sexta-feira, fevereiro 18, 2011

O PS no "centro do centro" e a auto-reprodução das oligarquias partidárias

por Alfredo Barroso, Publicado em 15 de Fevereiro de 2011

1. Na sua crónica semanal publicada no DN a 1 de Fevereiro, Mário Soares
considera ter chegado o momento de o PS "fazer uma reflexão aprofundada",
com o objectivo de "dar um novo impulso à sua participação na vida política
(independentemente do governo), com mais idealismo socialista e menos
apparatchiks, mais debate político e menos marketing, mais culto pelos
valores éticos e menos boys que só pensam em ganhar dinheiro e promover-se".
A primeira reacção oficial da direcção do PS não se fez esperar, por via do
inevitável José Lello, membro do seu secretariado nacional, que se apressou
a desvalorizar as opiniões do principal fundador do partido: "O PS só tem
uma única preocupação: governar o país e defender o país. É esse o nosso
objectivo ideológico e é nisso que devemos concentrar-nos. Tudo o resto é
secundário."
Antes de mais, duas observações de pura forma: "governar o país e defender o
país" são duas preocupações, e não "uma única"; e nenhuma delas é um
"objectivo ideológico", mas sim político. José Lello tem de cuidar da
gramática e recorrer mais vezes ao dicionário, porque a língua portuguesa é
muito traiçoeira.
Depois há que dizer que José Lello é assim uma espécie de "reflexo
pavloviano" da oligarquia partidária que dirige o PS. Quando alguém bate com
demasiada estridência no portão da sua quinta, Lello reage e ataca sem
pensar, atirando-se cegamente às pernas de quem julga ser um intruso, e fica
radiante quando lhe rasga as calças.
Para Lello e outros apparatchiks, que, como ele, vivem à sombra do aparelho
do partido, Mário Soares já é considerado um "intruso", tal como Manuel
Alegre ou Manuel Maria Carrilho, para só referir mais dois exemplos de
fresca data. Como qualquer apparatchik que se preze, Lello é totalmente
incapaz de formular um discurso político que seja interessante e
mobilizador. Além de não se lhe conhecer qualquer ideia original, recusa-se
terminantemente a reflectir sobre o que quer que seja.



2. José Lello é um case study que nos permite compreender melhor como os
partidos continuam a funcionar em circuito fechado. Citando Robert Michels,
um dos maiores autores clássicos especializados no estudo dos partidos
políticos em democracia, José Lello faz parte "de um exército de dirigentes
intermédios ou inferiores profissionalizados - os chamados bosses e
wirepullers [literalmente: "os que manobram os fios", isto é, os
"intriguistas") -, sem qualquer aprofundamento teórico a guiar a sua acção,
mas sob as ordens de um dirigente superior com talento estratégico".
A obra fundamental de Robert Michels - "Para Uma Sociologia dos Partidos
Políticos na Democracia Moderna. Investigação sobre as Tendências
Oligárquicas dos Agrupamentos Políticos» - foi publicada pela primeira vez
em 1910, mas só em 2001 foi traduzida e editada em português1.
Cem anos passados, a sua actualidade continua impressionante. Michels
apresenta-nos inúmeros exemplos do modo como a direcção das grandes máquinas
políticas é progressivamente açambarcada por uma classe profissional que vai
afastando paulatinamente os militantes.
Graças ao conhecimento das questões essenciais e à sua experiência política,
essa classe profissional acaba por se tornar indispensável. A sua "ciência"
dos mecanismos internos (o chamado "aparelho") e a habilidade para utilizar
as regras do jogo (que conhece e manipula como ninguém) preservam-na de ser
derrubada por súbitas inversões de maioria.
Essa classe profissional adquire assim uma inamovibilidade quase absoluta: a
sua renovação praticamente só se opera pelo efeito da idade e, mesmo assim,
essa substituição de gerações é cuidadosamente controlada e circunscrita. Os
dirigentes partidários revelam, aliás, especial mestria no trabalho de
dissolução das oposições virtuais, quer absorvendo os seus líderes, quer
empurrando-os para fora do partido.
Em suma: qualquer possibilidade de rejuvenescimento ou renovação global está
condenada à partida. A democracia, que é participação de todos na direcção,
deixa assim de ser exercida no interior dos partidos.
Foi a esses poderosos mecanismos de preservação e auto-reprodução da classe
profissional que domina os partidos políticos que Robert Michels chamou a
"lei de bronze" ou "lei férrea da oligarquia partidária".
Diz ele que "as correntes democráticas, ao longo da história, fazem lembrar
a rebentação contínua das ondas. Quebram sempre no momento em que se enrolam
e se abatem com fragor. Mas renascem sempre". O que sucede é que muitos
daqueles que erguem as vozes contra os "privilégios oligárquicos" também
"acabam por se dissolver na classe dominante", depois de "um período de
participação cinzenta na dominação".
Por isso mesmo, remata Robert Michels, "não tem fim este drama que
ferozmente se desenrola entre o incansável idealismo dos mais jovens e a
incurável sede de poder dos mais velhos. Há sempre novas ondas a rugir no
mesmo ponto de rebentação. E é essa a marca mais profunda e mais
característica da história dos partidos políticos".



