Uma Pátria na Cabeça
Sou de uma vaga pátria carinhosa.
Afonso Duarte
Só podemos falar verdade
quando falamos de nós mesmos.
Mário Botas
Texto da comunicação proferida no Auditório da Biblioteca Municipal da Lousã, dia 27 de Outubro de 2001.
Quando o Dr. Matos Silva, Director da Biblioteca Municipal da Lousã e meu amigo, me convidou a falar no encerramento da comemorações dos 850 anos do Foral da Lousã, comecei por tomar o convite por um acto de evidente desconhecimento da minha pessoa. Eu seria a menos indicada para desempenhar a honrosa tarefa.
Várias razões concorriam para que o convite não me fosse dirigido:
Não sou estudioso do passado longínquo da Vila da Lousã; sou fraco em Epigrafia, em Paleografia e em Heráldica; não possuo bibliografia capaz de, em tempo curto, abordar o tema com a seriedade a que o momento obriga; seria de uma enorme petulância falar de assunto que não domino, ainda mais junto do meu ilustre colega palestrante, o Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, Doutor Oliveira Barata, conhecido homem de cultura. Certo seria que no final da minha “lição”, mal sabida e mal contada, me havia de puxar as orelhas.
Convidarem-me, a mim, que nem sequer nasci na Lousã. Porquê?
É verdade que os meus antepassados nasceram aqui. Também é verdade que todos eles, na medida das sua capacidades, honraram a terra que os viu nascer. É também verdade que a Vila da Lousã foi, desde sempre, para mim, o lugar da Poesia. Que a procurei em outros lugares. A recriei em outras vilas – sempre a trouxe aninhada no entendimento dos meus dias. É verdade, também, que lhe dediquei um longo poema, um livro – talvez o mais sofrido de todos – que demorou 20 anos a escrever. Os anos que separam a morte de minha Avó da de meu Pai. Ambos enterrados no cemitério da Lousã. E nenhum deles era de cá.
- Porquê, eu?
O Dr. Matos Silva, ao ver-me, talvez, a mudar de cor e com receio de alguma tragédia provocada por tão inesperado convite, no seu jeito directo, simples e afável, tornou mais clara a proposta:
- Fale do que quiser!
Naquele momento, refastelado no sofá em que o nosso director “obriga” as visitas a sentarem-se olhei-o de baixo para cima, aliviado, e aceitei o desafio.
- Sendo assim, ocorre-me um título que me dá espaço para a intimidade: Uma Pátria na Cabeça.
********
Receando fugir ao significado original da palavra Pátria, procurei no meu velho e desmembrado dicionário – o que ainda não inclui bué como vocábulo nosso – o seu significado. E este disse-me: lugar onde cada qual nasce. Ora, nascer é vir ao mundo, é principiar a ser, e eu só tomei consciência de mim (porque nós não nascemos no lugar onde somos paridos, mas no lugar onde tomamos consciência de estar vivos) em S. João da Madeira, vila onde o culto do trabalho se ergue do fumo das altas chaminés das suas muitas fábricas e do som estridente das sirenes que convocam e libertam os operários dos seus postos.
Foi na vila de S. João da Madeira que tomei consciência de pertencer a uma família.
Pertencer a uma família, é herdar um património. É ter raízes que se perdem na memória dos nossos antepassados, é ter, para o bem e para o mal, ou para além do bem e do mal, fios de sangue a ligarem-nos inexoravelmente ao futuro e ao passado.
Era o tempo de minha Mãe, hoje redescoberto em alguns poemas, livros que me foram oferecidos logo que comecei a manifestar alguma sensibilidade poética. Mas, era também o do meu Pai que, vendo o interesse que eu manifestava pela História de Portugal e pelos versos que ia dizendo, cantados e decorados, me ofereceu (e ainda hoje conservo religiosamente essa edição em papel bíblia) “Os Lusíadas” (tinha acabado de completar o meu sétimo aniversário).
Assim, desde muito cedo, fui entendendo que pertencia a duas famílias. A biológica e a espiritual. A que entroncava no avós e bisavós e a que vinha do fundo dos tempos, a dos artistas.
Era o tempo de “O Sono do João”
O João dorme...(Ó Maria
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João,acordar...)
Tem um só palmo de altura
E nem meio de largura.
Para o amigo orangotango
O João seria um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!
O João dorme...que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó mar! fala mais baixinho
E tu mãe! E tu Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...
O João dorme, o Inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...
Ó Mãe! Canta-lhe aquela canção,
Os versos do teu irmão:
«Na vida que a dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai se sentir».
Deixa-o dormir até ser
Um velhinho...até morrer!
