quinta-feira, março 06, 2008

CONSIDERAÇÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DOS PROFESSORES
DA APEDE

(Associação de Professores e Educadores em Defesa do Ensino)
O processo de avaliação dos professores, que vai ter agora início por via da recente promulgação do Decreto Regulamentar n.º 2/2008 de 10 de Janeiro, não pode efectivar-se sem uma profunda reflexão, por parte de todos os actores envolvidos, sobre as dificuldades que o rodeiam. De facto, se a avaliação dos alunos tem inspirado uma produção teórica considerável, dada a complexidade que lhe é inerente, entendemos que não são menores nem menos complexos os problemas colocados pela avaliação dos professores. Daí a nossa preocupação perante a forma precipitada com que este processo está a ser conduzido, como se nele tudo fosse imediatamente óbvio e linear.
As considerações que aqui expomos não visam levantar obstáculos intransponíveis a uma avaliação do desempenho dos docentes. Colocar dúvidas e identificar problemas não significa negar a necessidade de os professores serem avaliados. Significa, tão-só, pensar essa avaliação sem nos limitarmos a ser executores passivos das ordens do Ministério. Por outro lado, entendemos que uma análise crítica do Decreto Regulamentar acima referido não deve ficar reduzida ao levantamento das dificuldades de natureza prática suscitadas pela sua implementação, dificuldades onde se incluem os prazos apertados que o Ministério pretende impor ou a quase impossibilidade de os avaliadores se desdobrarem por todas as tarefas que lhes são cometidas. Consideramos que é necessário ir mais longe, e interrogar o contexto geral em que esta avaliação vai ter lugar e os princípios que lhe presidem. O facto de estes estarem consignados numa lei não é, por si só, argumento suficiente para furtá-los a uma abordagem crítica. As leis do Ministério não são emanações divinas tocadas pela infalibilidade. São produções humanas e, enquanto tal, contestáveis, transformáveis e revogáveis.
Em nosso entender, os problemas inerentes à avaliação do desempenho dos professores, nos moldes em que ela está concebida, podem distribuir-se por duas categorias: os problemas relacionados com a natureza dos actores envolvidos, e os que decorrem de alguns dos princípios inscritos no Decreto Regulamentar. Começando pelos primeiros, é por demais evidente que a relação entre avaliadores e avaliados neste processo vai estar revestida de uma complexidade que deveria aconselhar a maior prudência. Na verdade, os professores obtiveram a sua formação científica e pedagógica para avaliarem alunos com os quais mantêm uma relação que é, para todos os efeitos, essencialmente assimétrica: pressupõe-se que os alunos não dispõem do capital de conhecimentos e de competências que os seus avaliadores possuem, e é nessa distância ou nesse desnível que se joga a sua avaliação. Mais: essa assimetria é a condição mesma para que uma avaliação possa decorrer. Ora, a avaliação dos professores irá dar-se numa situação relacional diametralmente oposta: os professores estarão a avaliar os seus pares, com os quais se supõe manterem uma relação de simetria em matéria de competências científicas e pedagógicas. A delicadeza desta simples situação é de molde a criar as maiores dificuldades, pois ela põe em causa a própria autoridade do avaliador face ao avaliado.
Condicionando a forma como avaliado e avaliador se vão percepcionar mutuamente, é também verdade que a referida simetria se revelará, em muitos casos, ilusória. Mas esse é um facto que pode ser desfavorável tanto para o avaliado como para o avaliador, e constitui, em si mesmo, um problema capaz de viciar boa parte do processo de avaliação. Com efeito, este irá decorrer num quadro em que a selecção dos avaliadores não obedeceu a verdadeiros requisitos de mérito ou de qualidade, tendo sido tão-só o resultado espúrio de um concurso para professores titulares marcado por toda uma série de iniquidades, graças às quais foram excluídos alguns dos profissionais melhores e mais experientes. Muitos dos actuais coordenadores de departamento, a quem incumbirá o essencial da avaliação dos seus colegas, estão longe de ser os mais habilitados, de entre os respectivos grupos de docência, para preencher essa função. Escusamos de enumerar aqui os riscos deontológicos que uma tal situação suscita.
