter exames, não é?

- Fazer exames. Nós temos de ter programas decentes, feitos por intelectuais, por artistas, por técnicos. Nem sei quem é que os fez. São uns programas horríveis, os manuais são de fugir. E depois inverte-se tudo. Nós não podemos ter professores a ensinar bem se os alunos nem os ouvem. O senhor pode arranjar 200 mil catedráticos que não consegue ensinar esta gente. Porque eles não querem aprender. Oitenta por cento dos que estão lá não querem aprender. Bons são sempre bons. Quando nós éramos crianças também havia bons e havia maus. E havia uns médios e estes estudavam por causa dos exames.

LC – Seriam a maioria.

- Isso foi ontem, é hoje e será na próxima geração. Agora não. Temos os bons que eram bons e temos o resto. E como não há exames nunca chega a ocasião para estudar. Portanto isto é uma falsificação. O ensino em Portugal é uma intrujice. Uma intrujice cara. E depois inverte-se isto. Vamos avaliar os professores, nem sei quais são os critérios. No estado em que aquilo está parece-me uma tontice, mas não se avaliam os alunos. Isto tem pés e cabeça? Isto é de uma sociedade de gente com juízo?

ARF – Esta nossa escola é uma certa escola, que dura há anos e anos.

- É uma escolinha. Não é uma escola, é uma escolinha. É um grupo de gente que está a praticar um crime gravíssimo que vai liquidar uma geração. Se não mais. Mas a próxima geração maioritariamente está liquidada. As pessoas não aprendem a língua. Nós pensamos em português. Se a gente não sabe bem português não pensa bem. Nós não sabemos fazer contas, nós não sabemos geografia. Se perguntarem a um rapazito qualquer onde é que é Washington não faz ideia nenhuma, é capaz de dizer que é na Ásia.

LC – Acha que a geração que vai estar no mercado de trabalho daqui a dez , vinte anos vai ser pior?

- Vai ser cada vez pior. Porque está a enraizar-se esta decadência do ensino. O ensino está numa decadência profunda.

LC – E algum dia foi melhor? Nestes últimos 30 anos?

- Para os que podiam andar na escola foi muito melhor. Andavam eram poucos. Mas o problema não é esse.

LC – Estamos a falar de quando?

- Do tempo em que eu estudei. No século passado. E da minha filha, que andou na escola pública.

LC – Antes do 25 de Abril.

- Sim, muito antes.

LC – A escola era melhor antes do 25 de Abril do que é agora?

- Incomparavelmente. A diferença é que eram poucos. Eram para aí 30 por cento menos do que hoje.

LC – E preferia que fossem poucos?

- Não, não prefiro que sejam poucos. Eu prefiro é autenticidade, porque isto é uma vigarice. É que os pais dos que lá estão têm de ter a certeza de que estão a aprender. Não é serem poucos ou muitos. Não interessa nada produzir quantidade que é lixo. Nada.

LC – Mas a quantidade á partida diminui sempre a qualidade. A massificação do ensino diminui a qualidade, não acha?

- Mas não é diminuir até zero. Nós estamos a bater no chão. É diminuir um pouco. Agora isto não é nada. Um aluno sai dali e não sabe escrever. Eu ensinei muitos anos e acabei por me irritar com o ensino. Dava-lhes provas escritas e era dificílimo de entender o que escreviam. Cheias de erros, linha sim, linha não um erro, expunham pessimamente, tudo aquilo era um ver se te avias.

LC – Acha que no Ministério da Educação não sabem isso?

- O Ministério da Educação, como os outros Ministérios neste nosso regime, está ali para parecer, para apresentar uma estatísticas lá forjadas não sei como. Para vocês nas sondagens descobrirem que este Governo é um Governo muito próspero.

LC – Cavaco Silva tem razão quando diz que não se deve governar para as estatísticas.

- Com certeza. Não se deve governar para as estatísticas. Deve governar-se em função de um objectivo e daquilo que é fundamental para o País. Porque nós andamos distraídos com tanta coisa e não percebemos que quando se fala de economia não estamos a falar de economia. Estamos a dizer desemprego, pobreza, desigualdades e riscos para o Estado social. Com esta economia que cresce 0,5 % ao ano dentro de dez anos as políticas sociais têm de ser completamente revistas. Não há dinheiro para manter estas políticas sociais.

