quarta-feira, setembro 20, 2006

Coimbra – Espírito e Raiz

Texto - carta de Filipe Batista, Professor de Filosofia, residente em Montréal, Canadá, autor de um programa de rádio semanal, às 4ªas feiras, entre as 15 e as 16 h portuguesas, no site http://www.radiovm.com/, dedicado à música portuguesa.


Muito querido amigo, Luiz Goes.

Eis, pois, os sentimentos que me animam perante este magnífico trabalho, Espírito e Raiz. Trabalho este que invade todo o meu ser.

Como sabe, os seus poemas e a sua voz são a minha companhia onde quer que esteja. A sua alma também é minha. Esta apropriação do seu universo poético-musical passa por uma corda muito sensível que ressoa sempre que a harpa da nostalgia, da saudade e da paixão vibra com o sopro do momento. E porquê? Trata-se, a meu ver, "de uma verdadeira questão filosόfica", ou seja, uma pergunta sem resposta. A explicação mais plausível reside, de certa maneira, no facto de que o seu universo artístico também é o meu. Sό sei dizer que me sinto bem! Sinto-me em uníssono com o seu mundo. Vou-lhe fazer mesmo uma confidência: quando chegar o meu dia derradeiro, o dia de passagem deste mundo para o "outro"(...!), quero que a sua voz seja o requiem que me acompanha.
Por outro lado, devo dizer que me é muito difícil fazer uma crítica do seu novo trabalho, Espírito e Raiz. Para já, o meu espírito de "delinquente", neste campo, sente um certo mau estar - para não dizer desdém - com a palavra crítica... Também tenho grande dificuldade “...com os velhos curas da legalidade...”, como refere na entrevista do seu DVD, e com muita pertinência. Fazemos parte de um mundo à parte; um mundo que não coincide com os modelos oficiais! Eles tiram-nos toda a espontaneidade e criatividade. Por outro lado, estou tão implicado no seu universo musical que não tenho recuo suficiente para falar sobre ele. - Olhe, Luiz, que trabalho maravilhoso!... Ao ouvir a sua voz que se prolonga na poética intemporal de Carlos Carranca e no arpejar sublime da guitarra de João Moura e doce melodia da flauta de Abel Gonçalves, numa sinfonia de emoções e sentimentos, todo o meu ser vibra e se ilumina num arrepio de prazer!!... Que mais posso dizer no limite das palavras?!...
De uma maneira mais fria e tentando quase o impossível, farei os seguintes reparos sobre o trabalho: a) a sua forma plástica e b) o fundo da mensagem.

A) a forma plástica do trabalho:

Devo dizer que graficamente é um trabalho rico, pois “fere” a sensibilidade e o imaginário não só de todos aqueles que passaram por Coimbra, mas também aqueles que, como eu, penetram e vivem, de alguma maneira, aquilo que foi e é a alma coimbrã. Feliz equação ou concordância entre o branco e o preto das imagens e o contraste da luz alaranjada que excita a memória e provoca igualmente o imaginário. Mesmo sob o ponto de vista de formato de livro com CD e DVD integrados, é uma embalagem de esmerado gosto. Sobre este plano, esta apresentação de elevado requinte artístico, traduz bem o trabalho de Espírito e Raiz. Assim “o ter passado por lá...” dá lugar ao “estar lá...”. Isto explica que tenha havido uma história onde cada um se reconhece e se representa como autor de um passado que a memόria recria a todo o momento, isto é, o começo daquilo que é ser, na essência, de alma coimbrã. As imagens (fotografias e vídeo) na sua conotação, são constituídas por uma arquitectura de sinais vindos de uma profunda e grande variedade de léxicos referentes á psique de cada um. Esta é, nesta perspectiva, articulada como linguagem. Sobre este ponto de vista, a imagem não sendo a realidade, é o analogon, trata-se de uma mensagem sem código. Quer isto dizer que a fotografia é uma mensagem contínua. Neste sentido, pode-se dizer que o trabalho, enquanto obra de arte, comporta duas mensagens: uma que é o analogon ou mensagem conotada e outra que é a mensagem que o imaginário dos seus artistas exprime através da sua maneira de interpretar artisticamente a realidade enquanto memória. De certa maneira, a conotação não se deixa ler imediatamente. Num primeiro tempo, ela põe em alvoroço o imaginário. Ela é o invisível activo e o claro implícito. Aqui reside a grande força da imagem numa perspectiva de Roland Barthes. Ainda de um ponto de vista gráfico, posso acrescentar que se trata de um trabalho em que as novas tecnologias acentuam com muita acuidade uma admirável estética que põe em alvoroço aquilo que muito nos prestigia: a riqueza da nossa cultura musical. E aqui discordo com algumas interpretações de “intelectuais puristas” exprimindo a ideia de que a canção de Coimbra mais não é que um epifenόmeno. Que importa?! Nem por isso deixa de ser um elemento integrador da nossa rica cultura musical, sobretudo quando se trata de um trabalho de envergadura como o de Espírito e Raiz.