E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...
Depois, um dia virá
Que(dormindo) passará
Do berço onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João...ficarão menores!
Mas para isso, ó Maria!
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...
E os anos irão passando.
Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,
Isto é, deixa dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...
Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...
Foi António Nobre quem me deixou, para sempre, na cabeça, uma pátria. Uma pátria maior, uma pátria melhor, esse “País de marinheiros, de romarias e de procissões”, onde o imperativo ideal – “amai-vos uns aos outros” se sobrepõe ao concreto e categórico de hoje – “ matai-vos uns aos outros”
De pequenino intuí que só a Poesia era capaz de unir e pacificar e vencer a morte contra o poder tirânico dos que tudo podem.
Alguém disse que “ os poetas são doentes da infância”, mas foi Antoine de Saint – Exupéry quem ensinou o lugar dos poetas:
“Somos de uma infância como somos de um país”
Nas minha deambulações pela Vila da Lousã, o passado agiganta-se, sempre, como sombra tutelar e de esperança.
Régio, diz-nos, em “A Velha Casa”, que “ Juntamos o apreço do passado vivo ao gosto da mais audaciosa antecipação do futuro. O que é preciso é que tudo seja Presente”.
Cumpramos a função identitária do poeta. Juntemos o passado ao futuro. Antecipemos o presente. Sejamos capazes de, através do poema, reencontrar todos quantos são parte vida dos versos que ficaram por escrever.
Procuremos nas coisas, nas pessoas, no indisível das coisas e das pessoas, o que se quer revelar, como pedras suspensas – palavras ocultas.
Partamos numa viagem pela palavra. É ela que confere ao tempo, ao nosso tempo, eternidade. É nela que a pluralidade da vida surge mais funda, mais autêntica.
Tudo o que tenho são poemas.
A eternidade está dentro do passado e do futuro, para além do bem e do mal. Nos poemas, na eternidade de mim, onde habitam os outros, onde uma guitarra nossa toca nos espaço onde a natureza se cumpre.
Cantar entre ruínas?
Pensar entre ruínas?
Passear entre ruínas?
È pela palavra que vamos em busca das verdades ocultas, sem pátria que as habite.
Tenho uma pátria na cabeça.
Todos nós regressamos à infância
como fuga à morte
a primeira a única verdade
o importante hoje é recordar
É possível ser de novo
rapaz
trepar às arvores
sonhar coisas impossíveis.
Em nenhuma parte
estamos
mais próximo
de nós.
(...)
A nossa pátria é
a nossa infância
a pátria é
o lugar do
tempo renascido.
Meu bisavô, que não conheci, chamava-se José Fernandes Carranca. Usava uns bigodes, uns grandes bigodes. Era monárquico – liberal e louvado judicial. Dizem que também testemunha crónica nas escrituras do Tabelião João Henriques Lopes. Minha bisavó, Constância da Piedade, mãe de sete filhos. Um deles, meu Avô, claro – o Cassiano. Foi o quinto, nasceu em 1895 e teve como madrinha de baptismo a sua irmã, Benvinda.
Era grande, o meu Avô. Trazia dentro de si o lugar onde nascera, a serra e tudo mais. Foi militar. Lutou na guerra, na Primeira e na Segunda. Esteve nos Açores. Era valente, dizem.
Meu Avô foi buscar a minha Avó junto ao mar, à Praia da Figueira. Era linda, a minha Avó. Seus olhos azuis tinham a leveza dos dias claros.
E foi assim que minha Avó, veio parar à Lousã quando meu Avô passou à reserva territorial.
Que sabemos nós da infância
meu pai minha mãe
os avós confirmam a genealogia
o tios os primos
o rasto de tudo
daquilo que somos
Celestina, minha mãe era, das três filhas, a mais velha.
A casa era um verso
imóvel (fortaleza)
na rua onde
a chegada do comboio
marcava as horas.
Na Avenida da Estação, na casa dos meus Avós, passava os fins-de-semana, as férias e dias afins a brincar. Sempre a brincar.
Sabem que havia um mendigo, o Madeira?
Era um verso perdido na rua.
Às vezes, brincava connosco,
dizia-nos coisas e nós lá ouvíamos,
mas sem o escutar.
Minha avó descia do quarto
logo de manhã. A mulher do leite
batia-nos à porta.
O comboio arfava ao chegar à Estação.
Era possível gritar sou feliz.
A casa que era a dos meus avós, antes fora o Hotel Carranca – Pai , onde nasceu o Zeca, filho da Benvinda, irmã – madrinha do meu Avô.
Vejam como a vida
se vai cindindo em pais,
filhos, tios, e avós
e primos também...
