segunda-feira, abril 27, 2009

FOTOS DA HOMENAGEM A CARLOS COUCEIRO NO PENEDO DA SAUDADE TIRADAS POR OCTÁVIO SERGIO ,AUTOR DO BLOG A GUITARRA DE COIMBRAII ,a 26 de ABRIL DE 2009.
Homenagem ao Carlos Couceiro

Meu Caro Carlos:

Sentei-me à secretária, para alinhavar as palavras que vou ler, e ia começar assim: “O Carlos, eu conheci-o…”, mas, acto contínuo, sobreveio-me à memória o poema de Guerra Junqueiro: O Melro!

O melro, eu conheci-o
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador e jovial.
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, do arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal (…)

A mente tem destas iluminações súbitas! É que, para mim, o Carlos foi sempre um pouco dessa ave canora, acrescida de inteligência viva e coração fraterno: em suma, um supra-Melro, fascinante!

Mas voltemos ao princípio: o “Carlos, eu conheci-o…”, já lá vão mais de 60 anos, no 5.º ano do liceu D. João III, na turma D. Essa turma teve o privilégio de reunir moços que brilharam na vida: o Carlos, o Zeca Afonso, o Costa Lobo, e outros…
Como foi esse primeiro encontro? Certa manhã, apareceu na aula, um aluno novo, desconhecido de todos. Acabara de chegar do longínquo Lobito numa espécie de barco cargueiro que se arrastava pelas ondas como caravela antiga. Vinha magro, qual gato esfolado, e naquela cara chupada sobressaíam, ainda mais, uns olhos enormes, brilhantes, e uma vitalidade e alegria, em cachão, lá do fundo da alma. Logo ali nos teve a todos na mão, pela simpatia. Alguns dias depois, a simpatia mudou em admiração. Foi assim: o professor faltou e fomos matar o tempo para o recreio. Surgiu uma bola de borracha, organizaram-se duas equipas, e eis que o “magricela do Lobito” se transformou num génio da pelota: fazia o que queria dela, ninguém lha tirava, como uma enguia driblava até as sombras, sozinho destroçou toda a equipa contrária. Um assombro!
Depois, com o tempo e já sem surpresa (ele era bom em tudo!), novas riquezas e brilhos foram surgindo da sua inesgotável arca de talentos: era também poeta (premiado em Jogos Florais), também saltador para a água (campeão nacional, se não me engano), também jogador de hóquei em patins, também guitarrista (o primeiro acompanhante de Zeca Afonso), também bom aluno, também fogoso no amor (com alto desempenho – cala-te boca!...), também xadrezista promissor (ganhava- -me sempre, no velho café d’A Brasileira), também caricaturista de traço jocoso (da “velha Torre” fez dezenas de versões patuscas), também… Mais coisas me hão-de faltar pois a sua fada-madrinha exagerou; deu-lhe tantos talentos que quase o afogava neles.

Mas tenho de me apressar pois estaria aqui toda a tarde a tecer-lhe louvores e a descobrir mais coisas na tal arca de talentos (sobre o brilho da sua vida profissional nada direi, pois não pertence à esfera do Penedo da Saudade).
Com o convívio diário, criou-se uma espécie de “tripeça de amizade” entre nós: o Carlos, o Zeca e eu. Até tínhamos um assobio em código secreto. Fizemos os três a nossa primeira trupe da praxe. Vivi com ele na pequena república de “O Sobado Kakulo”, na velha Alta, com a caixa das cautelas do Prego a abarrotar. À república aportava o Zeca quando tinha alguma zanga conjugal ou quando lhe dava a “zoira”.
Muitas histórias e historietas poderia contar do Carlos desses tempos – por ex.: a dança flamenca, com castanholas e requebros, que dançou, em cima da secretária do prof., diante de um reitor sisudo… –, mas reservo o tempo disponível para as duas, seguintes:

Certa vez, foi passar uns dias comigo à Figueira da Foz, no Verão. A minha Mãe trouxe da praça uma cestada de sardinha e uns pêssegos maracotões que eram um regalo para todos os sentidos. À sobremesa, a Mãe propôs que se fizesse um concurso de quadras populares alusivas aos tais maracotões. Eram muitos os comensais e todos concorreram. O vencedor foi o Carlos com uma quadra que improvisou, onde conseguiu dizer tudo com imensa graça e leveza. Tal quadra, que nunca esqueci, era assim:

Aveludado na mão,
Delicioso na boca:
Comi um maracotão,
Ficou-me a barriga louca.

Um verdadeiro trinado de Melro!

A outra história é mais complicada.
Quando fiz 21 anos (a maioridade: coisa importante, na altura) os meus pais, que viviam numa aldeia beirã (Vila Cortês da Serra, próxima de Gouveia) fizeram-me uma festa e autorizaram- -me que levasse alguns amigos de Coimbra. Convidei apenas os mais do peito: o Carlos Couceiro e o Zeca Afonso (já casado e que levou a mulher, a Maria Amália). Os meus pais capricharam e fizeram-nos um jantar a primor: cabritinho assado e vinho do Dão, do puro.
Tudo estava a correr bem – aparentemente, pois ninguém adivinhava que o Zeca estava propenso a uma das suas “neuras” existenciais. À sobremesa, porém, o meu Pai teve a imprudência de nos servir o seu “cocktail da morte” (como ficou conhecido na família, desde então): uma mistura explosiva de todas as bebidas fortes que havia na despensa. O resultado foi imediato e tremendo – um “coice de mula”!
O Zeca ficou soturno e, às tantas, desapareceu. A Maria Amália, veio ter comigo, preocupada. E era caso para isso, pois havia poços nos quintais vizinhos e a noite de Janeiro, estava de breu e gelada. Fomos para a rua gritar pelo Zeca. Nada, só os cães respondiam! Espalhámo-nos pela aldeia a esquadrinhar becos e ruelas. Nada! Metemo-nos no carro e seguimos pela estrada a iluminar com os faróis os pinhais escuros. E eis que, já bastante longe de casa, vimos perpassar entre as árvores uma mancha branca. Era o Zeca, em mangas de camisa, enregelado, a tentar esconder-se. Foi difícil trazê-lo para casa, onde a Maria Amália se encarregou de o deitar. Nós, os sobreviventes, voltámos para a mesa, a conversar, a fazer brindes e a beber mais uns cálices. Mas, quando chegou a hora de apagar as velas do bolo, a minha Mãe veio sussurrar-me ao ouvido: “Ó filho, o teu amigo Carlos, levantou-se, saiu da sala e ninguém sabe dele!” Bom, a festa terminou ali! Voltámos para a rua, a berrar por ele. Nada! Fomos espreitar aos poços. Nada! Até que alguém lembrou o mais óbvio: “Vamos ver nos quartos!” Fomos. E eis que demos com o Carlos, vestido e calçado, enfiado na cama dos meus pais!!!
De lá o mudámos, num sono de chumbo, para o quarto dos hóspedes.


Meu caro Carlos, aqui estou hoje a retribuir-te a companhia que me fizeste no meu aniversário dos 21 anos. Espero bem (a minha mulher, está d’olho em mim…) que não me vá enfiar, também, na primeira cama que encontrar. E deixa-me dizer-te: tu (e o Zeca e alguns outros) foste uma das criaturas que iluminaram a minha vida. Agradeço à Providência ter-me proporcionado conhecer-te. Para mim, serás sempre o “Melro” fascinante que me gorjeia ao coração: vivo, inteligente, cheio de sol interior, fraterno e poeta…

Que continues a trinar, por muito anos!

António dos Santos e Silva (Toneca)
Coimbra 26-04-2009