B) O fundo da mensagem:

Antes de mais tenho de dizer que este trabalho, de alto nível artistico, poesia, voz e instrumentos numa perfeita harmonia, define, sobre o plano estético, uma grande originalidade. E aqui estou de acordo com a ideia do amigo do Luiz Goes – aquele que está a fazer o trabalho sobre a sua obra e que o nome esqueço – que este trabalho confirma o facto de que estamos perante uma redefinição senão uma nova estética da canção de Coimbra. Uma das suas características mais relevantes reside na excelência do trabalho, sobretudo na sua forma criadora e reinventiva de um passado sempre presente, rico em imagens, recordações de todo o tipo que põem em alvoroço o verdadeiro ser coimbrão. Isto é o Espirito e Raiz. Este dizer do tempo e no tempo exprime, a meu ver, aquilo que é próprio, fundamental do espírito e da alma coimbrã. Estamos perante um eu que se alimenta do imaginário dos seus mais estimados poetas, cantores, guitarristas e outros instrumentistas que finalmente cantam e tocam a alma lusitana. Assim, a poética intemporal de Carlos Carranca, garante a este trabalho uma profundidade e um rigor difíceis de qualificar e igualar. «Eu que nasci no mar, sou um homem da montanha!», diz ele. E ainda: «... tuna aquante,/ sol líquido de espuma,/ serra parada na bruma/ do milagre desse instante...». Arauto sensível e delicado da alma coimbrã, sua musa habita a Serra da Lousã e navega em vela panda nas águas cristalinas do Mondego. O verão passado, tive o privilégio e o prazer de admirar e sentir, no mais profundo do meu ser, quão grande é sua alma e quanto ela se confunde e funde ao rigor e beleza da montanha. Nela ecoam as vozes e os sons, mesmo se distantes, de uma alma que o seu rico imaginário transforma num poema permanente á tão amada Coimbra.
Como já referi nos textos das emissões que fiz sobre a sua obra, “...a voz do Luiz Goes é o espírito que sai e anda nas coisas e que faz vibrar todas as nossas cordas sensíveis como o vento o canavial, fundindo-se assim ao nosso mundo sensível como o ser ao pensamento. Esta voz é a expressão de um mundo interior sem limites. Ela abre rasgos de prazer na nossa sensibilidade e perdura nas emoções que provoca. A sua voz canta o mundo e o que falta ao mundo para ser música. Esta voz que esculpe o poema, é o exterior do interior e o interior do exterior que nos permite a duplicidade do seu sentir. É emprestando a sua voz ao mundo que, como cantor, transforma o mundo em música. Ela fere o segredo mais profundo do ser audível, excitando assim o nosso desejo que se prolonga num imaginário criador que não é outra coisa senão o nosso ser musical. Para se compreender estas transubstanciações, é preciso descobrir a voz operante e actual, aquela que não é somente uma parcela de espaço sonoro, uma simples amálgama de funções, mas um entrelaçado de emoções. Este universo artístico é bem o que nos une e nos maravilha e que faz de nós seres permanentemente insatisfeitos com uma aversão marcada a tudo o que é oficial . Traduzindo um pouco o pensamento de Nietszche, diria que é a partir desta “desobediência” que o homem começa a ser um animal interessante. Permita-me um último desabafo: excessivo, o meu pensamento voa através de uma nuvem de emoções que transforma em melodias e que um arrepio longínquo de ecos do passado acaricia no tempo; este fluxo de nostalgia corre em mim como certeza e este desejo de navegar num mar sem limites exprime toda a minha alma, todo o meu ser sempre presente na distância do tempo.

E que sentimentos exprimir pela virtuosidade e interpretações à guitarra de João Moura? Elas são as estrelas que alumiam e conduzem a voz de Luiz Goes e a poética de Carlos Carranca através do tempo, tal uma veia por onde corre a canção de Coimbra em doce nostalgia e que tanto seduz e encanta!

Apenas um último reparo sobre o DVD:
A Sé Velha, como cenário privilegiado para recolha das imagens de Espírito e Raiz, é uma escolha que me parece inteligente e adequada. Eu diria mesmo que, essa evocação traduz um certo espírito mítico coimbrão que esse e outros monumentos evocam e alimentam. Recordá-los é reviver, de certa forma, um “passado glorioso”. Graças à cultura, um universo religioso e uma mitologia “demistificada”, formaram e alimentaram a Civilização Ocidental, a única civilização que faz figura de modelo. Mesmo se o “logos” (livro) triunfou sobre o “mitos”(tradição oral), nesses monumentos pode se auscultar uma Antiguidade rica em revelações, personagens e feitos fabulosos aos quais estamos ligados. Nas suas paredes ecoam ainda as vozes do passado. O Luiz recorda um pouco esse facto: “Nos degraus da Velha Sé, canta alguém junto da porta à guitarra acompanhado, vá lá jurar que não era alguma guitarra morta, alguma voz do passado...” Directa ou indirectamente, o mito opera uma certa elevação. Ele constitui uma espécie de código de referência onde estão patentes os rituais que gerem o sentido e realçam o valor estético-musical, de certa maneira, da obra. Uma palavra de grande apreço para toda a equipa de realização. Tecnicamente o DVD está muito bem realizado. O trabalho da câmara merece especial relevo, particularmente no que diz respeito aos movimentos de câmara. A montagem permite uma perfeita harmonia entre a plasticidade (estética) e a mensagem da obra: isto é a obra de arte total.
Aqui fica, pois, estimado Luiz Goes, um pouco, o depoimento dos meus sentimentos acerca da sua obra, frescura e juventude de uma alma onde se retrata todo o meu espírito: Espírito e Raiz, uma obra de arte que deve ser escutada com paixão e amor, pois trata-se do canto de uma eterna juventude!

Um grande abraço de reconhecimento e de profunda estima do grande amigo.

Filipe Batista

Montréal, 19 de Outubro de 2005