LC – Até que ponto?

- Não sei. Só nessa altura é que se deve fazer a avaliação. Eu defendo há muito tempo que se faça um estudo. Não é sobre o financiamento da Saúde, não é sobre o financiamento da Educação e das pensões. É um estudo sobre o social, porque o social tem todo ele um valor muito importante. Educação é muito importante, Saúde é muito importante, pensões é muito importante, desemprego é muito importante, doença é muito importante. No social nós não discriminamos. O dinheiro que há é um e nós temos de saber quanto é que pomos no social. E depois, por critérios de opção política, é tanto para isto ou aquilo. Agora, não se fazem estas contas. Dizer-se está salva a Saúde. Bom, mas não se sabe das pensões. Ah, mas as pensões agora estão resolvidas. Isto não há rei nem roque. Porque este problema do social não é um problema do ministro das Finanças, nem da Saúde, nem da Segurança Social. Isto é um problema do chefe do Governo. Nós não tivemos ainda um chefe de Governo que percebesse minimamente este problema.

LC – Muito bem. O que temos em cima da mesa é um primeiro-ministro chamado José Sócrates, uma líder do PSD chamada Manuela Ferreira Leite e depois temos os outros partidos. Qual é a solução para sair desta situação que acaba de nos relatar?

- Eu acho que é muito difícil sair da situação porque os partidos estão gangrenados. Os partidos não trabalham em função de valores, de ideologias, de objectivos, de programas. Os partidos trabalham em função do assalto ao Orçamento. Porque o Orçamento dá para colocar os amigos, dá para fazer negócios.

LC – A solução está fora dos partidos?

- Não, a solução está dentro dos partidos. O problema é que os partidos não têm virtualidades para mudar. Porque eles tomaram os partidos de assalto e o PS e PSD têm tomado de assalto o Orçamento.

LC – Então não está dentro dos partidos.

- O que me pergunta é se há solução dentro dos partidos. Porque é dentro deles que têm de resolver. Se eles não percebem isso nós levamos um lindo enterro. Com estes partidos que nós temos, os principais, não vamos resolver os nossos problemas.

LC – Mas, apesar de tudo, a solução continua a estar dentro dos partidos? Passa pela reforma dos partidos?

- Eu defendo isso. Tem de se abrir os partidos. Porque hoje não atraem nenhuma pessoa inteligente, livre, que tenha futuro na vida. Não se mete num partido. Só se metem lá uns manhosos, porque aquilo é uma carreira. Entram lá pequeninos, depois estão lá mais uns tempos, depois são assessores, depois são guarda portões e depois são ministros.

LC – Mas a maioria das pessoas também não está disponível para os partidos.

- Não estão disponíveis porque acham que os partidos são uma chuchadeira. O senhor acha que alguém que tenha que fazer está para aturar um partido?

LC – Ou seja, não há solução. É o que me está a dizer.

- Não estou a dizer que não há solução. É preciso que os partidos o percebam. Eu estou a dizer é que os partidos devem perceber. Tal como o Estado Novo não percebeu que o problema colonial tinha de ser negociado, não em 1974 mas em 1958, estes também não estão a perceber nada.

LC – Já falou duas vezes no Estado Novo. Tenho de lhe perguntar se defende uma revolução idêntica à que houve há 35 anos?

- Não defendo revolução nenhuma. Eu receio é que estejamos a caminhar, não para uma revolução, mas para uma coisa pior do que uma revolução. Que é uma pobreza instalada com alguns ricaços.

LC – Com que consequências?

- Se o senhor for pobre diga-me se fica satisfeito. Vive mal, não tem automóvel, não vai à praia, come uma bucha de vez em quando.

ARF – Nenhum chefe de Governo percebeu isso?

- Destes quatro últimos nenhum percebeu o País em que estava.

ARF – Os últimos quatro?

- Sim. Guterres, Barroso, Santana, que esteve lá episodicamente, e este não perceberam o essencial do problema do País.

ARF – Não perceberam que vivem em Portugal?

