quinta-feira, junho 12, 2008

POÉTICA DE UMA NOVA SERENATA*


Serenata Nuclear da autoria de Carlos Carranca, é um livro de poesia. Falar de poesia hoje, numa era tecnológica em expansão, é uma aventura, um desvario ou uma ruptura com a uniformidade do contemporâneo. Contudo, é uma atitude de encantamento. E encantamento porque nos prende, nos conforma, nos alarga a alma, cada vez mais sequiosa do estímulo, da fantasia que dá à vida a sua total significação. Mas falar de poesia hoje, é ainda conceber a vida com a dimensão enriquecedora do espaço mítico. De facto, nenhuma outra palavra é mais antagónica do logos, ou seja, da palavra do real e da razão.
Como disse Platão no seu livro Fédon, «ao poeta compete fazer mitos, não discursos». O autêntico poeta é o efabulador, o criador de novos espaços mentais, não o orador que se limita ao quotidiano. Hoje, vinte e cinco séculos depois de Platão, o filósofo que foi também poeta, continua a não poder ser esquecido. O poeta não se confunde com o político, o cientista ou o filósofo. O poeta é aquele que consagra a sua fantasia, pulsa a sua arte e espicaça a sua imaginação, nos versos a que transmite a sua sensibilidade acrisolada. A vida não é apenas a vida, a palavra não se reduz ao som, o bem ou o mal não são somente o bem ou o mal, a morte não se confina mais à morte, na hora em que o poeta proclama no verso, a vida, a palavra, o bem, o mal ou a morte.
Tudo sai mudado das suas mãos de mago, do seu espírito cultivador de sonhos. Com as palavras lança sementes na folha de papel incólume e violada. Foi deste modo simples, tão simples como semear e tão difícil como amadurecer um fruto, que nasceu esta Serenata Nuclear. Como diz o título, trata-se de um canto em torno de um núcleo. E esse núcleo não é mais do que a essência da Vida, para Carlos Carranca. Idolatrando-a, comove-se ao descobrir os seus pequenos nadas, as suas maravilhas inesperadas. Um gesto, um perfume, a voz do mar...
Na vida, constrói Carlos Carranca um poema que é «CORPO PROCURADO», «CILÍCIO» ou «INTIMIDADE». E ao retratá-la com a grandeza do «MILAGRE», o poeta diz : «sentir da Vida / as pulsações /...olhar / o lugar / e ver o mundo / e ressuscitar em cada segundo»(p.28). Esta, palavra-mágica, transfigura-se sempre em cada novo verso, renasce eterna a cada instante de luz, é a identidade de cada poema, inscrito em Serenata Nuclear.
E a vida tem uma plenitude tão profusa que o poeta chega a ter pena que o seu corpo lhe limite a visão da essência do seu mundo infinito. «O que eu sou, / sou-o tão fundo / que sinto pena / do corpo em que padeço»(p.44), diz no poema «NARCISO». Para transmitir a vida, e tão somente como a vê, o poeta sente-se pequeno e, ao mesmo tempo, o único com a alquimia de a desvendar : «O Poeta é o enigma / que encobre, descobre a exacta hora maligna / em que o silêncio é que mata»(p.42).
A ânsia de cantar a vida caracteriza esta Serenata Nuclear escrita por um poeta que não tem atravessado as páginas dos jornais ou revistas, quase só predispostos a divulgar os que se vendem ou os best-sellers. As numerosas edições de Autor revelam como esta sociedade se reduz ao lucro ou ao nada, que é o mesmo que dizer, salve-se quem puder. Uma mísera e, como diria Camões, uma «apagada e vil tristeza».
Mas voltemos à nossa Serenata Nuclear. Trata-se de um pequeno livro só nas dimensões. Não obstante, é necessário não lhe passar ao lado. Lê-lo é um cântico à vida, como fez o poeta. Lembremos alguns dos seus versos : «Tento enumerar e Vida de cada verso»(p.55); «Canto os raios de sol»(p.51); «Amei / o concreto de um poema. / E, da Vida, só sei que vale a pena»(p.58).
«A Vida é um regresso» (p.49) sempre a ser. Energia, plenitude, autenticidade. Maravilhosa arte de poder ver os «raios de sol», as «folhas do infinito», o mar, o céu, as estrelas... Mesmo assim, o poeta procura na vida a além-vida, apenas com os seus versos, esses instrumentos de artífice, e com a sua emoção, essa via para amar, com a saudade do amanhã, do depois a ser já hoje. Veja-se a procura do inesgotável neste verso : «Procuro Deus nas asas dos meus versos»(p.14). E no poema «AMANHû, Carlos Carranca vai mais longe, ao ver em Deus a vanguarda da liberdade, que pode significar tanto a fragilidade como a magnificência do enigmático luar : «Tomarei da Vida / a ânsia de chegar / a um porto lunar / onde Deus não seja a Lei / mas...luar»(p.59).
Com a beleza estilística que cultiva com as suas anáforas, aliterações e sinestesias, Carlos Carranca, um poeta marcado pela Coimbra do choupal, do Penedo da Saudade e das baladas pela noite dentro à porta da catedral, é um poeta da geração de 90 a buscar a novidade e a impor-se no já não distante século XXI, com a força e a música de Torga e Pessanha, com a saudade de Pascoaes e de Nemésio.
Com a voz, a visão e o tacto, o percurso de Carlos Carranca, ruma à Vida, exaltada com a imagem, feita desenho, a intercalar os versos da alma e do sentido. Com a voz do canto, ergue-se a vida do Fundo, do mais Fundo de si : «a Vida / é esta profusão / sem idade / nem limite / de prender numa verdade / o que não tem prisão»(p.29).

*Apresentação do livro Serenata Nuclear de Carlos Carranca, em Mesão Frio (no dia 18 de Fevereiro de 1995) (Ass. Teresa Bernardino Passos)
http://www.harmoniadomundo.net/Poesia/Carlos_Carranca.htm