Ainda não falei de meus pais, assim, como se conheceram:
Meu pai não era de cá,
(ela era de longe,
do sul, da arábia)
viu a minha mãe.
Como ele gostava
das coisas que olhava....
minha mãe
não era uma coisa,
sorriu-lhe e casaram.
E foram felizes.
Tiveram-me a mim
- não sei se gostaram!...
E vamos assim, chegando ao términos da viagem. Ah, é verdade!...
Conta-se na família que minha mãe me vestiu de Nosso Senhor Jesus Cristo. E lá fui eu, na procissão de Senhora da Piedade, ao que parece, de início, muito compenetrado do meu papel divino. Só que a música não me deixava composto, grave, como convém a um Cristo. E pus-me a seguir com as mãos, os braços, com todo o corpo exuberante, o ritmo dos sons que a banda tocava. Só quando acompanhei meu Avô, que segurava o pálio com mais três “honestos cavalheiros” – um deles era o Dr. Mexia, e o outro, salvo erro, o Zé Rodrigues, só aí, me comportei como um menino-homem.
No Largo da Estação
jogávamos à bola.
Em cada um de nós
havia um Eusébio um Artur Jorge.
Marcávamos os golos
que os adultos proibiam
e dávamos às horas
asas de condor.
A Pensão Carranca era lá no Largo.
O tio João, a tia Adelaide, a prima Carminda
a prima Isaura e, não sei se sabem, foi lá
que o Mário Braga escreveu os “Serranos”.
E da família, que éramos tantos, alguns
Se foram p’ra longe e por lá ficaram
Há outros que por ainda cá andam.
E outros há, que estão p’ra nascer.
A nossa pátria é
a nossa infância
e a pátria é
o lugar
do tempo renascido
Há coisas que nem tu
imaginas como eram
Quero voltar a percorrer, infantil
as ruas da Lousã
ouvir o Madeira perguntar:
Qué da caTina? Qué da caTan?
Quero voltar a percorrer, infantil,
as ruas da Lousã.
E aqui estou eu, à mesa dos meus antepassados, a sonhar a eternidade.
Monte Estoril, 20/10/2001
Sou de uma vaga pátria carinhosa.
Afonso Duarte
Só podemos falar verdade
quando falamos de nós mesmos.
Mário Botas
Texto da comunicação proferida no Auditório da Biblioteca Municipal da Lousã, dia 27 de Outubro de 2001.
Quando o Dr. Matos Silva, Director da Biblioteca Municipal da Lousã e meu amigo, me convidou a falar no encerramento da comemorações dos 850 anos do Foral da Lousã, comecei por tomar o convite por um acto de evidente desconhecimento da minha pessoa. Eu seria a menos indicada para desempenhar a honrosa tarefa.
Várias razões concorriam para que o convite não me fosse dirigido:
Não sou estudioso do passado longínquo da Vila da Lousã; sou fraco em Epigrafia, em Paleografia e em Heráldica; não possuo bibliografia capaz de, em tempo curto, abordar o tema com a seriedade a que o momento obriga; seria de uma enorme petulância falar de assunto que não domino, ainda mais junto do meu ilustre colega palestrante, o Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, Doutor Oliveira Barata, conhecido homem de cultura. Certo seria que no final da minha “lição”, mal sabida e mal contada, me havia de puxar as orelhas.
Convidarem-me, a mim, que nem sequer nasci na Lousã. Porquê?
É verdade que os meus antepassados nasceram aqui. Também é verdade que todos eles, na medida das sua capacidades, honraram a terra que os viu nascer. É também verdade que a Vila da Lousã foi, desde sempre, para mim, o lugar da Poesia. Que a procurei em outros lugares. A recriei em outras vilas – sempre a trouxe aninhada no entendimento dos meus dias. É verdade, também, que lhe dediquei um longo poema, um livro – talvez o mais sofrido de todos – que demorou 20 anos a escrever. Os anos que separam a morte de minha Avó da de meu Pai. Ambos enterrados no cemitério da Lousã. E nenhum deles era de cá.
- Porquê, eu?
O Dr. Matos Silva, ao ver-me, talvez, a mudar de cor e com receio de alguma tragédia provocada por tão inesperado convite, no seu jeito directo, simples e afável, tornou mais clara a proposta:
- Fale do que quiser!
Naquele momento, refastelado no sofá em que o nosso director “obriga” as visitas a sentarem-se olhei-o de baixo para cima, aliviado, e aceitei o desafio.
- Sendo assim, ocorre-me um título que me dá espaço para a intimidade: Uma Pátria na Cabeça.