- Não. Porque cada um tinha uma concepção. António Guterres era palavreado. A política de Guterres era saber quantos por cento do PIB iam para a Educação. O que se fazia com os tais por cento era indiferente. Este que está lá agora, o José Sócrates, é um homem de espectáculo, é um homem e circo. Desde a primeira hora. É gente de circo. Eles prezam o espectáculo. Porque eles não percebem que os problemas não se resolvem com espectáculo. E prezam o espectáculo porque querem enganar a sociedade, para sobreviver. E sobreviver para continuar a tomar conta do dinheiro do Estado, para pôr os amigos e negociar com os amigos.

ARF – Mas o tacho tem um fundo.

- Pois tem. Foi o que o Estado Novo não percebeu. Que aquilo tinha de acabar e estes se calhar vão perceber tarde demais que isto tem de acabar. Porque se nós continuarmos num nível de empobrecimento relativo isto não vai dar um bom resultado.

ARF – O que será um mau resultado?

- Não sei. Pode ser tudo. Pode ser uma zaragata na rua.

LC – Podem acontecer revoltas sociais?

- Pode ser um mal-estar instalado nas ruas, como é natural. Porque nós estamos a viver uma fase de empobrecimento natural com a crise internacional.

LC – E única na história do País ou não?

- Pelo menos há cem anos que isto não era tão mau. E o que vemos são as consequências de uma economia que não funciona. Desemprego, pobreza, desânimo, desigualdade. E aqui ao lado o que é que vê? Há dias vi a notícia de um homem que ia algemado porque tinha roubado duas galinhas. Agora eu pergunto: o que é que pensa uma sociedade que trata assim um homem que pilha duas galinhas e vê aí á solta, com a maior desfaçatez, tipos que pilharam aviários inteiros. O que é que pensam?

- Foi mandatário de Cavaco Silva em 2006. Como é vê as recentes divergências entre Belém e o primeiro-ministro José Sócrates?

- Eu acho que o Presidente da República foi longe demais no apreço pelo Governo. Quando era visível que o Governo andava a fingir que fazia respostas o Presidente da República disse que era um Governo reformista.

ARF – Era o tempo da cooperação estratégica.

- Eu nessa altura já via claramente que não eram reformas. Eram um arremedo de reformas que não conduziam a coisa nenhuma. Não conduziram, já estamos três anos depois.

LC – E o Presidente da República não percebeu isso?

- Não sei. Só estive com ele, desde que está em Belém duas vezes. Almocei duas vezes com ele e já há mais de um ano que não estou com ele. Não faço ideia do que pensa. Depois isto tudo se foi degradando, o PS foi tomando pulso às coisas e pensou que a cooperação estratégica era um silenciamento permanente do Presidente da República. E resolveu fazer provocações sobre os Açores, uma brincadeira para incomodar, como o aborto, o divórcio e essa trapalhada toda. O Presidente da República, que certamente não quer ser levado nesta enxurrada de desgraças e bem, acho que acordou e veio dizer cuidado. Veio dizer isto por causa de um problema que pode ser a nossa desgraça por muitos anos. O Presidente da República não diz com clareza. Eu digo com clareza. Se nós continuamos a fazer auto-estradas, terceiras pontes sobre o Tejo nós daqui a dez ou quinze anos temos um problema financeiro gravíssimo.

LC – Este é o assunto central que incomoda o Presidente da República?

- Não sei. Já não o vejo há dois anos.

ARF – É o assunto das grandes obras públicas.

- As obras públicas. Auto-estradas é evidente. Há auto-estradas sem ninguém.

ARF – Com pouco trânsito.

- Pouquíssimo trânsito. Nós, País pobre, não podemos dar-nos ao luxo de fazer isso. O BPI escrevia há pouco tempo o seguinte: se fizermos aquilo seremos o quinto ou sexto País do Mundo com maior densidade de auto-estradas e TGV. Vai tudo mais depressa para o Porto, Madrid e Paris. Mas o problema não é esse. Nós estamos cercados de endividamento e, por conseguinte, arranjar dinheiro lá fora vai ser cada vez mais difícil e cada vez mais caro. Eu já não discuto TGV...

ARF – Aeroporto.

- Nada. Este dinheiro, pouco e incerto, tem de ser gasto no essencial. E vamos discutir o que é essencial. É como uma família pobre que discute se vai poupar, gastar na alimentação ou ir para Cancun para a praia. O Governo está exactamente como esta família que escolhe ir para Cancun. É claro que deve ser bom ir para Cancun, não sei bem o que é. Mas deve ser bom. Mas esta gente não faria melhor ir para a Costa da Caparica ou para a Ericeira estimular a economia portuguesa? O Governo é esta família de Cancun.

