quinta-feira, dezembro 09, 2010

Nobre a sorrir na foto de campanha?

Luis Pedro Nunes (www.expresso.pt)

Um homem superior desvanece-se na miserável política portuguesa como se as regras fossem outras.

Se as eleições se disputassem com base no Facebook, Fernando Nobre era Presidente da República com um avanço de léguas. O candidato comunista nem se maçou a abrir conta (sintomático), Cavaco tem meros 15 mil facefriends, já Alegre (o tal que se andou a pavonear com um milhão de votos no bolso) fica-se nos seis mil e Nobre ultrapassa os 26 mil amigos no Facebook. Eis o que é curioso neste candidato.

Acredito que contrariando a maldição do Facebook estes 26 mil "amigos" gostem mesmo de Fernando Nobre - no sentido de lhe quererem bem. Se vão mesmo votar nele, já é outra história - como se para ser político fosse preciso ser um cadinho farsante. Nobre - sabemos todos que ele até valeria qualquer coisa num Nobel da Paz com tanta missão humanitária no bucho, mas votos presidênciais num Estado semifalhado? Isso...

Num canal de cabo passa a série "Lie to Me" em que Cal Lightman (Tim Roth) é especialista em detetar as emoções pelas microexpressões faciais e assim descobrir crime e escapadelas. Observo a foto oficial que Fernando Nobre tem na página do Facebook. Sei que é suposto estar a sorrir. Aliás, sei que está a sorrir. E, no entanto, o meu cérebro opta por o ver franzido, com um esgar quase zangado. Essa expressão transporta-me para a única vez que os nossos caminhos se cruzaram - recordo-me agora perfeita e nitidamente. E como esse encontro me marcou profundamente e mudou a vida de mais gente.

Aquela expressão entre um sorriso pouco à vontade e uma dor comprimida via-lha há 20 anos na Roménia, em Bilteni, num Camin Spital, um caixote velho de cimento onde vegetavam 126 crianças tidas como "irrecuperáveis" pelo regime criminoso de Ceaucescu - umas doentes, deficientes outras apenas roubadas a pais dissidentes e atiradas para aquele prédio gelado e macabro. Nobre foi e regressou com uma equipa médica, tolerando uns jornalistas para dar visibilidade à AMI. Eu era jornalista há poucos meses e pela mão de Nobre levei a primeira joelhada aqui onde dói - 20 anos passados ainda sei onde. Vou contar muito rápido: em cada quarto fechado estão dez camas. Em cada cama estão três crianças que defecam e urinam durante dias criando um cheiro que me faz cair as lágrimas e ter convulsões de vómito. Têm idades que vão dos 3 aos 12 anos. São sobreviventes - estão assim há anos! Replicam as doenças uns dos outros, nunca foram pegados ao colo, muitos tem as pernas soldadas em posição intrauterina e a maioria abana-se como se tivesse autismo - sendo que alguns até eram crianças saudáveis ao nascer, embora estivessem ali todas no lote de "crianças com sida de Ceausescu". Piolhos, pulgas, sarna, há de tudo. No quarto seguinte, não sei explicar como o cheiro consegue ser diferente, pior, e as crianças que olham espantadas, outras felizes que chamam, gritam - lembro-me de uma (só me lembro mesmo dessa...) que ficava a cheirar o meu pulso a desodorizante Tahiti Bambu... e encostava o nariz ao meu pulso e ficava só a cheirar, e sentia-me a metros antes de me aproximar. E lembro-me de Fernando Nobre ao longe sempre indignado - uma ONG francesa aqueceu os quartos, as doenças alastraram e as crianças começaram a morrer, outra ONG enviou um camião com bens e a população da aldeia começou a ficar revoltada porque os "anormais" tinham mais direitos que eles. Nobre falava na necessidade de gerir sensibilidades. Desde então nunca mais o vi.

O fotógrafo do "Público" atinou e casou com uma médica da AMI que ali estava em busca de sentido para a vida. Eu ganhei o Prémio Revelação de Jornalismo do Clube de Jornalistas com essa reportagem. Ingrato e imaturo gastei o prémio em esbórnia.

Nobre não vai ganhar as eleições. Ter salvo a vida a milhares de pessoas nos horrores dos quatro cantos do apocalipse não lhe dá imunidade na sarjeta da vida política portuguesa.

Vejo a sua dignidade em causa por causa de rendas e dinheiros de campanhas. Chegou a hora de deixar-me de chalaças por uma semana e dizer que ponho a minha palavra na palavra do Nobre.

E quer vote ou não nele - já somos amigos no Facebook.

Texto publicado na revista Única / EXPRESSO de 27 de Novembro de 2010

Luis Pedro Nunes é director do “Inimigo Público” (suplemento humorístico do “Público”), colunista no Expresso e membro do programa “Eixo do Mal” na Sic Notícias.


Disse: Frederico Brandao

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