quarta-feira, junho 11, 2008

A POÉTICA DE CARLOS CARRANCA
– UM OLHAR BREVE SOBRE PEDRAS SUSPENSAS*


«Antes de pensar, sinto». Com este verso apenas, podemos desocultar todo o sentido e, porventura, todos os sentidos imanentes e a transcender-se da poética de Carlos Carranca. Devastando os horizontes latos das montanhas, perdido nas ruas da cidade ou imerso no canto saudosista de guitarras chorando, Carlos Carranca faz de cada emoção, palavras e de cada palavra, emoções. O sensível tem, na sua obra poética, uma dimensão que inserimos na esteira de um Pessoa (Álvaro de Campos) e de um Miguel Torga, a espraiarem-se entre as ondulações caprichosas de um Tejo ou nas lágrimas subtis de um Mondego.
Mas, se a emoção do poeta se entrelaça nos ramos dispersos de uma natureza, qual seara, céu, rio ou pássaro, a Pátria, com a vastidão do sagrado e os limites do oceano, enuncia-se, em cada verso, sempre a libertar-se das amarras da palavra do poeta – indiferente e cúmplice, hostil, amante e secreto.
Nestas Pedras Suspensas, deslumbra-nos o poeta que se faz navegador, aventureiro de rumos diversos e, ao mesmo tempo, a concentrarem-se no espesso nevoeiro das «duas Serras» – «a da infância e a outra». Essa «outra» que é um olhar ignoto, brando e transparente, forte gume de cada emoção, de cada voz, de cada raiz que o poeta constrói, «solitária e solidária», como se os navios do presente só pudessem aportar a essa idade distante (e súbita presença) do infinito berço maternal, a iluminar-se na hora da memória elegíaca e a libertar-se numa hora trágica de sombra, a fluir e a refluir na espera ou na lembrança do recomeçar das emoções sem finitude.
De novo, os véus envolventes do luar – desse luar a possuir todos os sentidos, a transformar-se em mater dolorosa, a emergir como virtus e Mátria eterna. «Do mais alto te contemplo/Portugal».Esse Portugal que, para Carlos Carranca, aparece com formas «de lume, cinzas e segredos». Trata-se de um país secreto, envolto em nuvem longa de proféticos oceanos e atlânticas vontades, em busca da Saudade ou do futuro. Futuro que jamais será revelado a não ser na Hora de ser, finalmente, encontrado (ou reencontrado).
Entre «Noites púrpuras», «almas do porvir», «sombras expectantes» e «feéricas»... Eis que a Hora chega! É a «Hora em que o Poeta cria». E, assim, é traçado o «Trágico destino sob o céu tão vasto...», como se, já morto, ressuscitasse nas formas sagradas da palavra (e das palavras). O poeta escreve desde o «Princípio», entre os fios de Ariadne, dentro do labirinto da terra da origem maternal e a atravessar o mar do futuro para ser (e já sendo) o «pássaro sagrado».
Um «Registo desobrigado». O último poema, «Registo», de Pedras Suspensas. Aqui, cada verso se renova como num «Princípio». Este o título do primeiro poema, talhado com as ervas e o sonho de um nascimento sem tempo algum e a prometer já a vida!
E o poeta lembra-nos:
«A lua, minha mãe nocturna
sobre mim lançou o seu feitiço:
– Serás o mágico das pedras!».
As Pedras Suspensas ganharam, como numa origem primordial, asas e com elas os versos nasceram na «noite feérica» do «Princípio».


Lisboa, 19 de Abril de 1996

* Gazeta do Mundo de Língua Portuguesa, 1996, nº7, pp.48-49.
http://www.harmoniadomundo.net/Poesia/Carlos_Carranca.htm