LC – Acha que essa é a diferença essencial que distingue hoje o PS do PSD? A doutora Manuela Ferreira Leite também tem essa visão.

- Com certeza que tem. Qualquer pessoa com juízo tem. Não há nenhuma pessoa ponderada que não pense assim. Não sou eu. Manuela Ferreira Leite, Cavaco, toda a gente com juízo pensa isso, tirando José Sócrates e Mário Lino.

LC – Preferia ver Manuela Ferreira Leite à frente do Governo em vez de José Sócrates?

- Eu não preferia ver. A Manuela Ferreira Leite poder trazer à política uma coisa que é essencial, que é a seriedade.

ARF – E já agora a verdade.

- A verdade. Seriedade. Nós não temos seriedade na política. Isto é um espectáculo, uma aldrabice pegada. Manuela Ferreira Leite abre a boca e passado duas horas já estão duas pessoas a bater-lhe nas canelas. É o Santos Silva e o Pedro Silva Pereira. Eu nunca vi isso. Quando estive no Governo não tínhamos dois ministros para irem atacar os outros. O País está a ser gerido por medíocres.

LC – A doutora Manuela Ferreira Leite poderia mudar este estado de coisas?

- Não sei o que é que ela era capaz de fazer. Não sei se tem equipa para fazer.

ARF – Acha que este Governo está a fazer o que é preciso nesta crise. São medidas todos os dias, milhões para isto ou aquilo. Estão a fazer o que é correcto?

- Oiça, eu já estou enjoado de medidinhas. Já nem sei o que é que isso custa, nem sequer sei se estão a ser aplicadas. Ouvi agora que este 12 º ano era uma coisa que estava prometida há quatro anos.

ARF – É verdade.

- Não sei, não faço ideia. Se calhar há medidas que são para daqui a quatro anos. Eu não perco tempo com isso porque acho que aquilo tudo é uma tentativa de embebedar a sociedade e eu para bêbado não dou.

ARF – Agora vão dar medicamentos de borla às pessoas com pensões abaixo do salário mínimo. De onde vem tanto dinheiro?

- Repare. É uma pergunta legítima porque eu também não sei de onde vem o dinheiro. O que eu digo é que nesta emergência, para a protecção social, convém que a gente gaste algum dinheiro. Porque se não ficamos com a nossa sociedade em cacos. Para protecção social eu acho que temos de fazer um esforço, mesmo que provoque mais endividamento. O défice vai alargar-se muito, mas se for para isso eu absolvo o Governo. Não absolvo é fazer uma auto-estrada na costa, outra paralela à Lisboa-Porto, isso não absolvo.

ARF – Se estivesse à frente do Governo o que é que faria nesta crise?

- Olhe, tinha pedido a toda a oposição que designasse representantes para discutir os grandes problemas nacionais e as suas soluções.

ARF – Juntava toda a gente.

- Um de cada partido e algumas pessoas de grande qualidade e saber. E olhar para isto. Porque esta crise, que não é nossa, que veio de fora, é uma coisa muito traumatizante para a nossa sociedade. Mas o que eu vejo é toda a gente a degladiar-se, aos pontapés uns aos outros por causa das medidas da crise. Eu acho isto de uma grande mediocridade. Isto está entregue a medíocres.

LC – Mas aí o Presidente da República não poderia ter tido um papel mais activo?

- O Presidente da República não tem a ver com isso. Isto é um assunto de Governo, de acção, de execução. Outra coisa de que discordo do Presidente da República é que as coisas que tem dito, no 10 de Junho, no 25 de Abril e por aí adiante, eu escrevia aquilo tudo num papelinho e mandava para São Bento, para a Assembleia da República.

ARF – No estilo de mensagens aos deputados?

- Sim. O que eu acho que o Presidente da República tem de fazer e está a fazê-lo tardiamente na minha opinião é pôr os partidos perante a sua responsabilidade. Os partidos é que executam e que definem as políticas. O que tem de lhes dizer é que estão a trilhar um caminho muito arriscado e quando isto bater na parede é preciso saber quem é responsável.