3. No interior dos partidos que alternam no poder, ou seja, no governo, há
igualmente o problema, referido por Mário Soares na sua crónica, dos "boys
que só pensam em ganhar dinheiro e promover-se".
É um problema cruciante nas democracias modernas, consequência daquilo a que
Donatella Della Porta, professora de Administração Local na Universidade de
Florença, considera uma "quebra progressiva da tensão ideológica, que deixou
um vazio ao nível dos princípios éticos"2.
Essa "quebra dos estímulos ideológicos" abriu caminho a indivíduos mais
sensíveis a motivações materiais, ou seja, à defesa dos seus interesses
pessoais. De facto, a falta de pessoal qualificado, capaz de desempenhar
funções de direcção política e de gestão da coisa pública, passou a ser
compensada pela "oferta" de uma nova classe de oportunistas, atraídos por
aquilo que a política lhes pode oferecer, tanto ao nível local como ao nível
nacional, para multiplicarem os seus proventos pessoais.
É evidente que a "quebra da tensão ideológica" diminui bastante a capacidade
dos partidos de formularem programas e políticas públicas consistentes e
coerentes, em benefício da generalidade dos cidadãos. Clientelismo,
nepotismo e patrimonialismo condicionam inevitavelmente a visão e os
objectivos daqueles que detêm os poderes de decisão.
Assistimos então àquilo que se designa por "gestão clientelar" das ofertas
de emprego na administração pública e nas empresas públicas, das nomeações
políticas feitas pelos partidos, das adjudicações de obras e serviços
públicos, e do favorecimento de certas empresas privadas.
"As práticas clientelares e de governo paralelo", como também são
designadas, "transformaram os próprios partidos." Enfraqueceram a sua
capacidade de canalizar, traduzir e corresponder às necessidades daqueles
que representam - os representados - e, em contrapartida, "reforçaram a sua
tendência para proporcionar vantagens aos seus representantes".
Toda esta intrincada teia de interesses e conivências - caracterizada pela
emergência de indivíduos que a especulação enriqueceu rapidamente, pela
arrogância dos novos poderosos e pela corrupção das elites, pelo aumento
significativo das necessidades financeiras dos partidos políticos e pelo
total desprezo votado à moral do serviço público - torna muito difícil
imaginar "um novo impulso democrático", uma grande transformação política e
uma verdadeira renovação ideológica dos partidos que alternam no poder.




4. No mais recente livro que publicaram, "O Poder Presidencial em
Portugal"3, André Freire e António Costa Pinto salientam uma questão
bastante interessante e significativa, que tem muito a ver com a "quebra da
tensão ideológica" de que tenho vindo a falar.
No balanço do primeiro mandato do actual Presidente da República, referem
que Cavaco só utilizou "o veto político face a diplomas da Assembleia da
República". Por outro lado, "as divergências políticas de Cavaco Silva face
à maioria parlamentar (expressas através dos vetos) foram apenas nas áreas
socioculturais e morais (estilos de vida, 'novos temas': paridade, divórcio,
uniões de facto) e nas questões institucionais (Estatuto
Político-Administrativo dos Açores, etc.), deixando de fora os temas
socioeconómicos (que estão no âmago da divisão entre esquerda e direita)".
Mais adiante, insistem: "Pelo menos tanto quanto é possível inferir do
exercício dos poderes de veto", Cavaco Silva "não terá divergido muito da
maioria das orientações da maioria parlamentar (PS) em questões
socioeconómicas (o âmago da divisão esquerda-direita)".
Os autores atribuem este comportamento do actual Presidente a dois factores:
primeiro, a "uma significativa inflexão do PS para o centro do centro";
segundo, a "um certo centrismo ideológico do Presidente Cavaco em questões
socioeconómicas".
Ora, o "centro do centro»" é aquilo a que um grande constitucionalista e
especialista no estudo dos partidos políticos, Maurice Duverger, chamou o
"juste milieu". E é hoje evidente que ele tinha razão ao afirmar, há mais de
40 anos, que "o centrismo favorece a direita".
Vejamos o que ele escreveu no livro "La democratie sans le peuple"4,
publicado em 1967: "O centrismo favorece a direita. Aparentemente, as
coligações do 'juste milieu' são dominadas ora pelo centro-direita ora pelo
centro-esquerda, seguindo uma oscilação de fraca amplitude. [...] Estas
aparências mascaram uma realidade completamente diferente. Por trás da
ilusão de um movimento pendular, o centro-direita domina quase sempre. [...]
Em vez de implicar uma transformação lenta mas regular da ordem existente, a
conjunção dos centros desemboca no imobilismo, ou seja, no triunfo da
direita."
No mesmo livro, Duverger também comenta a tendência para "uma esquerdização
do vocabulário político", nos seguintes termos: "O centro quer chamar-se
'esquerda', a direita quer chamar-se 'centro', e ninguém quer chamar-se
'direita'". Em Portugal, actualmente, o PS, o PPD-PSD e o CDS-PP são
ilustrações perfeitas do que Duverger quis dizer.



