quarta-feira, setembro 20, 2006

O escritor, a Europa e a sociedade do futuro


Talvez toda a literatura nasça de um golpe, de uma ferida que se torna cicatriz de um corpo, de uma Pátria, de uma identidade.
É sempre algo que nos dói e nos torna mais conscientes da nossa condição.
É sempre a marca da nossa personalidade, dos muitos sonhos que tentamos realizar, do muito que percorremos.
Cicatrizes como resultado de um cem número de deslumbramentos, de ganhos e de perdas. Cicatrizes como roteiro dessa viagem de exílio que é a do escritor. Porque escrever é estar sempre fora, é “ser estrangeiro no mundo” ansiando, sempre, por uma pátria ideal, sem dogmas nem preconceitos, nossa, feita de velhas raízes e novos ramos, sob os quais possamos pernoitar, habitar e conviver, à sombra da sua altura.
A nossa literatura, a portuguesa, é, como se sabe, desde o início, uma literatura marcada pela errância. Errância pelo mundo, pelo oriente, pela Europa, por todos os continentes do homem.
Talvez Fernando Pessoa seja o exemplo mais universal dessa errância, Sem sair do lugar. De uma errância que se fez pelo desdobramento da personalidade, pelo muito imaginar, pelo muito pensar, por uma certa forma de navegação espiritual que também sintetiza a nossa história o nosso povo.
De duas grandes e profundas feridas, as guerras mundiais, restam hoje as cicatrizes que ajudaram a dividir o mundo e a Europa.
Dos longínquos anos da 2.ª Guerra, os horrores que a marcaram, ditaram ao Poeta e pedagogo Afonso Duarte versos que dedicou a outra grande figura de português e homem da Europa. Paulo Quintela e que me permito recordar

E cá mesmo | no extremo Ocidental
Duma Europa em farrapos, | eu
Quero ser europeu: | Quero ser europeu
Num canto qualquer de Portugal |

Como as ondas do mar sabem a sal, |
A ave amacia o ninho que teceu; |
Mas não será do mar, e nem do céu,
Porque me quero assim tão natural.

E se a esperança ainda me consente
No Sonho do futuro, ao mal presente
Se digo adeus, – é adeus até um dia...

Um presídio será, mas e meu berço!
Nem noutra língua escreveria um verso
Que me soubesse ao sal desta harmonia.

Poema que ainda hoje permanece como bandeira de uma Europa multicultural e identitária.
Falamos dc guerras, de cicatrizes e de tolerância.
A tolerância tolera e tolerar é aceitar sobranceiramente, e olhar com paternalismo, é conviver com reserva mental.
Ultrapassemos essa barreira moral, hoje que a Europa no coro polifónico das suas vozes, busca caminhos comuns reforçando a identidade em dois planos. O Nacional e o Europeu.
Qual o papel hoje do escritor europeu numa sociedade globalizada que promove e agrava os desníveis entre povos?
Será possível ou pelo menos admissível viver sem remorsos quando há gente em África, por exemplo, que não conhece o retinir dc um telefone?
Será moralmente aceitável que louvemos as maravilhas, as novas maravilhas da informação enquanto assistimos, à distância, à tragédia de milhões de seres humanos a viverem abaixo do limiar da pobreza para que alguns possam, em nome do progresso e da nova civilização, desenvolver os seus negócios?
Será admissível continuarmos a assistir ao enriquecimento despudorado dos ricos à custa da manutenção e multiplicação dos pobres?

Será aceitável continuarmos a ver a economia global a fazer o seu percurso de colisão com os ecossistemas terrestres, gerando catástrofes ambientais, enquanto as grandes questões do nosso tempo (que também são portuguesas), a falta de água, a sobrevivência das florestas, a regeneração dos oceanos passam ao lado?
O papel do escritor na Europa de hoje, deve conduzir-nos à reflexão e à acção, abrindo portas. É que a diluição dos valores ainda não destruiu definitivamente todas as consciências morais.
Hoje, tudo interdepende de tudo.
O aumento exponencial dos que procuram trabalho não especializado, ultrapassa em muito, as novas tecnologias que cada vez mais dispensam o homem.
Que mundo vai ser o nosso.
Poderemos nós recusar a globalização?
Faz sentido novos centros mundiais de decisão?
O FUTURO CÁ ESTARÁ PARA NOS JULGAR.
Não sei quem o disse, suponho que Edgar Mourin, mas assusta e dá que pensar esta afirmação. “A técnica traz, do mesmo passo que a civilização, uma nova barbárie cega e manipuladora”.
Os famintos do mundo olham-nos, a nós, europeus, como privilegiados, habitantes de um lugar feliz, ansiando também eles, por essa felicidade.
É nesta perspectiva que os países de língua portuguesa, força aglutinadora que hoje se reveste das mais diversas matrizes, devem gerar novos espaços identitários comuns, capazes de ultrapassar as feridas da guerra colonial e as barreiras imperialistas da globalização.
Os que falam a língua portuguesa existem por esse mundo fora. São cidadãos desses novos países que vivem fora do seu território, residindo uma parte significativa na Europa.
A língua comum facilita contactos, ajuda a garantir a preservação de uma identidade, mas não assegura, por si só, forma de cooperação que terão que ser atingidas e desenvolvidas com outras línguas, outras culturas.
Nesta língua dos Poetas, a de Camões, Pessoa, Pascoaes, Torga, Sophia, Manuel Bandeira, Craveirinha, Daniel Filipe, Jorge Gomes Duarte, língua portuguesa falada, dizem, por duzentos milhões de seres humanos, – número resultante de um longo percurso histórico, de patrimónios comuns, produto de uma convivência multissecular, é nesta casa que saudamos os escritores, os poetas, que acreditam na sua pátria e na Europa do futuro, fraterna e multicultural.
Basta sabermos congraçar na independência de cada um, como afirmava Agostinho da Silva. Essa é a dimensão da poesia.
Concluo citando um grande poeta de Portugal, Miguel Torga:

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz!

E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
Duma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!

Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!

Trevim, semanário
Edição nº 1032 14 Setembro 2006