LC – Temos o PS com maioria absoluta. Há o grande risco de sair uma maioria relativa das legislativas. É uma questão que o preocupa?

- É o senhor que diz que há um risco. Eu acho é que se sair uma maioria absoluta é que é arriscadíssimo. Eu não quero mais maiorias absolutas de um partido. Porque se o PS levar por diante estas obras resulta do facto de ter maioria absoluta.

LC – Mas com maioria relativa vai cair muito provavelmente um ou dois anos depois.

- Pois, temos que arranjar maneira de viver. Maioria absoluta com gente deste estilo nunca mais. Para mim nunca mais. Estas asneiras teimosas, absolutamente fora de senso comum, só são possíveis porque há maioria absoluta de um partido.

LC – Que solução é que imagina num cenário de maioria relativa? O regresso do Bloco Central?

- Eu como acho que os partidos que existem não estão em condições neste momento de resolver os problemas tanto faz. É uma caldeirada relativamente irrelevante. Os partidos têm de ter qualidade, têm de estudar, têm de ter pessoas que estudem.

ARF – Quanto tempo mais é que o País aguenta esta situação de crise que vive há muitos anos?

- O que lhe digo é que se nós tivermos mais dez anos desta economia, a crescer 0,5 em média por ano, não vamos aguentar as políticas sociais que temos. Vamos ter de rever reformas, salários à força, prestações várias, saúde, educação.

ARF – Os portugueses vão voltar de novo à emigração?

- Pode ser uma escapatória, que aliás está em curso. Não estará tão intensamente porque as coisas lá fora também não estão fáceis. Volta a ser. Angola passa a ser o novo Brasil. É uma escapatória. E ainda bem que há para algumas pessoas.

ARF – Falámos há pouco na EFTA. O que é que Portugal teria de fazer para atrair investimentos estrangeiros?

- Não é só estrangeiro. Investimento para produzir coisas que possamos exportar e que possam ser vendidas cá por serem competitivas. Uma economia que possa exportar e que substitua importações. Investimentos próprios para isso. Mas com o sistema educativo que gera analfabetos que não sabem fazer contas o senhor não arranja mão-de-obra. Se o senhor tiver uma burocracia infernal não investe. Ainda alguém me dizia há pouco tempo que tinha um PIN encravado há três anos. Com esta corrupção, com esta justiça que não ataca corruptos mas que condena pilha galinhas, não temos mercado de arrendamento, a lei fiscal não está bem e os tribunais fiscais não funcionam acham que alguém vem investir cá? Para arranjarem uma licença camarária têm de comprar o presidente da Câmara? Isto não é possível.

ARF – E o Código Laboral? Também afasta investimentos?

- Muitas pessoas queixam-se da relativa rigidez. Não é possível substituir e mudar. Mas não sou especialista, embora ache que é um assunto que deve ser discutido com seriedade.

LC – Agora tem-se discutido muito o enriquecimento ilícito e o fim do sigilo bancário. O que é acha desses diplomas?

- Nem quero perder tempo com isso. É tudo uma intrujice. Esse é um tema eleitoralista. Mas sabe uma coisa? Eu se tivesse num Governo que tivesse medo de tratar o enriquecimento ilícito eu não fazia parte desse Governo. Eu acho uma vergonha um Governo ter medo de criar o crime de enriquecimento ilícito. Tinha vergonha de vir à rua.

ARF – O argumento é de que num Estado de Direito não se pode inverter o ónus da prova. Concorda?

- Mas a nossa democracia permite que um tipo que rouba duas galinhas vai algemado. É preciso que se desfaça este nó de equívocos.

ARF – Maria José Morgado diz que enquanto o assunto estiver nas mãos dos deputados não há solução. É assim?

- Não é só na Assembleia da República. É no Governo também. É um problema político de todos os partidos. Isto não tem solução.

PERFIL

Henrique Medina Carreira nasceu em Bissau a 14 de Janeiro de 1931. Licenciado em Ciências Pedagógicas e em Direito, frequentou ainda o curso de Economia, que não concluiu. Secretário de Estado do Orçamento no VI Governo Provisório, foi ministro das Finanças entre 1976 e 1978, tendo negociado um empréstimo com o FMI nesse período.