********
Receando fugir ao significado original da palavra Pátria, procurei no meu velho e desmembrado dicionário – o que ainda não inclui bué como vocábulo nosso – o seu significado. E este disse-me: lugar onde cada qual nasce. Ora, nascer é vir ao mundo, é principiar a ser, e eu só tomei consciência de mim (porque nós não nascemos no lugar onde somos paridos, mas no lugar onde tomamos consciência de estar vivos) em S. João da Madeira, vila onde o culto do trabalho se ergue do fumo das altas chaminés das suas muitas fábricas e do som estridente das sirenes que convocam e libertam os operários dos seus postos.
Foi na vila de S. João da Madeira que tomei consciência de pertencer a uma família.
Pertencer a uma família, é herdar um património. É ter raízes que se perdem na memória dos nossos antepassados, é ter, para o bem e para o mal, ou para além do bem e do mal, fios de sangue a ligarem-nos inexoravelmente ao futuro e ao passado.
Era o tempo de minha Mãe, hoje redescoberto em alguns poemas, livros que me foram oferecidos logo que comecei a manifestar alguma sensibilidade poética. Mas, era também o do meu Pai que, vendo o interesse que eu manifestava pela História de Portugal e pelos versos que ia dizendo, cantados e decorados, me ofereceu (e ainda hoje conservo religiosamente essa edição em papel bíblia) “Os Lusíadas” (tinha acabado de completar o meu sétimo aniversário).
Assim, desde muito cedo, fui entendendo que pertencia a duas famílias. A biológica e a espiritual. A que entroncava no avós e bisavós e a que vinha do fundo dos tempos, a dos artistas.
Era o tempo de “O Sono do João”
O João dorme...(Ó Maria
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá, o João,acordar...)
Tem um só palmo de altura
E nem meio de largura.
Para o amigo orangotango
O João seria um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!
O João dorme...que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó mar! fala mais baixinho
E tu mãe! E tu Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...
O João dorme, o Inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...
Ó Mãe! Canta-lhe aquela canção,
Os versos do teu irmão:
«Na vida que a dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai se sentir».
Deixa-o dormir até ser
Um velhinho...até morrer!
E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...
Depois, um dia virá
Que(dormindo) passará
Do berço onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João...ficarão menores!
Mas para isso, ó Maria!
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...
E os anos irão passando.
Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,
Isto é, deixa dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...
Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...
Foi António Nobre quem me deixou, para sempre, na cabeça, uma pátria. Uma pátria maior, uma pátria melhor, esse “País de marinheiros, de romarias e de procissões”, onde o imperativo ideal – “amai-vos uns aos outros” se sobrepõe ao concreto e categórico de hoje – “ matai-vos uns aos outros”
De pequenino intuí que só a Poesia era capaz de unir e pacificar e vencer a morte contra o poder tirânico dos que tudo podem.
Alguém disse que “ os poetas são doentes da infância”, mas foi Antoine de Saint – Exupéry quem ensinou o lugar dos poetas:
“Somos de uma infância como somos de um país”
Nas minha deambulações pela Vila da Lousã, o passado agiganta-se, sempre, como sombra tutelar e de esperança.
Régio, diz-nos, em “A Velha Casa”, que “ Juntamos o apreço do passado vivo ao gosto da mais audaciosa antecipação do futuro. O que é preciso é que tudo seja Presente”.
Cumpramos a função identitária do poeta. Juntemos o passado ao futuro. Antecipemos o presente. Sejamos capazes de, através do poema, reencontrar todos quantos são parte vida dos versos que ficaram por escrever.
Procuremos nas coisas, nas pessoas, no indisível das coisas e das pessoas, o que se quer revelar, como pedras suspensas – palavras ocultas.
Partamos numa viagem pela palavra. É ela que confere ao tempo, ao nosso tempo, eternidade. É nela que a pluralidade da vida surge mais funda, mais autêntica.
Tudo o que tenho são poemas.
A eternidade está dentro do passado e do futuro, para além do bem e do mal. Nos poemas, na eternidade de mim, onde habitam os outros, onde uma guitarra nossa toca nos espaço onde a natureza se cumpre.
Cantar entre ruínas?
Pensar entre ruínas?
Passear entre ruínas?
È pela palavra que vamos em busca das verdades ocultas, sem pátria que as habite.
Tenho uma pátria na cabeça.
Todos nós regressamos à infância
como fuga à morte
a primeira a única verdade
o importante hoje é recordar
É possível ser de novo
rapaz
trepar às arvores
sonhar coisas impossíveis.
Em nenhuma parte
estamos
mais próximo
de nós.
(...)
A nossa pátria é
a nossa infância
a pátria é
o lugar do
tempo renascido.
