segunda-feira, setembro 04, 2006

O Ponto de Partida das Preocupações Religiosas em Unamuno e em Torga

A poesia é ilusão antes de ser conhecimento; a religiosidade é ilusão
depois de ser conhecimento. A poesia e a religiosidade suprimem o
'vaudeville' da sabedoria mundana do viver. Louco é todo o
indivíduo que não vive poética ou religiosamente. 1
Miguel de Unamuno

E notório, que o Homem e o problema da sua (i)mortalidade determinam o percurso literário de Torga e Unamuno. Não é Deus o fundamento imediato da religiosidade destes dois poetas agónicos. O fundamento é o Homem.
Nem Unamuno, nem Torga, estão dispostos a aceitar alguma ortodoxia, e concretamente a católica, a única possível para eles. A religiosidade em ambos manifesta-se pela ansiedade, pela angústia, pela inquietação. A religiosidade é uma sublimação do que há de mais fundo no Homem - o momento genesíaco.
Em Miguel Torga a Poesia é assumida como uma religião oposta a Deus. Ê a religião de Deus que o faz cair no pecado e é contra ela que luta em busca da pureza original, da Palavra Perdida.
Poeta intuitivo, Torga vê em Deus o poder absoluto, que limita a acção humana. Por isso, ele busca no mais fundo de si a liberdade. Liberdade interpretada como conquista individual, de dimensão trágica. Esta conquista afasta Torga do céu de Deus, e confere-lhe um estatuto divino (absoluto). Absolutamente Homem, preso à terra, único paraíso possível.
Partindo do seu lugar de origem, da sua terra natal, Torga vai (re)criar o mundo, o seu mundo de artista, alargando-o a todos os quadrantes.
Torga, poeta moderno, sabe que o seu valor de artista depende da originalidade, da autenticidade e que, quanto mais for ele próprio, mais universal e poderosa será a sua obra.
A obra literária de Torga é marcada pela angústia religiosa de quem procura, como artista, a pureza original - a Palavra Perdida. A palavra que originou o mundo. A palavra essencial.
Sempre que Torga toma os motivos religiosos católicos, não lhes dá uma interpretação de acordo com o dogma da igreja, fá-lo sempre como poeta, segundo a sua crença, tentando ser fiel à Poesia.
Ávida é para ser cantada pelos poetas e não para ser encarcerada no espartilho das verdades massificadas.
Torga não passa ao lado de Deus, pela mesma razão que não passa distraído pela Vida.
Para Torga, o Homem é o deus absoluto da terra. Nela está condenado a servir e a servi-la, e nela obrigado a transcender-se. Não aceita a existência concreta de Deus, mas sente-A. O que tem para dar, parte do seu individualismo sem transigências.
A Torga e a Unamuno, faltou-lhes a humildade dos que veneram sem compreender, como também a fé na capacidade da razão para chegar a entender.
Torga é o bicho-homem que em seu esforço de realização no decurso do tempo, na luta contra todas as forças escravizantes — in clusive Deus — num esforço de superação, procura substituir-se a Deus, acabando sempre por se deixar agrilhoar, qual Prometeu, à sua trágica condição humana. E então que o Menino se revela necessário, dando esperança ao Homem, a um Homem que se procura novo, libertador e libertado para o verdadeiro humanismo - leia-se, o verdadeiro cristianismo. De que cristianismo se trata? Não do histórico, mas do ideal, do que aproxima Deus dos homens e não os homens de Deus. O Menino ideal que realiza a suprema transcendência — a salvação do Homem pelo menino-homem do futuro.
O que marcou a infância de Torga foi a predominância de um cristianismo de sofrimentos vários. Um cristianismo mais sexta-feira de Paixão que domingo de Ressurreição. Em Torga é notório que o cristianismo, para preservar a sua verdade, necessita de se enraizar como religião humanista e, ao mesmo tempo, sobre-humana, onde o Menino, símbolo de esperança no futuro da humanidade, preencha os dois campos, por ser nosso e concreto, como os dias, e sobre-humano, porque divino na nossa fé. Afirmativamente divino, símbolo de esperança, vem resgatar a humanidade da decadência e do aviltamento espiritual.
Qual o ponto de vista das preocupações religiosas em Unamuno? O Homem e o seu problema de imortalidade. Não é Deus o fundamento imediato da sua religiosidade, mas o Homem.
O problema do Homem é o problema de Deus, consciente de que a razão não o leva ao Seu conhecimento.
A singularidade de Unamuno não o deixa permanecer numa posição ortodoxa, por esta ser inautêntica e massificadora. Unamuno rejeita as provas tradicionais da existência de Deus. Quando fala de salvação não a entende como beatitude celestial, em contraste com a condenação etermij tão simplesmente e só, a salvação do nada, da aniquilação da morte.
Unamuno situa-se numa tradição vitalista cristã, mantida e enriquecida pela leitura frequente do Novo Testam e n to.
Unamuno vive o problema que o cerca de contradições e que reside na procura de uma religião que liberte, que não esteja sujeita a dogmas, e seja individualista. Uma fé (confiança) religiosa mais do que teologal, urna fé pura e livre.
Qual é o conteúdo religioso da obra de Unamuno?
E querer salvar-se e também salvar o mundo, aparecendo Deus como uma finalidade sentida. Não é necessidade racional, mas angústia vital que o leva a crer em Deus. O Deus de Unamuno, como o de Torga, é suporte e fundamento da existência humana.
Em Unamuno, como em Torga, a relação com Deus é uma relação pessoal com o divino.
É curioso verificar o papel da razão na relação de Unamuno com a procura da verdade. Temos a razão como faculdade de pensar formas fixas e universais, e porque ela é essencialmente individual e dinâmica, é insuficiente para chegar à verdade.
Razão e Vida opõem-se. A Razão não satisfaz o Homem de carne e osso que deseja saber se morre para sempre, ou não. Razão e Fé são dois enigmas que não podem viver um sem o outro. E desta oposição entre Razão e Vida, que surge a luta, a agonia. A Razão e o Sentimento chocam, por isso há luta. É desta luta que surge Do Sentimento Trágico da Vicia, marco do pensamento agónico do mestre salamantino e que virá a marcar, também, profundamente, Miguel Torga.
Unamuno é o poeta-profeta que sente dentro de si contradições insanáveis e se ergue, enfrentando Deus, O interroga e O põe em causa, como fará seu discípulo Torga (tal como Holderlin, Torga acredita no Poeta como arauto de uma nova humanidade).
Em Unamuno e em Torga reside o sentimento trágico da vida. Dois sentidores que não se resignam à morte. A integridade do indivíduo desde o nascimento à morte é uma constante na obra dos dois escritores ibéricos. Tudo é luta contra a morte, ou seja, agonizar.
Ambos partem, como os existencialistas, da existência para a essência.
Como afirmei, o sentimento trágico da vida percorre a obra de Torga. Atente-se à profusão de signos extraídos da lexologia do cristianismo, constantes na sua obra.
Torga renega Deus por desespero de não O encontrar. Sente a presença divina. Não aceita a existência concreta de Deus, mas sente -a. Deus não se dá a conhecer...
Frente ao Nada aterrador, Unamuno vive, na agonia, no problema da morte, querendo salvar a vida: La fé en Dios arranca de Ia fé en nuestra propia. existência sustancial.

' Do Sentimento Trágico da Vida, Relógio d`Agua, Lisboa, 1988, pág. 162.