A isto acresce as dificuldades próprias do contexto relacional intrínseco aos diferentes departamentos. Avaliadores e avaliados, muitos deles com um historial de convivência já longo, mantêm entre si relações afectivas que podem ser de amizade, de cumplicidade, mas também de rivalidade, de tensão e de conflito, se não mesmo de hostilidade. Afigura-se como praticamente impossível que estas modalidades de relacionamento não venham a interferir no processo que agora se inicia, abrindo a velha e incontornável questão da subjectividade na avaliação. É sabido que, no espírito de alguns, esta questão pode ser despachada numa nota de rodapé: a avaliação será sempre subjectiva e nada há a fazer. Contudo, se este lugar-comum é verdadeiro, a subjectividade na avaliação nem por isso deixa de constituir um problema. E é justamente o reconhecimento desse problema que nos tem levado, enquanto avaliadores de alunos, a desenvolver todo um conjunto de métodos para compensar ou corrigir a interferência dos factores subjectivos. Será necessário frisar que este tipo de problemática está totalmente ausente do horizonte em que se inscreve o Decreto Regulamentar da avaliação do desempenho dos docentes? E se, à primeira vista, esse diploma adianta critérios mensuráveis e, portanto, supostamente dotados de objectividade, o facto é que os itens para a concretização dos mesmos que têm chegado ao nosso conhecimento parecem concebidos para agravar o referido risco de subjectividade. Se o Ministério não se afastar muito da última versão das grelhas de avaliação, estas ilustram bem o que acabámos de referir. Tomemos um exemplo: a «correcção científico-pedagógica» e a «adequação» das «metodologias didáctico-pedagógicas» enquanto bitolas para aferir o trabalho docente. Perante semelhantes itens, a avaliação dos professores pode assumir duas atitudes. A primeira tem em linha de conta a pluralidade das práticas pedagógicas e a própria existência de uma disputa, provavelmente insanável, em torno dos modelos de pedagogia, reconhecendo que estes são sempre ideologias do ensino, problematizáveis e discutíveis enquanto tal. Porém, pode-se adoptar uma outra atitude pela qual se procura impor um único modelo pedagógico e, consequentemente, se visa punir os professores que se desviem do mesmo, isto é, que façam prova de serem «pedagogicamente incorrectos». Este modelo de avaliação pode vir a revelar-se, de facto, um poderoso instrumento de pressão para que docentes mais inconformistas se deixem formatar pelo canto de sereias das «novas pedagogias». Outro exemplo, também extraído da última versão de uma das grelhas de avaliação, prende-se com a utilização de «estratégias e recursos inovadores» e com a «abertura à inovação». Será preciso insistir em que essa «abertura», tomada como fim em si mesmo, não passa de uma forma vazia de conteúdo, e que a inovação pela inovação nada significa? Sabemos todos, aliás, onde nos conduziu a compulsão à inovação que o Ministério praticou abundantemente ao longo das últimas décadas: levou-nos a uma das piores posições na União Europeia em matéria de conhecimentos e de capacidades por parte dos alunos. Transformar a «inovação» num item obrigatório para a avaliação dos professores só pode provir de espíritos que nada aprenderam com os erros do passado, mantendo-se fiéis às pseudo-ciências da educação que nos conduziram ao buraco onde nos encontramos. Em lugar da «abertura à inovação», por que não propor que o docente seja avaliado pela utilização de estratégias e recursos tradicionais, que no passado mostraram atingir bons resultados no que concerne às aprendizagens dos alunos? Este exemplo mostra, por si só, quão subjectivos e discutíveis são os critérios que o Ministério está a impor no processo de avaliação dos professores.
Terminamos com uma observação acerca de outros itens de avaliação previstos no Decreto Regulamentar e no próprio Estatuto da Carreira Docente. Determinar o mérito do professor em função dos resultados atingidos pelos alunos e das taxas de abandono escolar é fazer depender a sua avaliação de variáveis que ele não está em condições de controlar inteiramente. Para os resultados escolares dos alunos contribuem, pelo menos, cinco factores: a qualidade do ensino ministrado pelo professor, claro está, mas também o empenhamento dos alunos, a sua preparação anterior, o acompanhamento levado a cabo pelas famílias e, acima de tudo, as políticas educativas do Ministério. O actual modelo de avaliação dos professores contempla apenas o primeiro factor como se dele dependesse exclusivamente o resultado dos alunos. Esta concepção surge, aliás, em coerência com a forma como os responsáveis do Ministério da Educação se desresponsabilizam sistematicamente pela catástrofe do ensino em Portugal, centrando toda a responsabilidade nos docentes, ao mesmo tempo que também eliminam demagogicamente as famílias e os próprios alunos do cenário que explica os resultados escolares e as taxas de abandono. Sendo certo que estes são os critérios mais facilmente quantificáveis, é também fácil constatar a que ponto eles dependem de factores que escapam ao controlo dos professores.
Por tudo isto, parece-nos imperioso que os responsáveis pelo processo de avaliação na nossa escola cheguem a acordo, ao nível do Conselho Pedagógico, em torno de alguns princípios que possam minorar os efeitos dos problemas abordados ao longo desta reflexão. Em primeiro lugar, julgamos ser muito difícil, ou talvez mesmo impossível, que esse acordo resulte de um único modelo positivo de docência. Em nosso entender, não existe uma receita universal para se ser bom professor. Colegas haverá que necessitam de planificar as aulas ao pormenor, e outros que atingem excelentes resultados com base na improvisação e na capacidade de inscrever o imprevisto na sua prática lectiva; há professores que recorrem a novas tecnologias e conseguem, com isso, aulas bastante dinâmicas e interactivas, mas existem também docentes que galvanizam os alunos com aulas centradas na análise de textos e até mesmo na mera exposição oral. Se as formas são importantes, os conteúdos são fundamentais. Acontece que o modelo pedagógico dominante, mercê da influência de uma ideologia pedagógica que aposta tudo nas metodologias lúdicas, tem sacrificado sistematicamente os conteúdos às formas.
Em contrapartida, se é difícil concordarmos sobre o que um professor deve ser, já nos parece mais viável reunir consenso sobre o que um professor não deve ser:
• Um professor não deve cometer erros científicos graves e, ao mesmo tempo, mostrar uma relutância persistente em corrigi-los.
• Um professor não deve pautar a sua actuação na sala de aula por uma sistemática dificuldade de relacionamento com os alunos, quer por total incapacidade de impor a disciplina, quer por autoritarismo desproporcionado ou ineficaz.
• Um professor não deve desrespeitar permanentemente as planificações e os critérios de avaliação acordados no interior dos grupos de docência.
• Um professor não deve recorrer ao laxismo e ao facilitismo para obter resultados escolares inflacionados.
• Um professor não deve assumir, para com os seus alunos, comportamentos inequívoca e comprovadamente discriminatórios ou de teor racista.
• Um professor não deve exibir um desleixo recorrente no cumprimento das tarefas associadas ao serviço que lhe é distribuído.
Em nosso entender, todos os procedimentos que não caibam em qualquer destas categorias extremas autorizam, desde logo, a atribuição da menção qualitativa de Bom. Quanto às classificações de Muito Bom e Excelente, receamos que a sua atribuição tenha de se confrontar com as dificuldades que fomos recenseando ao longo deste texto.