5. O "centro do centro" ("juste milieu") é o território propício a todas as
renúncias ideológicas e a todas as abdicações políticas, sempre em nome dos
superiores interesses do Estado ou da nação, consoante a carapaça em que
cada partido político quer enfiar-se.
Mas é grande o prejuízo para a democracia, que é sustentada por quatro
pilares resultantes da articulação entre duas tradições diferentes: por um
lado, os pilares da liberdade individual e do pluralismo, nos quais assenta
a tradição liberal; por outro lado, os pilares da soberania popular e da
igualdade, nos quais assenta a tradição democrática.
Liberalismo e democracia são valores diferentes e, como nos explica Chantal
Mouffe, politóloga e professora da Universidade de Westminster, "a história
das democracias liberais caracterizou-se pela luta, por vezes violenta,
entre forças sociais cujo objectivo era estabelecer a supremacia de uma
tradição sobre outra"5.
Hoje, porém, a moldura ideológica dominante assenta, por um lado, no
"mercado livre" e por outro nos "direitos humanos". "O que é mais espantoso
é que a referência à soberania popular - que constitui a coluna vertebral do
ideal de democracia - foi praticamente eliminada da definição actual de
democracia liberal." A soberania popular é considerada nos dias que correm
"uma ideia obsoleta" e "um obstáculo à implementação dos direitos humanos".
Sob a bandeira da "modernização" - empunhada na década de 1990 por Tony
Blair ("New Labour") e Gerhard Schröder ("Novo Centro") - os partidos
socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus passaram a
identificar-se quase exclusivamente com as classes médias e deixaram de
representar os interesses das classes mais populares, cujas reivindicações
foram consideradas "arcaicas" ou "retrógradas".
Não deverá por isso surpreender-nos a crescente alienação de um número cada
vez maior de grupos que se sentem excluídos do exercício efectivo da
cidadania pelas elites iluminadas. Chantal Mouffe salienta que é a
incapacidade dos partidos políticos democráticos de "proporem formas
distintas de identificação em torno de alternativas possíveis que cria o
terreno propício ao florescimento do populismo de direita".
É ilusório pensar que vivemos em sociedades pós-políticas, das quais foram
erradicados todos os antagonismos políticos. Não é concebível uma política
consensual para além da esquerda e da direita. Nem sequer existem soluções
imparciais na política. A "hegemonia neoliberal" deu lugar a um défice
democrático que é urgente colmatar, e a desigualdades económicas, políticas
e sociais crescentes, que é preciso questionar e combater.
É indispensável reactivar a noção de soberania popular como pilar essencial
da democracia. Sem ela não é possível recuperar a confiança nas instituições
europeias, combater as desigualdades sociais gritantes geradas pela
gravíssima crise económico-financeira e recuperar o prestígio perdido pelos
partidos políticos democráticos.
A noção de soberania popular traz implícita a ideia de participação alargada
dos cidadãos na vida política e de intervenção na coisa pública. Sem essa
participação activa não será possível proceder a uma renovação ideológica
dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas.
As oligarquias partidárias instaladas no centro do centro praticam um
pragmatismo sem princípios totalmente avesso à renovação. O "idealismo"
inquieta-as, um "novo impulso" arrepia-as. Se as assustarem muito, soltam
apparatchiks como José Lello e mandam à fava o debate político.