Meu bisavô, que não conheci, chamava-se José Fernandes Carranca. Usava uns bigodes, uns grandes bigodes. Era monárquico – liberal e louvado judicial. Dizem que também testemunha crónica nas escrituras do Tabelião João Henriques Lopes. Minha bisavó, Constância da Piedade, mãe de sete filhos. Um deles, meu Avô, claro – o Cassiano. Foi o quinto, nasceu em 1895 e teve como madrinha de baptismo a sua irmã, Benvinda.
Era grande, o meu Avô. Trazia dentro de si o lugar onde nascera, a serra e tudo mais. Foi militar. Lutou na guerra, na Primeira e na Segunda. Esteve nos Açores. Era valente, dizem.
Meu Avô foi buscar a minha Avó junto ao mar, à Praia da Figueira. Era linda, a minha Avó. Seus olhos azuis tinham a leveza dos dias claros.
E foi assim que minha Avó, veio parar à Lousã quando meu Avô passou à reserva territorial.
Que sabemos nós da infância
meu pai minha mãe
os avós confirmam a genealogia
o tios os primos
o rasto de tudo
daquilo que somos
Celestina, minha mãe era, das três filhas, a mais velha.
A casa era um verso
imóvel (fortaleza)
na rua onde
a chegada do comboio
marcava as horas.
Na Avenida da Estação, na casa dos meus Avós, passava os fins-de-semana, as férias e dias afins a brincar. Sempre a brincar.
Sabem que havia um mendigo, o Madeira?
Era um verso perdido na rua.
Às vezes, brincava connosco,
dizia-nos coisas e nós lá ouvíamos,
mas sem o escutar.
Minha avó descia do quarto
logo de manhã. A mulher do leite
batia-nos à porta.
O comboio arfava ao chegar à Estação.
Era possível gritar sou feliz.
A casa que era a dos meus avós, antes fora o Hotel Carranca – Pai , onde nasceu o Zeca, filho da Benvinda, irmã – madrinha do meu Avô.
Vejam como a vida
se vai cindindo em pais,
filhos, tios, e avós
e primos também...
Ainda não falei de meus pais, assim, como se conheceram:
Meu pai não era de cá,
(ela era de longe,
do sul, da arábia)
viu a minha mãe.
Como ele gostava
das coisas que olhava....
minha mãe
não era uma coisa,
sorriu-lhe e casaram.
E foram felizes.
Tiveram-me a mim
- não sei se gostaram!...
E vamos assim, chegando ao términos da viagem. Ah, é verdade!...
Conta-se na família que minha mãe me vestiu de Nosso Senhor Jesus Cristo. E lá fui eu, na procissão de Senhora da Piedade, ao que parece, de início, muito compenetrado do meu papel divino. Só que a música não me deixava composto, grave, como convém a um Cristo. E pus-me a seguir com as mãos, os braços, com todo o corpo exuberante, o ritmo dos sons que a banda tocava. Só quando acompanhei meu Avô, que segurava o pálio com mais três “honestos cavalheiros” – um deles era o Dr. Mexia, e o outro, salvo erro, o Zé Rodrigues, só aí, me comportei como um menino-homem.
No Largo da Estação
jogávamos à bola.
Em cada um de nós
havia um Eusébio um Artur Jorge.
Marcávamos os golos
que os adultos proibiam
e dávamos às horas
asas de condor.
A Pensão Carranca era lá no Largo.
O tio João, a tia Adelaide, a prima Carminda
a prima Isaura e, não sei se sabem, foi lá
que o Mário Braga escreveu os “Serranos”.
E da família, que éramos tantos, alguns
Se foram p’ra longe e por lá ficaram
Há outros que por ainda cá andam.
E outros há, que estão p’ra nascer.
A nossa pátria é
a nossa infância
e a pátria é
o lugar
do tempo renascido
Há coisas que nem tu
imaginas como eram
Quero voltar a percorrer, infantil
as ruas da Lousã
ouvir o Madeira perguntar:
Qué da caTina? Qué da caTan?
Quero voltar a percorrer, infantil,
as ruas da Lousã.
E aqui estou eu, à mesa dos meus antepassados, a sonhar a eternidade.
Monte Estoril, 20/10/2001
2 Comments:
Caro sr. Carlos Carranca,
bem haja pelo seu blogue. Estou à procura da fonte da citação do Afonso Duarte, "sou duma vaga pátria carinhosa". Se tiver alguma informação acerca do poema ou texto donde retirou essa citação, agradeceria que me contactasse
martins@alyfe.de
Muito obrigado e boa continuação,
Alexandre Martins (Alemanha)
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