quinta-feira, março 18, 2010

RECORDANDO CARLOS COUCEIRO
(Carta de Santos Silva a Carlos Carranca)


Prezado Amigo
Carlos Carranca:
16/03/2010

O falecimento do nosso querido Amigo Carlos Couceiro deixou-me abalado (mesmo sabendo há muito que aquela doença, naquela idade, era fatal). O Carlos e o Zeca foram os meus dois grandes amigos da juventude (direi mesmo, da vida). Tão diferentes que eram, ambos exerceram em mim um fascínio especial. Sobre o Zeca já disse tudo no caderno de recordações a que dei o título de “Zeca Afonso Antes do Mito” (salvo aquelas emoções mais íntimas e finas, que são indizíveis). Sobre o Carlos têm-me vindo à memória coisas que andavam adormecidas: cenas, conversas, fragmentos de vivências, o som peculiar das suas risadas, a vibração da sua vitalidade, do seu calor humano que irradiava…
Às vezes pergunto-me: será possível que tudo Aquilo que ele era, tanto fogo, tanto Sol, tanta abundância de talentos, esteja agora reduzido a um punhado de cinzas? Noutro dia, a minha Mulher deu-me uma resposta sábia: “pensa que não é um ‘punhado de cinzas’ mas, sim, uma mão cheia de boas memórias – vive-se enquanto se é lembrado por algum coração…”

Nos últimos anos, o Carlos e eu mantivemos um relacionamento assíduo: eu escrevia-lhe e ele telefonava-me. Ao rever algumas das minhas cartas, guardadas na memória do PC, encontrei algumas engraçadas. Vou transcrever-lhe uma, na parte que fala da nossa pequena “república”, que o Carlos baptizou de Sobado Kàkulo, em homenagem a um soba lendário que existiu na zona do Lobito (da etnia Ubúndu).
Situava-se, tal “república”, no 1.º andar da última casa da Couraça dos Apóstolos (ao fundo, à direita), em plena Alta antiga. Era uma “república” só de dormir e estudar, pois não tinha cozinha em condições (nem havia empregada permanente) e a retrete era um cubículo estreito[1] onde nem dava jeito tomar banho: aos domingos íamos ao hospital velho, aos balneários públicos, onde se podia tomar duche à descrição ou mergulhar numas antiquíssimas e enormes banheiras (salvo erro, custava 1$00 com direito a toalhão). A “república” tinha um salão com três camas e mais dois pequenos quartos. Normalmente, viviam lá cinco ou seis, a que se juntavam, por vezes, alguns adventícios (entre os quais o Zeca, quando se zangava com a Mulher, a Maria Amália). Que estudante, hoje, se sujeitaria a tal “conforto”? Mas a renda era em conta: 240$00 (40$00 por cabeça), e o senhorio pouco exigente na data do pagamento. A vizinhança era, também, simpática e conivente (apanhava-nos a roupa que caía da corda de secar, avisava-nos da aproximação dos funcionários que vinham cortar a água/luz…); à frente havia uma pequena mercearia que nos fiava, se necessário, alguma bucha para acalmar a fome (pão com chouriço, carapaus de escabeche, bolachas torradas, cervejas…). Era giro – sobretudo, descontraído e fraterno!

Pois aqui vai, então, o extracto da carta acima referida:

“Há alguns dias, ao relembrar com saudade o meu tio Joaquim (o tio Quim, como lhe chamávamos), irmão de minha mãe – o boémio da família, memorialista da Coimbra antiga, escritor e conversador infatigável, que passava o tempo nas tascas e casas de má fama da Baixa – ‘Quando não bebo pelo menos 12 bicas por dia, já não consigo dormir’, dizia –, veio-me à lembrança uma cena engraçada que ocorreu com ele na nossa saudosa República do Sobado Kàkulo.
“Entrei para a “república” em princípios de 1952, viviam lá, então: tu, o Júlio, o Serafino e o Rodriguez. Nesse ano, eu que era um aluno razoável, estava a afundar-me: a convivência com o Zeca Afonso (simultaneamente, rica e depressiva), a falência financeira do meu pai, um sarilho amoroso-sexual em que me envolvi na casa onde estava hospedado, etc, deitaram-me abaixo. Adoeci (psicologicamente), cheguei a pontos de perder toda a sensibilidade do corpo, dos pés ao pescoço – um grande susto! Como consequência, perdi esse ano (desisti a meio da prova oral de Física, com o Dr. Almeida Santos): o meu primeiro e único chumbo. Em Outubro desse ano, tu foste para o Porto (Engenharia) e eu fiquei na “república”, mais um ano, a marcar passo.
“Foi nessa época (se não me engano) que o Jorge Serafino, com o seu jeitão para o desenho, se meteu a decorar a sala grande da “república” transformando-a na Sala Sextina, numa paródia à Capela Sistina do Vaticano. Nas paredes, ninfas semi-desnudas esvoaçavam e, sobre as cabeceiras das camas, musas, de seios opulentos e oferecidos, acolhiam-nos quando acordávamos… E, num dos cantos das paredes-tecto, desenhou uma escada e um alçapão para um imaginário sótão, e, no topo da escada, umas pernas e um rabo de mulher, como se fosse a subir – a ilusão era perfeita!
“Ora num belo dia, o meu tio Quim (que tinha estado com os meus pais, em Vila Cortês) veio bater à porta da “república” para me entregar uma encomenda da minha mãe (talvez um bolo). Eu, que ainda estava deitado, levantei-me em pijama e fui abrir a porta, sem saber quem era. O meu tio entrou na sala, contemplou o “harém” das paredes e, nisto, deu com os olhos no canto da sala onde havia a tal escada desenhada, o alçapão e a “rapariga” a subir, meia entrada já no “sótão”. O tio Quim estacou! Atirou-me o embrulho para as mãos e saiu porta fora. Eu fui atrás dele a chamá-lo. Desceu as escadas e, antes de sair para a rua, respondeu-me: “Diz à rapariga que desça. Eu não lhe mordia, também já fui rapaz!”.
“Por mais que, depois, lhe contasse a verdade, nunca acreditou. E, possivelmente, o meu chumbo daquele ano ficou, para ele, a dever-se à rambóia que se vivia na Sobado Kàkulo, com ninfas e musas desenhadas sobre as camas e raparigas verdadeiras a fugirem pela escada do sótão…
“E é assim que algumas vezes se inventa a história…”

O Carlos adorou esta peripécia e eu, de quando em vez, contava-lhe outras. Mas agora já não dá…

Receba um abraço de amizade – reforçado com a que o Carlos lhe tinha, como ele muitas vezes me disse. Comprimentos também para a sua Rosinha.

Santos Silva